“Não existe lugar seguro no mundo para as pessoas que não são cisgêneras e vivem sua identidade de gênero aberta publicamente. Quais são os privilégios que te impedem de enxergar essa realidade e tentar negar as violências?”. É com essa reflexão de Bruna Benevides, estampada logo em suas primeiras páginas, que se inicia o dossiê de assassinatos e violências contra travestis e transsexuais brasileiras em 2023. O documento, produzido pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) conta com 121 páginas e deixa claro que o Estado Brasileiro ainda tem muito a aprender sobre isonomia no tratamento aos seus cidadãos.
O dossiê está atualmente em sua sétima edição e sempre é laçado nos dias 29 de janeiro, data em que nacionalmente é celebrada a visibilidade trans. Logo na introdução, o leitor já recebe a trágica informação de que, em relação ao ano de 2022, o recém findado ano contou com um aumento de 10% no número de assassinatos cometidos contra a população trans.
Ao todo, foram 155 mortes de pessoas trans, sendo 145 vitimadas por homicídio e 10 pelo suicídio. Alagoas aparece no ranking na décima posição como um dos estados que mais mataram transsexuais; ao todo foram registradas 5 mortes, porém, acredita-se em subnotificações.
Para além dos dados, a Mídia Caeté conversou com duas mulheres trans a fim de entender suas trajetórias de vida e como, na prática, sofreram o impacto de viver em uma sociedade estruturalmente preconceituosa e que pouco oportuniza aos que não se incluem na hétero-cis-normatividade.
Por meio das narrativas das duas convidadas desta reportagem, é possível perceber a importância do engajamento na luta pelos direitos da população trans. A primeira entrevistada é Natasha Wanderfull, uma mulher trans de 53 anos que abandonou as ruas depois de mais de três décadas de prostituição para se tornar Técnica em Enfermagem, além de artista e militante da causa trans. A segunda é Eloisa (que gosta de ser chamada pelo apelido de Elô, por acreditar ser mais fofo). Aos 29 anos, ela é estudante universitária. Apesar das semelhanças nas histórias, é perceptível que avanços como, por exemplo, o acesso à educação e a maior popularidade no debate sobre o movimento trans impactam significativamente a história de cada pessoa transsexual.
A importância da militância e do desenvolvimento de Políticas Públicas voltadas à população trans
Aos 53 anos, Natasha Wanderffull da Silva é uma mulher comunicativa que narra com certa leveza experiências de vida impactantes. Dotada de um potente senso crítico, que a levou à militância nas causas do movimento trans, Natasha conta que lutou para deixar a vida de programas e se inserir no mercado formal de trabalho.
De acordo com ela, um dos principais empecilhos para que conseguisse um emprego (além do preconceito) foi a ausência de escolarização. Por isso, uma de suas lutas é para que sejam criadas oportunidades para a população trans. “As meninas (transexuais e travestis) não têm estudo, vão procurar algum emprego – tipo de vendedora – o pessoal olha torto. Aí, a saída delas é ficar na rua mesmo. Agora, imagina a pessoa com mais de 50 anos na rua? Sujeita à violência, a pegar IST… Deveria ter uma lei pra aposentar essas meninas, porque pode até ter capacitação, mas e aí? Você treina elas e depois de se formarem vão pra onde? Como vão se inserir no mercado de trabalho?”, refletiu.
Atualmente, Natasha trabalha como Técnica em Enfermagem em uma unidade de saúde da Prefeitura de Maceió e conta que lida diariamente com o preconceito. “Tem gente que me chama de Natasha apenas porque é obrigado(a) pela lei; outras pessoas, sinto que gostam de mim, mas elas às vezes conseguem ser preconceituosas até quando vão me elogiar. Um exemplo: teve uma senhorinha que disse que se eu fosse mulher mesmo não teria força de pegá-la”, esclareceu; “eu disse a ela que aquilo não era força, mas sim técnica”, pontuou.
Nasce a Acttrans: a proposta de mudança de vida por meio da arte
Para ser um exemplo para as “meninas” (como chama as colegas trans), Natasha fundou – em 2014 – a Associação Cultural de Travestis e Transexuais de Alagoas (Acttrans). Ainda de acordo com Natasha, que também é suplente do Fórum Nacional de Travestis e Transexuais Negras e Negros (Fonatrans) e Conselheira do Fórum LGBTQIAPN de Alagoas, a falta de espaço no mercado formal de trabalho é um dos principais fatores que levam transexuais à prostituição.
“Quando cheguei aqui, notei a situação muito precária, aí eu e mais duas amigas tivemos a ideia de criar o Transhow. No começo, ninguém ia assistir ao show da gente, hoje, atingimos um público de 150 pessoas e contamos com parcerias no Cine Arte Pajuçara e no Teatro Deodoro”, contou ela, demonstrando frustração quando o assunto é a empregabilidade voltada à população trans. “Ainda temos que lutar muito para conseguir leis que incentivem nossa entrada no mercado de trabalho”, disse.
A importância da representatividade na trajetória de uma menina trans: “fiquei sabendo da Roberta Close, da operação dela, e passei a ter esperanças”
O processo de descoberta sobre sua identidade de gênero também não foi fácil para Eloísa, de 29 anos; a jovem que hoje cursa Licenciatura em História na Universidade Federal de Alagoas (Ufal) conta com maturidade sua história, desde a infância até os dias atuais e estampa em suas vivências os dados trazidos pelo dossiê da Antra.
Assim como Natasha, Eloísa também sofreu com as ações preconceituosas antes mesmo de entender quem ela era. A jovem conta que ainda criança se interessava por figuras de poder e personagens femininos. “Eu comecei a apresentar sinais na minha infância, eu gostava muito de representações femininas que empoderavam que mostravam um certo poder, um certo jeito de conquistar, um certo jeito meigo ao mesmo tempo e isso inclui personagens como a Emília e a Própria Cuca, por exemplo. Também gostava de brincar de boneca, de ser mãe, de compartilhar com minha irmã todos os tipos de brincadeira, independente de gênero. Eu tenho esse jeito desde a infância, eu fazia xixi sentada”, conta.
E foi justamente quando o pai e a mãe passaram a observar com mais atenção que Eloísa apresentava ações tidas como do gênero feminino que os problemas começaram a ficar mais graves para Elo. “Eu me recusava a fazer xixi em pé e por causa disso, com a proibição dos meus pais – que diziam que aquele jeito de urinar era errado – eu comecei a evitar as idas ao banheiro e isso fez com que eu desenvolvesse infecção urinária e tivesse até mesmo que ser operada”, relatou.
Elo conta que quando passou a pela adolescência vivenciou um processo de rejeição para com o próprio corpo e que foi então que descobriu a existência da modelo Roberta Close e que ela havia passado pela cirurgia de resignação de sexo; “saber daquilo me deu esperança”, compartilha.
“Independentemente de eu fazer terapia, ir ao psiquiatra. Nada disso muda o que me aconteceu no passado”
De acordo com o dossiê elaborado pela Antra, “em 2023, foram catalogados 10 casos de suicídio, sendo 1 deles uma pessoa não binária (AMAB208), 4 casos entre homens trans/transmasculinos e 5 travestis/mulheres trans. Analisando os dados dessa pesquisa em relação às identidades de gênero, têm sido as travestis e mulheres trans o grupo que mais comete suicídio, enquanto homens trans e pessoas transmasculinas são os que mais têm ideações suicidas”.
Lidar com o bullying na escola e a pressão dentro da própria família não foi uma tarefa fácil para Elo. Conforme ela crescia, conta que passava a entender que seu corpo não se encaixava em padrões femininos e, por isso, passou a “se odiar”: “ na puberdade, “Esse processo da infância ficou complicado quando meus pais me pegaram fazendo xixi sentada e colocando a mão na cintura, disseram que isso era coisa do diabo”, contou.
Os constantes embates fizeram com que Elo desenvolvesse um quadro de depressão. “A minha família saiu da igreja depois que tentaram me exorcizar. Eu entrei na Ufal com a saúde metal bem prejudicada, tive que começar a tomar remédios controlados. Hoje em dia, minha mãe me apoia na terapia hormonal, disse ela que revelou já ter tentado suicídio algumas vezes.
Conquistas do Movimento Trans ao longo dos anos
No ano de 1971, foi feita no Brasil a primeira cirurgia de mudança de sexo em uma mulher trans e, em 1977, o procedimento foi realizado em um homem trans.
Já em 1990, a Organização Mundial da Saúde (OMS) retirou a homossexualidade do rol de doenças mentais; nesse mesmo ano, a modelo Roberta Close foi a primeira modelo trans a posar nua para a revista playboy – no ano de 1989, ela havia feito a cirurgia de resignação de sexo. No ano de 2004, foi instituído o Dia Nacional da Visibilidade Trans após – no dia 29 de janeiro – 27 travestis e transexuais irem ao Congresso Nacional reivindicar seus direitos e obterem êxito com a criação de um comitê específico no Ministério da Saúde para tratar de questões relativas à saúde de gays, transexuais e travestis.
No ano de 2018, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que transexuais poderiam modificar nome e gênero nos Cartórios, sem que houvessem processos judiciais.