A resistência da Vila Pescadores e o jornalismo

A ideia é contar como a luta das pessoas da Vila dos Pescadores me fez decidir o tipo de jornalismo que quero trabalhar.
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Foto: Amajar

Conclamei este artigo, antes de tudo, por respeito às leitoras e leitores da Mídia Caeté. Evitarei debates teóricos, porque a ideia é só contar como as pessoas antes moradoras da Vila dos Pescadores, e precisamente as marisqueiras de Jaraguá, me fizeram decidir o tipo de jornalismo que quero trabalhar.

A despeito de já ter superado, há mais de 10 anos, o mito da imparcialidade jornalística (e há pouco menos que isso, da neutralidade sociológica), é relevante informar que a primazia da realidade já me conduziu, em mares mais antigos, a escrever sobre a Vila e denunciar as diversas formas de violência praticadas pelos órgãos municipais contra a comunidade. Denunciar a violência – repito com seguranças estas palavras – foi inevitável.

A primeira vez que escrevi sobre a luta das marisqueiras e dos pescadores de Jaraguá foi quando entendi minha função enquanto jornalista. Foi também quando deparei com a instrumentalização da desinformação, bem antes dessa palavra sonhar se vincular às redes sociais, ou de ser denominada ‘fake news’.

Estagiava no Portal Gazetaweb e havia recebido a informação de que a Prefeitura de Maceió queria fornecer apartamentos ‘dignos’ para os moradores da ‘Favela de Jaraguá’, mas muitos deles estavam recusando e queriam se manter na ‘favela’. Se você está questionando ‘Como assim?’ fique certo: foi exatamente o que me perguntei! E dos bastidores das redações às declarações oficiais da Prefeitura de Maceió, à época administrada por Cícero Almeida, a resposta era consonante: o tráfico de drogas queria a manutenção do local. À época, estava meio distante de qualquer perspectiva crítica mais consolidada. Porém, bem ensinada pelos professores e colegas mais experientes, prossegui com a básica conduta técnica e ética: obviamente busquei ouvir o outro lado da história.

E, vejam que surpresa, o outro lado em questão não era composto por traficantes. Só encontrei marisqueiras descascando camarões, pescadores em alto mar, um estaleiro artesanal, educadores culturais ensinando crianças a pintar ou tocar instrumentos, e docentes e estudantes da Universidade Federal de Alagoas que desenvolviam pesquisas, projetos sociais e atividades culturais no local, em parceria com a Associação de Moradores e Amigos do Jaraguá (AMAJAR) e com o Ponto de Cultura Enseada das Canoas: Yar-á-guá Cultura, (que embora tenha sido realizado em vínculo ao Ministério da Cultura, também foi literalmente tratorado pela Prefeitura de Maceió sob a conivência silenciosa do Governo Federal – mas isto, acreditem, será assunto para outra prosa). Ademais, o outro lado não tinha só discursos, mas ofereciam papéis de reuniões, comprovação de que foram distribuída listas fantasmas, informações detalhadas sobre intrigas e boatos de que os que queriam ir só não foram em decorrência da insistência dos que queriam ficar. Enfim, toda uma sorte de informações e provas das estratégias adotadas pela Prefeitura, que investia fortemente em promessas, ameaças, desencontros de informações e fomento a um clima de rivalidade na comunidade. Separar para dominar – o antigo lema que funciona quase sempre obteve sucesso no local.

“Se uma pessoa diz que chove e outra diz que não, teu trabalho como jornalista não é dar voz a ambas. É abrir a p*** da janela e ver se está chovendo”. – Mas, ei, autor desconhecido, que tal se darmos voz a ambas, uma e outra vez, E olhar se está chovendo? 😉

Com este rebate fundamentado, entrevistei o então prefeito Cícero Almeida para que respondesse sobre os dados expostos. A incapacidade do gestor em sustentar qualquer prova das declarações me fez entender que é preciso ter muito cuidado quando ‘meramente ouvimos dois lados’ e damos por encerrada a história. Associei a uma ‘máxima’ hoje bem retomada em redes sociais: abrir la puta de la ventana y ver se está lloviendo.

Da burocracia institucional à difamação, dos interesses comerciais à repressão policial, foram muitos os detalhes que produziram toda uma expulsão de uma comunidade tradicional bem diante dos olhos dos maceioenses. Mas quem quer a informação pronta e mastigada não está muito disposto a observá-los. Com aquele preconceito proveniente da preguiça de olhar para o lado, grande parte da população ou nada enxergava, ou só via ali uma favela, um ponto de droga, e traficantes imaginários que pressionavam pescadores a se manter no local.

Na segunda vez que escrevi sobre a luta das marisqueiras e dos pescadores, não estava trabalhando como jornalista – mas concluindo o mestrado em sociologia. Após distâncias (inclusive geográficas), a ameaça de expulsão iminente me reaproximou da comunidade. Construímos uma mobilização contínua intitulada Abrace a Vila. A ideia era nos aliarmos à luta da comunidade, com apoio nas trincheiras institucionais e políticas de um lado, e sociais do outro.

Aprendi o que é lutar por direitos com as marisqueiras que representavam a resistência da AMAJAR. Aprendi o que é respeitar uma luta por direitos, dando suporte sem querer furtar o protagonismo de quem luta – através de um grande conjunto de gente, professores da UFAL que acompanhavam a luta desde o início, estudantes, artistas e profissionais de diversas áreas que integraram o Abrace a Vila, além de alguns militantes de movimentos sociais. Aprendi como o Estado consegue utilizar a burocracia e a institucionalidade para praticar a violência e disseminar preconceito e ódio.

A despeito de alguns materiais jornalísticos que verdadeiramente ouviam os dois lados, e olhavam as janelas, a grande maioria decepcionava. Com textos enviesados por preguiça, linha editorial, ou incorporação desse discurso de ódio, a batalha desigual acontecia também nesse campo. E foi nele que aprendi o que não era jornalismo. Ou, pelo menos, o que era o jornalismo que eu não queria.

Em um momento em que as redes sociais começavam a obter espaço, travamos uma batalha, ainda em condições extremamente desiguais, contra veículos de imprensa que, de forma irresponsável, desavisada, ou extremamente intencional – proferiam calúnias sem provas contra a comunidade, cortando seus espaços de fala e agigantando os argumentos do Município com sua ‘bela intenção’ de ‘revitalização’ ou ‘urbanização’. Não havia qualquer disposição ao diálogo com os que supostamente seriam os principais beneficiados, mas isto não estava no caso. Ou iriam para o Trapiche, ou para o Benedito Bentes. Ou iriam para o Trapiche ou não iriam para canto nenhum. Ou saíam daquele território de Jaraguá naquele momento, ou teriam que se ver com a polícia.

Aprendi o significado de ‘golpe’ ali também. Em uma ação que contou com um aparato militar ofensivo, as marisqueiras e os pescadores que resistiam viver no local foram brutalmente expulsos. A comunidade tomou conhecimento sobre o despejo compulsório apenas no dia anterior, através de mensagens espalhadas de forma avulsa pelo whatsapp. Lembro que diziam algo como: “população maceioense, amanhã não transitem em Jaraguá nas proximidades do cais do porto, pois haverá uma grande operação com a Polícia Militar para retomada de posse na Favela de Jaraguá”. Jovens que utilizavam celular espalhavam para a família. Muitos não acreditaram. O plano da maioria da população, no dia seguinte, era fazer o que faziam todos os dias: trabalhar.

Estava lá desde a madrugada anterior  e vi quando, às 5h30 do dia 17 de junho de 2015,  veículos da SMTT começaram a rondar o lugar várias e várias vezes. Em seguida,  foram chegando os batalhões militares, um a um, BOPE, Cavalaria, BPTran  – um total de 50 homens orquestrados pela Secretario de Segurança Pública, que tinha à frente Alfredo Gaspar de Mendonça – hoje Procurador-Geral de Justiça do Ministério Público de Alagoas.

O local foi tratorado. Lembro ter visto as equipes da Prefeitura, junto a oficiais de justiça e militares, se aproximando rapidamente e entrando no templo religioso de umbanda da Mãe Vitória, uma das primeiras casas a ser demolida.  Lembro a confusão desordenada da população, que não sabia para onde tinham sido levados seus pertences; dos apelos, choros e gritos, das manifestações de indignação e das respostas vindas com animosidade desproporcional. De assistentes sociais da Prefeitura terem ficado a uma distância enorme de toda a situação e da distribuição de mais fichas e fichas das quais ninguém sabia para que valiam.

A consternação foi a reação mais imediata de quem perdeu seu lugar de moradia e de trabalho. Confiram o vídeo produzido por integrantes do Abrace a Vila:

 

No lugar de uma Vila empobrecida, favelizada – mas com a história viva mantida no cotidiano e a esperança de revitalização -, sobraram lembranças traumáticas e a expectativa de construção de um centro pesqueiro quase como um prêmio de consolação.

E esta é a terceira vez em que escrevo sobre a Vila. Quase cinco anos depois e de volta como jornalista na Mídia Caeté, voltei à comunidade para saber detalhes sobre a situação atual: as memórias, a família, as crianças, o trabalho, a locomoção, as possibilidades e impossibilidades de viver da pesca e, claro, o Centro Pesqueiro. Depois dos escombros, a história continua e a labuta também. Hoje o centro pesqueiro é o grande objeto de controvérsia. “A gente sente como se estivéssemos expulsos de novo”, falou uma marisqueira – ensejando novas entrevistas.

Ouvi ambos os lados. Recebi notas da assessoria, efetuei outros questionamentos, procurei o IABS, e retornei à Semtel para mais perguntas. Obtive retornos eficientes da assessoria de comunicação. Entretanto, nem todas as informações cabem ao setor: busquei, ainda, editais de licitação, documentos relacionados à construção da obra, e outras informações públicas mais internas via Lei de Acesso à Informação (2.527/2011), como atas de reuniões e plantas originais do Centro Pesqueiro. Após adiarem o envio e ainda mediante recurso, recebi algumas respostas, mas ainda incompletas. Embora tenha solicitado todas as atas das reuniões relacionadas ao CP, apenas seis foram entregues, sem nenhuma assinatura de marisqueira, pescador, ou entidade que o representasse. Utilizando o mecanismo burocrático, a gestão municipal não conseguiu comprovar a participação efetiva da comunidade pesqueira em todo o processo de construção e dinâmica de trabalho – relegando-os a uma posição extremamente passiva.

Quem me considerar uma aliada da comunidade terá absoluta razão. Quem me identificar como uma espectadora privilegiada de toda essa história, também. Não há porque questionar minha neutralidade, porque nunca escondi que de fato inexiste. Diante do que foi presenciado, a concordância é com o Adelmo Genro Filho, em ‘O Segredo da Pirâmide’, na página 186, quando coloca que “a maioria dos autores reconhece que a objetividade plena é impossível no jornalismo, mas admite isso como uma limitação, um sinal da impotência humana diante da própria subjetividade, ao invés de perceber essa impossibilidade como um sinal de potência subjetiva do homem diante da objetividade”.

Poderia dizer que a sequência de reportagens é resultante de todas estas apurações, mas também trata-se de um dever ético com a profissão, de um compromisso profissional com os direitos humanos, e de um dever pessoal com uma comunidade que tem sido exemplo de resistência coletiva e individual, e cuja história deve ser registrada com o respeito merecido à sua luta – já que o espaço midiático ainda parece manter as narrativas mais oficiais – e questionáveis – em evidência. No mais, resta advertir que não são minhas memórias que estão em questão, tampouco minhas impressões sobre o que aconteceu, mas os próprios acontecimentos, a memória, e a vida atual das pessoas mais afetadas pela ofensiva da Prefeitura e do Governo Federal.

Ao jornalismo, apesar de seus destemperos, o que segue é a esperança da assertiva de Nilson Lage, ao afirmar que “os jornais, em suma, não têm saída: são veículos de ideologias práticas, mesquinharias. Mas têm saídas: há neles indícios da realidade e rudimentos de filosofia prática, crítica militante, grandeza submetida, porém insubmissa”

Aproveito para indicar algumas leituras aos que querem entender todo o caso:

 

 

 

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