Resumo
Casos cotidianos da violência LGBTfóbica que invadem lares, ruas, locais de trabalho e escolas não poupam o que deveria ser um local de descanso e descontração. Bares e restaurantes em Alagoas ainda são considerados ambientes inseguros para pessoas LGBTQIAP+. O sentimento se confirma com casos cotidianos que, por vezes, extrapolam o constrangimento sofrido pelas vítimas já agredidas no local, e chegam às zonas de denúncia formal ou furando a bolha nas redes sociais.
Estudante de psicologia, Estrela estava na praia da Jatiúca, em Maceió, quando conheceu uma turista na Bahia. Logo se tornaram amigas. Após diversos passeios, decidiram entrar em um barzinho da orla da Ponta Verde. “Indiquei um bar que gostava do ambiente. Quando chegamos, ela pediu para ir ao banheiro e fui com ela. Estava com roupas praianas, short curto e tudo. Foi aí que o garçom veio dizer que o banheiro era masculino. Informei que estava apenas acompanhando a amiga. Fechei a porta e aí ouvi ele batendo novamente e dizendo que não era para ‘viadinho’ usar o banheiro. Tive que me deslocar para o masculino porque naquele não tinha direito nenhum de entrar”, conta.
Estrela diz que, com o choque das palavras, não conseguiu retrucar. “Minha amiga queria chorar. Pedi para ela se acalmar. Sequer podia lavar o rosto. Então peguei o celular e comecei a gravar a situação, desabafando. Foi aí que o garçom chegou e me deu um tapão que caíram meus óculos. Começou a xingar. Tentei acionar a polícia no estabelecimento e não consegui. Liguei três vezes e nenhuma viatura foi ao local”, relata.
Decidida a não deixar a situação impune, Estrela se deslocou até um posto da OPLIT na praia e avisou aos policiais, que pediram para que esperasse um carro. “Estava com muito medo e muita agonia. Primeira vez que sofria homofobia dessa forma. Tenho 28 anos e nunca havia sofrido. Consegui uma viatura que passava pela rua e perguntaram do que se tratava. Falei que era homofobia e foram comigo até lá”.
Ao chegar de volta ao bar, Estrela conta que o funcionário tinha ido embora. “O gerente não ficou ao meu favor e veio questionar por que eu estava utilizando o banheiro feminino. Não perguntou em nenhum momento o motivo do meu rosto estar vermelho e arranhado. O dono disse que era advogado, que só falava com autoridades. Ele ainda disse que havia pessoas com ‘opção sexual igual a ele’ apontando para mim sem sequer me olhar. Eu respondi ‘moço, não é opção. É identidade de gênero. Ninguém tem opção por ser minoria, por levar tapa no rosto’. Foi aí que os policiais pediram para falar com ele à parte”.
Estrela conta ter percebido que a conduta dos policiais foi acolhedora. “Perguntaram na sequência se eu queria fazer o Boletim de Ocorrência e dar continuidade, eu disse que sim. Fui na delegacia no Farol, fiz o B.O. Na segunda seguinte, fui na delegacia especializada para ser ouvida pela delegacia. E ela disse que abririam o inquérito”, esclarece.
Estrela não é a única
Menos de três semanas antes do episódio de LGBTFobia contra Estrela, em agosto deste ano, outro caso violento aconteceu dentro de um bar e tomou repercussão no estado. A advogada Bruna Quintiliano e a namorada, Letícia Cantuária, denunciaram ter sido vítimas de lesbofobia em um restaurante no bairro da Cruz das Almas. O casal recebeu diversas ofensas de um cliente dentro do estabelecimento. Após denúncia formalizada, o restaurante chegou a emitir nota à imprensa repudiando a agressão e informando estar disponível às autoridades para apuração do caso e punição do acusado.
No caso de Estrela, o sentimento de ter sido vítima de violência foi acentuado em razão da conduta do restaurante em corroborar com o ato de agressão.
“Até então tenho vivido tudo novo. O sentimento mudou para algo que nunca senti antes. É uma dor nova e uma revolta nova. Sempre me revoltava por minha comunidade, mas quando acontece com a pessoa, a gente vê como está totalmente vulnerável. Como posso receber um tapa, tiro, facada. E, agora, será que vou me sentir seguro novamente em sentar qualquer barzinho, em querer ir ao banheiro? Se tiver no banheiro, qual que vou pertence? Não sei nem se pertenço a esse mundo”, conta. “Foi uma agressão nítida. Na delegacia, falaram que não houve e que cheguei lá fazendo baderna. Tenho 28 anos e não tenho a menor razão de fazer isso. Chega a ser sem lógica”.
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Vídeo mostra momento em que Estrela sofre agressão dentro de bar. Imagens: arquivo pessoal
Presidente da Comissão de Diversidade Sexual da Associação de Advogacia de Alagoas e integrante da Comissão de Diversidade Sexual da OAB, o advogado Giovanny Souza está acompanhando o caso e informou que já tem sido encaminhado ao Poder Judiciário para as reparações cabíveis. “Pelas autoridades, na situação imediata, o que podemos dizer é que foi bem conduzido. Já o estabelecimento não ofereceu o acolhimento devido, o que é muito comum acontecer”, avalia o advogado, que tem contato com outras vítimas.
Para Giovanny Souza, a implantação da Delegacia de Vulneráveis foi um avanço, por começar a estabelecer um registro de casos e, a partir da reunião de dados, favorecer o surgimento de políticas públicas. Criada em agosto deste ano, a a Delegacia Especial dos Crimes contra Vulneráveis Yalorixá Tia Marcelina teve ampla repercussão como resultado de constantes cobranças de movimentos socais no Estado.
A Mídia Caeté tentou contato com a delegada titular, Rebeca Cordeiro, mas não tivemos retorno nos contatos iniciados. “Nós temos esperança que, com as estatísticas, tenhamos um enfrentamento mais consistente”, explicou o advogado.
Avanço de legislação não é acompanhada por mudanças
No entanto, bares e restaurantes já têm o dever de evitar e combater este tipo de crime de ódio. Desde que equiparada pelo STF ao crime de racismo, há dois anos, qualquer violência com motivação LGBTfóbica já é crime previsto na Lei 7.716/89.
Além do mais, desde 2009 Maceió já possui um decreto municipal que reprime práticas LGBTfóbicas em estabelecimentos comerciais, potencializando uma regulamentação ainda mais antiga: a Lei 4667/97 que previa da advertência até a cassação de alvará aos locais que agissem com qualquer tipo de discriminação. A lei pode ser verificada aqui.
De acordo com Giovanni Souza, a legislação não vem sendo suficiente. “Tem lei municipal prevendo multa por qualquer tipo de discriminação, mas não é amplamente divulgado porque os estabelecimentos não dão atenção a isso. Eles dizem que acolhem o segmento, mas quando acontece esse tipo de situação, se mantêm inertes e tentam abafar, o que não é o correto. Eles precisam ser multados: tanto o estabelecimento, quanto o agressor. E precisam sofrer as sanções previstas em lei, inclusive sob o enquadramento no crime de racismo, conforme decisão do STF”, acrescenta.
A Associação de Bares e Restaurantes em Alagoas (Abrasel) confirmou à Mídia Caeté, por meio de assessoria, que não há nenhuma campanha, medida, ou qualquer ação coletiva preventiva ou combativa, por partes dos bares e restaurantes, em relação a crimes de LGBTfobia.
Segurança apenas em lugares gay friendly
Cida Feitosa é mãe solo, ativista de Direitos humanos e LGBTQIAP, coordenadora da Associação Brasileira de Famílias Homotransafettivas ( ABRAFH) , coordenadora no Agreste da ONG Mães da Resistência, e Vice-Coordenadora Geral do Coletivo Mulheres Alagoanas no Agreste. A partir de todos estes lugares, a ativista avalia as condições extremas de insegurança das pessoas LGBTQIAP+, ao tempo em que entende todo o contexto que só vem reforçando a situação de violência.
“Considero muito arriscado, especialmente após o governo vigente. Banalizou-se a transfobia, LGBTfobia , lesbofobia, misoginia e racismo. Apesar de existirem leis que punem a LGBTfobia como crime, infelizmente não há boa vontade por parte de parte da sociedade hetero-normativa e patriarcal de aplica-las e respeitá-las”, comentou, corroborando com os relatos do representante da Comissão de Diversidade Sexual.
Quando se trata de estabelecimentos comerciais voltados ao segmento de lazer, a segurança oferecida ao segmento é também problematizada. “Absolutamente nenhuma, a não ser que seja um lugar gay friendly, ou um gueto LGBTQIAP+, é que realmente nos sentimentos mais segures. Mas nos demais lugares, além do olhares arrogantes e pretensiosos, muitos ambientes não respeitam a lei municipal e federal, que determina que sejam tratados todos da mesma maneira. Quando acontece algum ato Lgbtfóbico, muitos deles não são punidos”, reitera.
Para Cida Feitosa, uma vez devidamente informados sobre a lei, os estabelecimentos deveriam adotar uma postura mais ativa, mesmo para prevenis os casos. “Treinar seu funcionários para que saibam lidar com estas questões. Também deveriam colocar placas informando que cumprem a lei. Acredito que qualquer estabelecimento comercial, órgãos públicos, hospitais etc devem se adequar e educar seus funcionários e serem responsabilizados subsidiariamente por atos lgbtfóbicos”, ressalta, acrescentando que a lei prevê a afixação de placas prevendo punição aos atos LGBTfóbicos. “Mas te pergunto: você vê essa placa em todos os estabelecimentos?”, questiona. “Eu andei em vários bares da Jatiúca, Ponta Verde, e não vejo”.
Enquanto as leis vêm sendo descumpridas, restam os guetos e alternativas que preveem maior confinamento, além de um medo que se torna presença constante. “Nós nos reunimos na casa de amigos, recebemos em casa e procuramos andar sempre em grupos e nunca sozinhos. Eu sinto isso na pele e morro de medo por meus filhos também. E resta o medo de sair de casa , encontrar amigos e de ter uma vida social como qualquer outro jovem, correndo sérios riscos de vida devido às agressões que a nossa população LGBTQIAP sofre no Brasil. Para se ter uma noção, o Brasil é o país com maior número de assassinatos dessa população. De acordo com o Grupo Gay da Bahia (GGB), com dados de 2021, ocorrre uma morte a cada 29 horas, porém o número real deve ser ainda maior. O levantamento foi feito em parceria com a Aliança Nacional LGBTI+. Foram 276 homicídios (92% do total) e 24 suicídios (8%) no ano passado.Os gays são metade das vítimas, com 153 casos (51%)”, contabiliza a ativista.
Algumas alternativas vêm se demonstrando úteis para esta busca de lazer com segurança. Uma delas trata-se da plataforma Mapa LGBTI+, que faz o mapeamento, construído colaborativamente pelos próprios usuários, de lugares amigáveis à população LGBTQI+ no país.
Paliativas, no entanto, estas alternativas não prescindem a necessidade de que o respeito seja base em todo e qualquer lugar para todas as pessoas, incluindo a totalidade de bares e restaurantes, que deve ser garantida. E é neste sentido que, apesar dos avanços reconhecidos na legislação, Cida Feitosa acrescenta o quanto é necessário ir além. “É preciso trabalhar a pauta na educação, na família, para que haja de fato o respeito à população LGBTQIAP como seres humanos. Temos uma educação segregadora e que não luta contra o machismo e a Lgbtfobia . O preconceito maior está com pessoas trans e gays”, diz. “Além disso,
Serviços:
Lei n° 6.800 de 08 de Novembro de 2018: Dispõe sobre a obrigatoriedade de afixação de cartazes em estabelecimentos comerciais e órgãos públicos sediados em maceió informando das penalidades por discriminação em virtude de orientação sexual.
Lei Municipal 4.667/97, de Maceió/AL: Estabelece sanções às práticas discriminatórias a livre orientação sexual na forma em que menciona e dá outras providências.
Delegacia de Crimes contra Vulneráveis Yalorixá Tia Marcelina:
Endereço: 1765, Av. Comendador Gustavo Paiva, 1725 – Mangabeiras, Maceió – AL, 57031-530