Não ligam, não entendem ou não acreditam?

Pelo fim do isolamento, leigos ignoram especialistas e sobrepõem o bem-estar individual à coletividade
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Especialistas só são especialistas porque suas pesquisas, teses e conclusões sobre certos assuntos são baseadas em estudo, muito estudo, testado e confrontado repetidamente quando necessário, aprofundado por anos e anos, acompanhado de vivência ou observação exacerbadamente próxima do experimento do qual ele se torna especialista. Eles trabalham na construção de provas e contraprovas, realizam testes em diferentes condições, por diferentes perspectivas e considerando diferentes variáveis. De modo geral, existem dois tipos de especialistas. Um grupo trabalha com números. Suas conclusões são baseadas em porcentagens, gráficos, dados. Eles trabalham com expectativas, fazem projeções e criam estimativas. Outro grupo vai além dos números. Eles tratam as coisas como o que elas são. Violência como violência, doença como doença, pessoa como pessoa. Para além das estimativas, eles consideram as individualidades, as exceções, as subnotificações, a margem de erro.

Em São Paulo, grupo de ‘bolsonaristas’ dançam com caixão na Avenida Paulista em referência ao “meme do caixão”. Ação foi considerada desrespeitosa por vários segmentos e sociedade civil. Foto:Reprodução/Twitter [12.04]
Desde que a Covid-19 passou a ser tratada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como uma pandemia, em 11 de março de 2020, analistas de mercados correram para suas planilhas, tentando calcular o impacto econômico da disseminação do vírus, projetando e prevendo os melhores e também os piores cenários. Os gráficos foram montados e expostos ao mundo. Na outra ponta, sociólogos, médicos, cientistas, recorreram às pessoalidades, analisando sintomas, mutações, tratamento, impacto social, contágio, prevenção. O que todos esses especialistas têm em comum é o reconhecimento do quão rápido e devastador o Coronavírus pode ser se não for parado. O isolamento social, o furto do contato físico, acompanhado de regras básicas de higiene, sobretudo no trato com as mãos, são a fórmula comprovada para o desaceleramento do contágio.

Os chineses – onde o vírus surgiu – foram pegos de surpresa, demoraram um tempo para entender o que estava acontecendo, para descobrir porque as pessoas estavam adoecendo e como tratá-las. Tempos depois, a Europa tinha a informação necessária para conter o avanço do vírus no seu continente, mas não deu importância. Os céticos trataram o problema com desdém e sofrem até hoje com as consequências. Oriente Médio, Ásia e África seguem os menos afetados, mas a situação sanitária de países pobres no continente africano e os campos de refugiados no Oriente Médio são uma bomba prestes a estourar. Na América, assim como na Europa, a ideia de mercado prevaleceu sobre a da natureza do bem-estar coletivo e o epicentro de contágio, que já passou pela China e chegou à Europa, paira agora nos Estados Unidos da América (EUA).

O Brasil é um dos países que teve a oportunidade de assistir de longe os passos do Conoravírus, ver por onde e como ele se desloca. Os brasileiros tiveram notícias de uma China assustada, desorientada. Depois presenciaram a retomada do controle e hoje observam o país conter o avanço do vírus e das mortes. O país assiste atento o desfecho das nações que ignoraram todos os protocolos sanitários. Mas ver a Europa agonizar, colapsar seu sistema de saúde e saber que os EUA já são o epicentro do vírus não é suficiente para um grupo encorpado de empresários brasileiros. Por grupos de Whatsapp, representantes da indústria e do comércio organizaram, por todos o país, carreatas que ocorreram no último fim de semana e que tinha como propósito pressionar os governadores de seus estados pelo fim dos decretos de isolamento social, que fechou bares, restaurantes, academias, templos, cinemas, deixando funcionar apenas serviços essenciais.

A Mídia Caeté teve acesso à movimentação de alguns desses grupos em Alagoas, identificou seus administradores, suas empresas, segmentos e divulgou trechos de mensagens trocadas por seus integrantes [Leia aqui]. Alguns dos participantes do grupo demonstram a mais absoluta indiferença pelo número de pessoas que ainda podem ser infectadas e dão igual importância às vidas que ainda podem ser perdidas em todo o planeta. O discurso é o mesmo adotado por figuras públicas do cenário nacional. Prevalece a ideia de que algumas mil pessoas no Brasil podem morrer pelo bem da economia local, amparado na “preocupação” com o emprego dos seus respectivos funcionários. Movidos, um pouco pelo cenário nacional atual, outro tanto por movimentos negativistas, pelo fanatismo religioso e até amparados pelas declarações do presidente da república, Jair Bolsonaro, os integrantes do grupo em Alagoas se sentem legitimados para afrontar o governador Renan Filho, colocar em risco a saúde pública e ameaçar desemprego em massa em caso de permanecia ou prorrogação do isolamento social.

Entre os flagrantes: pedido de intervenção das Forças Armadas ou a ideia conspiratória de um grupo de governadores ‘socialistas globalistas’ que querem derrubar o presidente Jair Bolsonaro e transformar o Brasil em um país comunista, apoiado por políticos como JHC, José Sarney, Temer e Lula. Tem os que acusam a mídia de causar terror à população e como consequência provocar estresse, medo, angústia e depressão que deixariam a população mais vulnerável a doenças. Há ainda os que afirmam que a pandemia é fake news e que o isolamento decretado pelos governadores é na verdade a implantação de uma ditadura comunista. Entre delírios, aberrações e a desconstrução de figuras notórias como a do presidente da Organização Mundial de Saúde, Tedros Adhanom, as carreatas em Alagoas aconteceram mesmo depois de o Ministério Público de Alagoas e da Secretaria de Segurança Pública (SSP) divulgarem nota recomendando que a manifestação não acontecesse e que em acontecendo fosse acompanhada pela Polícia Militar, para garantir que não houvesse aglomeração. Avessos à todas as recomendações dos órgãos de saúde, o grupo ignorou as notas e realizou a carreta para forçar a imediata retomada da economia local.

O fato – e contra ele não há argumentos – é que mesmo implantando as medidas de isolamento, os números do Brasil assustam os mais otimistas. *O país cresceu em 700% no número de óbitos provocado pela Covid-19, no intervalo de apenas uma semana, e qualquer medida que siga na direção contrária ao isolamento deve colapsar o sistema de saúde já precário e superlotado que o país possui. Somente em São Paulo, epicentro no Brasil, as mortes aumentaram em 17% em 24 horas, subindo de 58 para 68. Um novo morto em pouco mais de duas horas. Já em números confirmados, a doença cresceu 467% no estado de São Paulo nos últimos dez dias e 939% em todo o território brasileiro. *(Os dados deste parágrafo correspondem ao intervalo entre os dias 26 e 27 de março).

Para especialistas de todo o mundo, a solução para a retomada da economia não está no fim do isolamento, mas passa pelas medidas de socorro econômico que serão adotadas pelo governo brasileiro daqui para frente. A pressão não deve ser em torno da volta ao trabalho, o que colocaria em risco toda a população, mas direcionada às ações de governo. Um bom exemplo são as ações da prefeitura de Niterói, no Rio de Janeiro. Lá o executivo municipal irá pagar salário mínimo de 9 funcionários, para empresas que tenham até 19 empregados, pelo período de seis meses, desde que estas empresas se comprometam em não demitir seus empregados por igual período. O próprio governo brasileiro, apesar de sua inércia, anunciou uma linha de crédito de R$ 40 bilhões para financiar a folha de pagamento de pequenas e médias empresas, com faturamento entre R$ 360 mil e R$ 10 milhões de reais por ano.
Se a solução econômica passa pela política e não pelo arrocho aos trabalhadores, então por que as carreatas não são em favor da implantação e agilidade de medidas econômicas eficazes nas três esferas de governo? Por que justamente empresários e comerciantes, sempre tão apegados e conhecedores dos números, ignoram essa realidade? A Mídia Caeté conversou com o cientista político, Ranulfo Paranhos e com a psicóloga Zaíra Mendonça, para entender o comportamento dessa pequena parcela da sociedade.

Paranhos afirmou que o discurso dos empresários são também reflexo do presidente Jair Bolsonaro, que ao invés de apostar em políticas públicas, investe em narrativas que tenta sustentar de toda forma. “Quando ele [Bolsonaro] tenta encontrar, dentro do próprio governo, agentes públicos que são contra essa narrativa, ele muda. Ele muda o secretário, o assessor, o ministro. Quando começa a duvidar da gravidade da doença, quando ele faz isso, ele está abandonado a maioria dos políticos, abandonando a percepção dos especialistas de saúde, e está se valendo de uma narrativa que é construída no entorno dele. Alguns meios de comunicação têm feito uma avaliação interessante. Ele tenta dobrar a aposta em um erro, para provar que está certo. O vice-presidente, o ministro da saúde, dá recomendações para ele ficar em casa, e o presidente dobra a aposta, faz tudo exatamente o contrário. Eu acho que isso tem um efeito sobre aqueles que o seguem”, avalia Paranhos.

O cientista político acredita que algo em torno de 20 a 30% da população ainda segue os pensamentos do presidente da república, retroalimentando uns aos outros. Ele salienta ainda que, por mais esdrúxulas que sejam as ideias, elas têm seguidores, “do nazismo ao terraplanismo”.

“O seguidor se baseia na fé, não em argumentos. Sentir basta. É natural, que uma figura como o presidente da república haja assim e encontre eco em suas ações. Tem diminuído esse eco? Tem. Estudos recentes apostam que ele perde força na população, no meio político”, diz. Por fim, Paranhos contraria o discurso dos empresários que afirmam que o Brasil fechou a sua economia. “Temos indústrias funcionando, agropecuária funcionando. Estamos evitando aglomerações em pontos comerciais e públicos. Há uma fala muito simples, pelos defensores da abertura, do isolamento vertical, é falar que a economia vai quebrar porque está tudo parado. Não estamos com o país parado, estamos funcionando de uma maneira menor, porque o momento pede”, finaliza.

A movimentação pela revogação do decreto e fim da quarentena, também passa por um processo psicológico de negação da realidade. Quem explica é a psicóloga e presidente do Conselho Regional de Psicologia de Alagoas, Zaíra Mendonça.

A psicóloga esclarece que o processo de negação nas mentes humanas não é voluntário ou consciente e que ele existe no nosso processo cotidiano. Para ela, a negação é um mecanismo da nossa mente, uma forma de defesa e fuga da realidade quando ela é muito dura.

Contudo, Zaíra explica que as pessoas que integram esses grupos sabem que a situação é grave. O que o ocorre é que que elas acreditam que por pertencerem a uma certa classe social, por terem acesso aos protocolos de higienização, elas passam a acreditar que não estão em perigo, porque a negação afeta a subjetividade, portanto essas pessoas não acreditam que estão inseridas no contexto da pandemia.

Outra possibilidade levantada pela especialista é a de que parte do grupo pode ter desenvolvido estruturas de personalidade de quem realmente não se importa com o outro. Zaíra explica que quando isso ocorre não há muito o que fazer, por se tratar de pessoas que têm compreensão do todo, da realidade, mas que apenas não se importam. Na opinião de Zaíra, a única coisa que talvez leve esse grupo de mentes a mudar de opinião seja passando por uma experiência muito próxima, como ter alguém da família infectado pelo vírus, mas isso só não seria o bastante, a experiência teria que ser impactante, como alguém ficar muito doente ou vir a óbito, para que só assim, e ainda talvez, elas adquiram a capacidade de passar por um processo de modificação, com base na experiência vivida. De outro modo, argumentos de qualquer natureza não seriam suficientes para trazê-las à realidade dos fatos.

Um terceiro grupo seria o daqueles que a psicóloga tratou como o grupo em que ainda se pode depositar “esperança”. São aquelas pessoas, cujo bombardeio de informações verídicas sobre a gravidade do problema podem fazer com que gradativamente elas se esvaiam da negação.

O que ocorre é que, apesar de a negação ser individualista, esses grupos encontram consonância nesses coletivos. A negação sempre existiu, o que ocorre é que a tecnologia, como a internet e a popularização das redes sociais amplifica essas vozes. Zaíra cita o sociólogo polonês Zygmunt Bauman sobre sua teoria das “fronteiras esfumaçadas.” Para o sociólogo, o mundo é um único país, em certo sentido. Ao tempo em que chegamos muito perto do que agora entendemos ser os limites da suportabilidade do planeta.

Zaíra sugere que alguns casamentos podem exemplificar essa negação da realidade. Ele explica que ocorre quando o relacionamento não vai bem e ao invés de o casal encarar o problema com um divórcio, o que se verifica é uma protelação, uma fuga da realidade, pautada nos detalhes da relação que justificariam a continuidade do falido relacionamento. Assim ocorre, justamente pelo fato de a negação ser soberana. Sua estratégia causa sofrimento porque exige muito esforço daquele que se utiliza desse mecanismo com a intenção oposta de sofrer menos.

O próprio Bauman cita em suas entrevistas o filósofo Ludwig Wittgenstein, para exemplificar o efeito produzido em cada indivíduo quanto este tem ideia de si: “compreender é saber como seguir adiante”.

Mas quando as palavras escapam e já não são o bastante, talvez os números possam dar significado à realidade. Para o grupo em que ainda se pode depositar alguma ‘esperança”, a Mídia Caeté preparou uma sequência de gráficos didáticos para ilustrar porque é tão importante manter o isolamento social e como a revogação do decreto estadual nesse momento pode colocar em risco a saúde dos alagoanos.

Arte: Mídia Caeté

Os números comprovam que infectados e mortos em um mês no Brasil, são maiores do que na Itália no mesmo período.

Comparativo da evolução da Covid-19 nos mesmos países

*[Dados coletados pela Universidade Johns Hopkins, nos EUA/ Número total de contaminados e mortos no planeta até 08:01:08 AM, de 06/04/2020].

Arte: Mídia Caeté

Números comprovam que países que não adotaram isolamento social tiveram crescimento bem mais acentuado, colocando a Itália em 1° lugar mundo em número de infectados, ultrapassando inclusive a China, e em 1° lugar no número de mortos, somando quase três vezes mais. A Espanha também acumula óbitos e já superou a China. Em todo o mundo, o total de pessoas contaminadas chega a 1.286,409 sendo 70.482 mortes confirmadas. Número atestam que Estados Unidos e Espanha superam a Itália em número de infectados.

Comparativo da evolução da Covid-19 no Brasil

*Dados do Ministério da Saúde coletados até o dia 05/04/2020.

Arte: Mídia Caeté/ Parte I
Arte: Mídia Caeté/Parte II

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