Cheque em branco ambiental: o papel determinante de órgãos públicos nos crimes cometidos pela Braskem

Relatório da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) confirma denúncias de vítimas da mineração e detalha responsabilização de órgãos
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FOTO: Divulgação.

O relatório produzido pela CPI da Braskem apresentou uma sequência de confirmações do que vinha sendo exaustivamente denunciado, relatado e exposto pelo conjunto de vítimas, pesquisadores e ativistas que buscam justiça diante do resultado desastroso da mineração empreendida pela petroquímica. Ao longo das 765 páginas da Comissão, a responsabilização da empresa não foi poupada pelos crimes de lavra ambiciosa de sal-gema, falsidade ideológica dos relatórios enviados às agências reguladoras e omissão na adoção de medidas de prevenção e correção. O documento que finaliza os trabalhos da Comissão também registrou a negligência do poder público – órgão por órgão – em seu dever de monitorar e fiscalizar a atividade da mineração ou no dever de reparação devida.

Já nas primeiras páginas do relatório, a conclusão de que a Braskem sabia da possibilidade de subsidência e, ainda assim, optou por avançar na exploração das cavernas de forma insegura. Essa conclusão é acrescida por dados que demonstram a falsificação de documentos públicos, omissão de dados e manipulação de órgãos de fiscalização. De forma objetiva, o relatório descreve que “há elementos materiais para imputar à Braskem, a seus dirigentes e a seus representantes técnicos, a responsabilidade civil e penal, por dolo eventual, pelo crime ambiental, que ainda se desenrola em Maceió”.

Citando exemplos de como todo esse caso, assim como o de Mariana e Brumadinho, configuram o que chama de “Estado de Coisas Inconstitucional”, o relatório insere o caso Braskem como um “evento sentinela”, de modo a servir de alerta para que não aconteçam mais casos de mineração “autorregulada” e sem fiscalização do Estado. A ideia é que se inicie um sistema de regulação da atividade minerária em todo o país que não seja mais de “fachada”.

“É preciso, enfim, que a atividade minerária, no Brasil, seja de fato regulada: não por uma regulação de fachada, capturada pelas empresas, que na prática decidem onde, quando e como querem minerar; mas por uma regulação de fato, com normas de eficácia real, fiscalização estatal efetiva, e auditoria externa e imparcial dos dados produzidos pelas mineradoras”, indica.

A contribuição dos órgãos públicos para o passe-livre catastrófico da Braskem é destrinchada – órgão a órgão – pelo documento, que já inicia analisando historicamente o papel da Agência Nacional de Mineração (ANM), antes denominada DNPM, classificando a fiscalização da atividade minerária em Maceió, pela União, como “praticamente inexistente antes de 2011, e tímida e inefetiva entre 2012 e 2018”.

A partir das ausências de vistorias – só duas fiscalizações in loco – e “confiança” no que vinha da mineradora, sem sequer checar seus dados, os registros demonstram quatro grandes falhas no controle poro parte da União, enumerdas na Comissão:

• Não foram realizados estudos ou procedimentos suficientes para periciar e validar os laudos apresentados pela Braskem e suas antecessoras;
• Não foram exigidos métodos alternativos mais eficazes para monitoramento de subsidência;
• Não houve acompanhamento da exigência de cumprimento do Plano de Fechamento das Minas inativas/exauridas; e
• Não foi coibida a lavra ambiciosa de sal-gema.

Segundo o relatório, a conduta pode ser assemelhada como um processo de “autorregulação do privado para o privado”, cuja preocupação com os riscos só iniciaram – e, ainda assim – de forma incipiente, em 2011.

“A partir de então, ocorreram fiscalizações anuais, mas que não foram efetivas, agravadas pela falta de respostas tempestivas e suficientes pela Braskem para comprovar que (não) realizava o devido monitoramento dos poços. Diante de todo o exposto, podemos concluir que, ao longo de todo esse período houve leniência na atuação do DNPM em seu processo fiscalizatório da mina em Maceió, a inobservância dos normativos que deveriam supostamente reger a atividade mineral no País, e uma relação de conluio entre regulador e regulado, em que um fingia que cumpria as solicitações, e o outro fingia que fiscalizava.”

FOTO: Divulgação.

Em 2018, o DNPM se tornou, de fato, Agência Nacional de Mineração (ANM), mesmo ano dos estremecimentos de solo. A CPI relembra a insistência do órgão, junto ao Ministério de Minas e Energia (MME) em caracterizar a instabilidade como resultante do neotectonismo e do estado geológico da região, agravado por eventos como as chuvas. Trocas de e-mail expostas pela CPI expõem a intenção de defesa da Agência -em detrimento do interesse público.

Em relação ao Ministério de Minas, a CPI não aprofundou a análise sobre sua responsabilidade em toda a subsidência, porém chegou a citar a negligência da pasta em propor a análise da caducidade da concessão de lavra da Braskem em Maceió, que, segundo o relatório, continua ativa, embora interrompida.

IMA E O CHEQUE-EM-BRANCO AMBIENTAL

As linhas dispensadas ao Instituto do Meio Ambiente (IMA) na CPI definem ter sido fornecido, utilizando as palavras do próprio relatório, um verdadeiro cheque em branco ambiental à mineradora que destruiu os bairros de Maceió.

Começa por não ter localizado documentos cruciais – como é o caso do Estudo de Impacto Ambiental (EIA), cuja exigência é fundamental para o licenciamento de qualquer empreendimento, junto ao Relatório de Impacto Ambiental (RIMA). No caso da Braskem, porém, simplesmente não se sabe se o Estudo foi perdido ou sequer existiu.

“Segundo depoimento do Sr. GUSTAVO RESSURREIÇÃO LOPES, atual diretor-presidente do IMA/AL, o citado EIA foi extraviado, restando apenas o RIMA encaminhado pela autarquia ambiental à CPI”, descreve. RIMA por sua vez, apresentado, “já provê uma forte evidência de que houve omissão dos riscos que a mineração apresentava e negligência no licenciamento ambiental do empreendimento localizado em área urbana da capital alagoana”.

Uma das informações mencionadas em determinado momento no Relatório de Impacto, acatada sem qualquer intervenção pelo Instituto, é de que “em relação à presença dessas cavidades subterrâneas, preenchidas com água, não se deve ter qualquer preocupação ambiental, uma vez que suas dimensões são totalmente controladas e previamente determinadas, e estão recobertas por camadas consolidadas de folhetos e calcários. Nesse aspecto, pode-se admitir uma segurança ambiental total em relação ao projeto do empreendimento descrito”.

Vale ressaltar que este RIMA foi produzido em 1986 e, segundo o relatório da CPI, ignora estudos anteriores – brasileiros e internacionais – inclusive um alerta da própria CPRM de 1972 que em uma operação de mineração do tipo que ocorreu em Maceió por décadas, “a grande dificuldade do sistema é fixar o diâmetro ‘crítico’ da cavidade, do qual depende a economicidade e a segurança do processo”.

A despeito de estudos e experiências semelhantes, a questão é que: se a Braskem dizia não ser necessário preocupação ambiental, então estava dito. Aliás, o próprio IMA corroborava em pareceres técnicos, como este que assinalava: “O procedimento deste tipo de lavra é usual e utilizado há bastante tempo em Maceió e no mundo sem ter havido danos ao meio ambiente”. Além do mais, as licenças de operação eram produzidas e renovadas sem a mostra dos documentos de processo de licenciamento. De modo geral, por fim, o relatório é taxativo ao afirmar que: É significativo o fato de que, se o IMA/AL tivesse analisado com diligência as informações recebidas da Braskem, a tragédia poderia ter sido evitada.

“No caso da extração de sal-gema de Maceió, não só não há indícios de que o Rima tenha sido avaliado, como também de que tenha havido ao menos um processo administrativo para acompanhamento do empreendimento no período de 19 anos, que vai de 1986 a 2005.”

O “cheque-em-branco” ambiental foi utilizado pela CPI na avaliação de um dos documentos, o Relatório de Avaliação de Desempenho Ambiental – Mineração /AL, cuja empresa se aportou de respostas evasivas e outras que mereceriam, no mínimo, questionamentos mais profundos, e simplesmente foram acatadas pelo órgão.

Além das falhas, finalmente, vem o jogo de competências. Quando questionado pelo relator da CPI, Rogério Carvalho (PT-SE), sobre a questão geológica ser ou não uma preocupação ambiental – e, portanto objeto de fiscalização do órgão – o representante do órgão desconversa ou insiste que trata-se de uma incumbência privativa da ANM.

Quem também buscou se eximir da responsabilidade, segundo o relatório, foi a Prefeitura de Maceió. Já começa declarando não ser responsável por qualquer situação relacionada à mineração, o que foi discordado no documento, que retoma as responsabilidades constitucionais com os recursos minerais repartidas entre município, Estado e União.

No que diz respeito à reparação, os acordos efetuados entre Braskem e Ministério Público Federal (MPF) foram tangenciados no relatório, a partir dos relatos de vítimas que retratam o modo como se viram coagidas a prosseguir com as assinaturas. Outro aspecto verificado no relatório diz respeito ao tratamento dispensado às vítimas diretas e indiretas da mineração. O apanhado de relatos reafirmou a natureza das “compensações”.

“Recebemos denúncias de coação moral, de assimetria nas negociações, acordos firmados em estado de necessidade, com cláusulas de confidencialidade, de quitação de obrigações e exoneração de responsabilidade. Sob patrocínio de agentes públicos. Recebemos denúncias de venda forçada, de falta de transparências nos cálculos e de subavaliação dos imóveis, por empresa escolhida e remunerada pela própria Braskem”, cita o documento. Mais adiante, são transcritas entrevistas a ex-moradores. Além disso, registram a diferença entre o valor inicial da causa, antes de ter sido suspensa em razão do acordo, e o valor definido nesse segundo momento:

FOTO: Waldson Costa.

“É flagrante o descompasso entre o valor inicial da causa (R$ 28,3 bilhões) e o valor do acordo (R$ 1,43 bilhão). Não ficaram claros os parâmetros levados em consideração, tanto pelo MPF quanto pelo juízo homologatório, para julgar razoável assaz diminuição do quantum ressarcitório. Além disso, os valores do acordo foram calculados a partir de análises técnicas encomendadas pela própria Braskem, sem validação ou interlocução com a ANM ou com o Órgão Ambiental Estadual, o que é de se esperar em uma ação civil pública que tem como objeto reparações ao meio ambiente.”

Entre as propostas para remediar as falhas, o relatório sugere aperfeiçoar os acordos feitos entre os órgãos públicos e a Braskem. Propõem que seja desfeita o que chama de “confusão conceitual” entre transação imobiliária e indenização por bens morais e materiais, bem como mencionam uma reavaliação dos imóveis e instrumentos de negociação mais participativos e transparentes, o relatório também é taxativo quanto à transferência de propriedade dos bairros à Braskem. A recomendação é de que haja uma transferência de volta a Maceió – como bem público – logo após estabilização do solo, “preferencialmente como área de proteção ambiental”.

Ainda no âmbito da reparação, a CPI recomenda a mudança da sede da Braskem – atualmente situada em área central da capital, no Pontal da Barra. “Isso porque a instalação do complexo cloroquímico alterou e limitou — e não para melhor — a direção do desenvolvimento de Maceió: desvalorizou o litoral sul, de imenso potencial turístico e urbanístico, que foi relegado a zona industrial; produziu impactos ambientais e paisagísticos na orla marítima e lagunar, com destruição de dunas e aterro de manguezais; e submeteu ao risco, e continua ameaçando, a população local”, especifica.

Aliás, em meio a diversas recomendações – que podem ou não ser acatadas pelos órgãos acionados no relatório – mudanças na legislação, especialmente no projeto de lei complementar de nº 140 – também foram indicadas de modo a dispensar maior poder sobre o licenciamento ambiental, para prevenir desastres especialmente na atividade minerária.

No que diz respeito à atividade minerária, por fim, a CPI conclui pelo que chama de que no Brasil é constituído de “Estado de Coisas Inconstitucional”, resultante, entre outras coisas, de falhas em políticas públicas. Neste sentido, também propõe o ajuizamento de ação de controle de constitucionalidade “ou outro remédio constitucional idôneo, com vistas a solucionar as disfuncionalidades dos órgãos apontados neste inquérito parlamentar que concorrem para a inoperância das políticas públicas de proteção ambiental relacionadas à atividade minerária”.

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