Ao longo de boa parte da história do mundo do trabalho, as greves se constituíram como instrumento de resistência de trabalhadoras e trabalhadores contra as experiências de opressão impostas por patrões. Ainda que determinados movimentos grevistas não possuam necessariamente o objetivo revolucionário de uma Greve de 1917, por exemplo, estas paralisações buscam no mínimo equilibrar as forças, alcançar direitos ou impedir que eles sejam retirados.
Em Maceió, duas categorias de trabalhadores que prestam serviço público para o Município chegam à marca de 612 dias de greve, uma longevidade que nem mesmo os próprios servidores imaginavam atingir. composto por agentes comunitários de saúde (ACS) e agentes de combate às endemias (ACE), o movimento vem se mantendo unificado, em meio às perseguições contra lideranças, lutas por manter o fôlego, e até mesmo algumas divergências quanto ao “até onde ir”: tudo em um contexto de diálogos frustrados, e longa batalha jurídica contra a Prefeitura de Maceió.
As categorias se reuniram a partir de quatro entidades – duas associações e dois sindicatos – para reivindicar a aplicação da Emenda Constitucional 120, de 5 de maio de 2022, que dispunha de um piso nacional de dois salários mínimos às duas categorias, cabendo à União arcar com o provento. A Emenda acrescenta, ainda, que cabe aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios estabelecer, além de outros consectários e vantagens, incentivos, auxílios, gratificações e indenizações, a fim de valorizar o trabalho desses profissionais.
O problema é que, segundo os trabalhadores, a Prefeitura insiste em produzir uma manobra que termina por transformar o piso dos agentes em teto, ao considerar os incentivos como parte já contabilizada dentro dos dois salários. O resultado disso é um desfalque na aposentadoria e no Plano de Cargos e Carreiras dos servidores.
De acordo com o presidente – por dois mandatos consecutivos – do SINDSAÚDE, Alessandro Fernandes, foram diversos os diálogos tentados com a gestão municipal, porém sem sucesso. “Apesar de diversas tratativas, não houve qualquer avanço. E mesmo agora, um ano e seis meses depois, não há previsão de que a prefeitura ceda e a greve finalize. Foram várias reuniões, as discussões acontecem, o prefeito sempre apresenta proposta sem prever o piso. Usa a justificativa de que não tem respaldo na legislação. Diz o prefeito que paga piso quando inclui agregados como insalubridade”, relata. “Na prática, a prefeitura descumpre com legislação nacional”.
Segundo o sindicalista, são mais de 1200 agentes de saúde em Maceió, sendo 530 são comunitários e cerca de 700 de combate às endemias. O grupo se organiza por meio de dois sindicatos, além de uma associação. Segundo os agentes, as decisões são produzidas tanto em assembleias unificadas, como a partir das reuniões em suas respectivas entidades.
Deflagrada em 10 de outubro de 2022, a paralisação sem previsão de fim integrava uma mobilização iniciada ainda antes, em 31 de agosto, dois meses antes, quando centenas de agentes realizaram a primeira ocupação. Alessandro rememora os primeiros momentos da mobilização.
“Passamos uma semana na Secretaria de Economia, com agentes e seus familiares. A Justiça mandou desocupar, então fomos para a frente da Secretaria de Saúde e acampamos por 15 dias”. Segundo Fernandes, o grupo se organizou em revezamentos, se dividindo nas tarefas diárias, de modo a conseguir resistir durante todo o tempo. “Na Secretaria de Economia, iríamos realizar só um ato, mas o secretário se recusou até mesmo a nos receber. Isso gerou um sentimento muito grande de revolta e decidimos ali mesmo ocupar”, conta.
Ainda durante este período, Fernandes rememora que os agentes conseguiram agregar diversas atividades, inclusive culturais, palestras e outros espaços para sensibilizar a população sobre a luta por direitos instaurada pela categoria.
A ocupação finalizou, entretanto, após outra decisão judicial de desocupação. Foi nesse momento que ocorreu a deliberação sobre o início da greve. “As lideranças sofreram processos administrativos por parte da prefeitura, numa tentativa de intimidar, mas prosseguimos”, conta. “Também buscamos nos reunir com o Município, a partir do setor de Mediação de Conflitos do Tribunal de Justiça, mas a prefeitura sempre surge com proposta de tirar o piso, que é nosso direito, ou usar ele como barganha para tirar outro direito”.
O preço de uma greve legal e duradoura
Há um mês, a presidente do Superior Tribunal de Justiça indeferiu o recurso do Município de Maceió, que buscava suspender a greve dos ACS e ACE. Esta é a segunda vitória na Justiça acumulada pelo movimento grevista. Em 31 de outubro de 2022, o desembargador Ivan Vasconcelos do Tribunal de Justiça de Alagoas (TJ-AL) já havia decidido que a greve dos agentes percorria todos os trâmites previstos na Lei da Greve (Lei nº 7.783, de 28 de junho de 1989).
A legalidade do movimento paredista se dá em razão do cumprimento dos requisitos: cumprimento das escalas de 30% exigidos pela lei, nenhuma ocupação de prédio ou espaço público, entre outras ações que poderiam ensejar uma decisão pela ilegalidade.
Por outro lado, o movimento atualmente tem se restringido à paralisação e tentativas de negociação com a Prefeitura, hoje sob mediação do Tribunal de Justiça. “Nunca nos negamos ao diálogo com a Prefeitura. Eles participam das sessões de negociação mas nunca trazendo de fato o cumprimento do direito”, conta.
Na verdade, segundo o sindicalista, as ações da gestão municipal são mais voltadas a incitar uma desistência sem vitória. Para isso, perduram em batalhas judiciais, perseguem lideranças e até estimulam dissidências no movimento, com propostas confusas. “Tentaram sensibilizar para que a categoria acatasse e quebrasse o movimento. São tentativas de minar o processo, e desestabilizar”, conta.
As ofensivas somam ao fato do percurso duradouro e ao cansaço dos trabalhadores, que prometem apesar disso não se render. “Na verdade, o instrumento de greve deveria ser por um período curto, de forma rápida e efetiva. Talvez a prefeitura não acreditasse que teríamos disposição para manter por um tempo tão longo, mas temos muita energia ainda pela frente”, relata.
Ainda segundo o presidente do SindSaúde, as preocupações de muitos agentes também se voltam ao momento crítico de avanço da dengue em Maceió. Segundo ele, a própria Prefeitura chegou a elaborar um relatório onde aponta o impacto da ausência do número total de agentes na realidade endêmica da cidade.
“A gente tem acompanhado de perto esse crescimento com muita preocupação e entendemos que o ônus tem que ser da Prefeitura, que não se esforça em reconhecer a importância da categoria. Eles precisam entender que ao não cumprirem a lei, estão causando um ônus para a população, que é a deficiência no atendimento”, conta. “Se eles possuem dados mostrando a situação crítica, porque não há empenho em priorizar isso?”.
Sem realizar mais ocupações ou maiores mobilizações, os sindicatos buscam hoje orientar os profissionais a conversar com a população durante os atendimentos. “Orientamos nossos companheiros no trabalho que conversem explicando os motivos da greve. Sabemos que a Prefeitura tem acesso e usa pontos de mídia para jogar. Não é fácil e ficamos preocupados com a longa duração, mas a gente tenta visitar as bases e manter todos atualizados e motivando os servidores. Temos total interesse dessa greve acabar, mas só há duas pessoas que têm previsão disso: o prefeito e Deus”.
Em várias medidas o sentimento é compartilhado pelo presidente do Sindicato dos Agentes de Saúde de ALAGOAS (Sindacs), Nelson Cordeiro, que também comenta sobre a longevidade e as limitações do movimento paredista para garantir estar dentro da legalidade.
“Não temos feito, atualmente, mais mobilizações além da greve em si. No momento, o que fazemos é aguardar um desfecho favorável, mas no momento não vislumbramos que tenha fim. Cumprimos a lei e trabalhamos com 30%, mas a Prefeitura não demonstra interesse em resolver o desfalque de agentes, mostrando que não se preocupa com a população”.
Em abril deste ano, a Prefeitura utilizou seu portal para anunciar um reforço nas atividades de agentes de controle de endemias diante do aumento de 73% dos casos de dengue notificados pelo boletim de arboviroses em relação ao mesmo período de 2023. Apesar da divulgação da ação intensiva, não houve maiores informações sobre como o trabalho seria de fato otimizado com o contingente de 30% dos agentes.
Em meio a esse processo, alguns grupos já chegaram à conclusão de que poderiam abrir mão de algumas exigências da greve. O presidente da Associação de Agentes de Combate às Endemias de Maceió (AACEM), Normande Monteiro, retrata:
“Município divulga que paga o piso, mas é uma fake. Nós, como servidores, reivindicamos o valor da tabela do Plano de Cargos e Carreiras, que cada pessoa a depender do seu nível é para receber esse valor. Mas o que a prefeitura faz é completar o valor para quem está no início de carreira, para chegar ao piso, sem cumprir com os 5% de quem está há mais tempo. Temos mais de um ano de lutas muito árduas. Fechamos Fernandes lIMA, ocupamos as secretarias de Finanças e Saúde. Em dezembro, quando tivemos uma assembleia, manifestamos em nosso grupo o interesse de negociar as pautas, desde que não mexesse nessa questão do piso. Os sindicatos não aceitaram. De qualquer forma, mesmo esse mínimo, que é garantia do piso, o Município não avança para resolver”.
Em meio a essas tratativas, o cansaço se acentua – não sem a certeza de que não será por exaustão que a categoria espera ser vencida. “Vem sendo muito desgastante para a gente, enquanto por vezes percebemos que a gestão nem sofre tanto, mas tudo depende de eles chegarem comua proposta de fato. Até agora, só ouvimos promessas”.
A Prefeitura de Maceió foi procurada pela Mídia Caeté para falar sobre o assunto, mas não retornou com nenhuma resposta.