A subserviência do exército de Caxias e sua estúpida retórica contra a Venezuela

Ilustração: Rafael Costa

 

Por Pedro Guedes e Bruno Lima Rocha

Introdução: servilismo colonizado e anti-bolivariano

Desde o início do governo de Jair Bolsonaro, um dos principais desejos de parcela do ambiente político e militar vem ganhando corpo: a realização de operações militares contra a Venezuela. Durante os governos Lula e Dilma (2003-2016), por mais que oficialmente o governo brasileiro tivesse boas relações com o país vizinho, políticos de carreira, personalidades ligadas a entidades políticas de direita e extrema direita, militares e até membros da administração pública, defenderam o rompimento diplomático e se possível, um confronto militar com a Venezuela. Assim que houve uma virada de mesa, quando o golpe com apelido de impeachment derruba o governo de centro da ex-ministra chefe da Casa Civil de Luiz Inácio, imediatamente os senadores tucanos Aloyisio Nunes Ferreira e José Serra avançaram de bom grado querendo ceder tudo para o Departamento de Estado do Império e petrolíferas amigas dos gringos. Na chamada guerra das redes, com a busca incessante por argumentos espantalhos, o país de Simón Bolívar e Ezequiel Zamora substituiu Cuba no imaginário da parcela brasileira do andar de cima e mais alinhada com o Comando Sul e o estilo “miamero” de estar no mundo. A questão que se segue é “por quê?”.

O país sul americano, que ao longo do Século XXI se tornou um parceiro econômico de considerável importância para o Brasil, possui uma característica que ou assusta ou ofende muitas pessoas no nosso país: um projeto político que seria baseado na interpretação chavista do Pensamento Bolivariano. A estupidez da direita brasileira insiste em elogiar o período anterior, o do Pacto de Punto Fijo, sendo este um acordo oligárquico entre os três maiores partidos políticos, definido em outubro de 1958 após o levante popular que derruba Pérez Jiménez. Quando o ex-presidente Hugo Rafael Chávez Frías foi eleito em dezembro de 1998, vindo a tomar posse em janeiro de 1999, seu compromisso político não passava em romper com o pacto oligárquico, combater corrupção e erradicar a pobreza. Uma vez que as finanças e recursos da gigante estatal petrolífera teriam de ser colocadas à disposição para o programa de distribuição de renda, seguida esta medida da convocatória e promulgação de uma nova Constituição, a direita começou a se retirar do processo político. Em abril de 2002 houve uma tentativa de golpe de Estado seguido de rebelião popular e contra golpe. Desde então nunca mais os partidos da oligarquia e da nova direita concorreram unificados, com exceção de abril de 2013, quando Capriles perde para Maduro por pequena margem. Chávez falecera em março daquele mesmo ano, tendo sido reeleito em outubro de 2012.

A política venezuelana já era muito conturbada com Chávez vivo, fica ainda mais dura, tanto no plano doméstico como no cenário internacional. Entre 2013 e 2016, Obama amplia os processos de bloqueio e sabotagem, e, a partir de janeiro de 2017 a posse de Donald Trump como presidente dos EUA radicaliza tudo, incluindo sequestro de bens, depósitos, garantias e ativos do Estado venezuelano.

Voltando ao tema do “argumento espantalho” no Brasil, porque direita e extrema direita brasileira detestam tanto o chavismo sem Chávez, assim como odiavam com o ex-tenente coronel vivo? Seria por uma reprodução automática da lista de inimigos dos EUA? Está relacionada com o emprego dos recursos da PDVSA na promoção social? Seria uma crítica honesta contra o culto à personalidade e a militarização do país? Não alimentamos ilusões de grandeza intelectual da laia “nacional”. Em tese, no discurso difundido, o “bolivarianismo” seria uma forma particularmente nefasta de “socialismo”, seja lá o que isso signifique na metástase intelectual que acomete coxinhas e galinhas verdes! Se há um ponto de encontro no ódio à Venezuela, esse decorre do preconceito que existe no Brasil contra qualquer pensamento político-filosófico que seja diferente da lógica servil e neocolonial que domina o pensamento de boa parte das elites e classes médias por aqui. Lógico, que tamanho servilismo é aos Estados Unidos da América, confundindo os interesses da Superpotência com o dessas frações de classe colonizadas, subalternas, racistas, exploradoras e parasitárias em grande medida.

A hostilidade contra a Venezuela chega aos quarteis

Essa hostilidade à Venezuela, como já dita antes, mesmo sendo presente em todo século XXI, chegou a um patamar inédito até aqui, com a realização de exercícios militares pelo Exército Brasileiro (também chamado de Exército “de Caxias) na Região Amazônica, em setembro de 2020. Esse exercício, chamado de Amazônia 2020, envolveu 3300 homens (equivalentes a um Regimento com efetivo completo), vindos de unidades de todos os cinco Comandos Militares existentes no Brasil [1].

Nesse exercício foi simulado o seguinte cenário: um país vizinho, denominado de “País Vermelho” invade o território do “País Azul”, que tem como objetivo, retomar os territórios perdidos, a partir de uma contraofensiva [2]. Ainda que a escolha das cores utilizadas possa suscitar possível direcionamento ideológico, com a cor vermelha sendo atribuída a Venezuela, cabe destacar que o padrão de identificação amigo/inimigo utilizada no planejamento das operações é baseado no padrão de identificação utilizado pela OTAN, o padrão BLUEFOR/REDFOR [3].

O que levanta suspeita quanto à execução do “Amazônia 2020” (que é realizado anualmente desde 2002) é a retórica cada vez mais hostil do Governo Federal, que em 2019 cogitou em participar de uma possível invasão à Venezuela, em conjunto com Colômbia e Estados Unidos [4].

Essa possível operação militar não atende a nenhuma necessidade formal e soberana do Brasil, pois os recursos naturais que a Venezuela possui o Estado brasileiro já é possuidor. Politicamente, uma hipotética vitória contra um país cercado, sob um bloqueio criminoso e escasso de bens fundamentais não nos traria prestígio algum na América do Sul. Muito pelo contrário. Uma provável derrota militar a partir da estratégia de resistência venezuelana, coincidentemente também defendida pelo Exército Brasileiro, mancharia ainda mais a reputação do país internacionalmente. Já a combalida economia brasileira, entregue aos desígnios neoliberais desde 2015, passaria maus bocados pelas restrições que o conflito poderia trazer. Mas então, o que move esse desejo do governo brasileiro hoje?

A ideologia servil e nada mais. Não é novidade o alinhamento ideológico do Brasil com os Estados Unidos, que vem desde os anos de 1940, no mínimo [5]. Contudo, desde 2015, vimos tanto a elite política brasileira como militares de alto escalão, explicitamente alinhados aos discursos e teses dos EUA. Após o golpe disfarçado de impeachment, o Governo Temer acelerou a subserviência do Estado brasileiro ao seu poderoso do Norte. Isso ocorreu a partir de duas maneiras e foi intensificado no governo Bolsonaro.

As duas formas de subserviência

A primeira forma de subserviência explícita foi assinatura de tratados militares com os EUA, onde temos a cessão do uso da Base Aérea de Alcântara, no Maranhão, sob as cláusulas no mínimo estranhas. Entre seus termos, está a proibição de pessoal brasileiro transitar em algumas áreas do complexo. O resultado mais visível desse acordo é a impossibilidade do desenvolvimento do programa espacial brasileiro, que ficaria refém das graças – ou garras do programa espacial estadunidense. Se fosse o caso de imitar o Império, teríamos de acelerar o programa espacial brasileiro ao invés de subordiná-lo a um país que lidera o setor Isso, no longo prazo, impacta no desenvolvimento de tecnologias [6].

Como se não fosse pouco, ainda há o pacto RDT&E (Sigla para Pesquisa, Desenvolvimento, Testes e Avaliação), que segundo seus entusiastas, seria o primeiro passo para inserir as empresas brasileiras no setor de defesa estadunidense. Entretanto, esse mesmo acordo abre o mercado brasileiro de defesa para as empresas dos EUA [7]. Enquanto a maioria das firmas do setor em nosso país são empresas pequenas, do outro lado temos a máquina do Complexo Industrial-Militar, composta por empresas gigantes, como a divisão militar da Boeing, ou a Lockheed Martin, que com facilidade, podem dominar e ampliar a desindustrialização do Brasil. Podem fazer isso através da aquisição de empresas menores ou a simples concorrência, com seus ganhos de escala e expertise.

Nesse ponto, ainda há o reconhecimento do Brasil como aliado prioritário extra-OTAN, que além de nos afastar da criação de soluções locais para os desafios dessa área, coloca o Brasil numa posição de amplificador local dos métodos e teses estadunidenses para a América Latina. Com isso importamos e espalhamos na América Latina “soluções” que são incompatíveis com os problemas das nações da região [8].

A segunda forma do estreitamento desse alinhamento irrestrito com os Estados Unidos ocorre pelo envio de oficiais para servir no âmbito do SOUTHCOM (Comando Militar do Sul Global dos EUA) [9]. Iniciado ainda no Governo Temer, essa ação declaradamente subserviente coloca em xeque a lealdade dos oficiais que para lá são enviados. Ao invés de defender o Brasil, mesmo em sua visão idealizada pela burocracia formal, estes militares prestam deferência à autoridade estrangeira, o que em hipótese de conflito, pode ser muito problemático. Além disso, o salário deste militar enviado para os EUA é pago pelo contribuinte brasileiro. Nós pagamos aqueles que em caso de ameaça militar, provavelmente não nos protegerão. Situação vexatória, absurda e injustificável.

O brigadeiro da Força Aérea Brasileira David Almeida Alcoforado, está no Comando Sul desde janeiro de 2020 e em outubro do mesmo ano foi alocado na como subdiretor na Diretoria de Estratégia, Diretriz Política e Planos (conhecida como J5), está encarregado de auxiliar no planejamento de operações do SOUTHCOM na área do narcotráfico [10]. Vale lembrar que tema esse que foi a desculpa para intervenções na América Latina nos anos 90. Além de trabalhar diretamente para uma potência estrangeira, expansionista e não interessada no desenvolvimento do Brasil, tem que passar por situações bizarras.

Em julho de 2020, o então comandante em chefe do Comando Sul das Forças Armadas dos EUA, Almirante Feller, em conversa com o ainda presidente Donald Trump, disse jocosamente que “o Brasil paga para ele (o brigadeiro brasileiro) trabalhar para mim”. O mesmo foi dito para um oficial colombiano, também enviado para o Southcom [11].

Conclusão: um conjunto de infelicidades

Infelizmente tudo o que foi descrito neste texto forma a mais pura verdade, absolutamente irrefutável. Mais infeliz ainda é a situação vexatória em que se encontra nosso país, incluindo uma razoável parcela de sua camada dominante, burocracia militar de carreira mais que incluída. A retórica estúpida que sempre mescla política doméstica com “pertença civilizacional ou universo de ideias absolutamente abstratas” tende a criar ainda mais cegueira na massa de repetidores cibernéticos, e amplia a capacidade do exercício cínico da falta de razão para interesse próprio. A infelicidade desta gente se completa ao constatarmos que a retórica estúpida contra a Venezuela é um eco das vontades do Comando Sul do Império. Por sinal, nesta instância imperialista é onde oficiais latino-americanos de alta patente trabalham de graça, sendo pagos pelos contribuintes de nossos países para atuar contra os interesses da América Latina.

Pedro Guedes é internacionalista e graduando em direito (pedro_0141@hotmail.com)
Bruno Lima Rocha (Bruno Lima Rocha Beaklini) é militante socialista libertário de origem árabe-brasileira e editor dos canais do Estratégia & Análise, Contato: blimarocha@gmail.com | facebook.com/blimarocha
Rafael Costa é desenhista e cartunista (E-mail- Rafael.martinsdacosta@yahoo.com.br. Instagram- @chargesecartuns )

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