Da estética à iluminação. Cheiros, música, temperatura. Através da ambientação, as grandes redes de supermercado adequam o negócio à necessidade de que a clientela permaneça o máximo de tempo possível no local. “Criar uma experiência para o consumidor” e “engajar os clientes” são as palavras-chave para quem deseja converter o bem-estar em lucro. Como todas as regras mercadológicas que se apresentam ‘universais’, essa é mais uma que convive perfeitamente com as contradições do racismo estrutural. Esse sim, anterior e definidor, seleciona para quem esse ambiente feito para ser acolhedor se tornará um dos mais hostis e arriscados.
Acreditar que a passagem do tempo é suficiente para superar e até dizer alto que “já estamos em 2020” resolve tanto a questão quanto a ilusão de que a melhoria das etiquetas comerciais irão romper com a insuportável feiura de uma estrutura que condiciona o comportamento violento, o olhar, a seguida discretamente agressiva – ou nem tanto – entre os corredores, a tortura e o assassinato. João Alberto foi espancado até a morte em um supermercado do Carrefour, em Porto Alegre. No sábado seguinte (21) seguinte, um jovem negro de 19 anos foi colocado dentro de um sala do G Barbosa, no Tabuleiro do Martins, em Maceió. O supermercado faz parte do grupo Cencosud, que já precisou se explicar por acusação de práticas racistas em um de seus supermercados no Rio de Janeiro. Em Maceió, a situação foi ainda mais extrema: a vítima foi torturada por mais de três horas até ser obrigada por seguranças do estabelecimento a gravar um vídeo confessando um crime que não cometeu.
Sob força de uma grande pressão popular e antiracista nas ruas, o Carrefour chegou a propagandear na imprensa uma lista de medidas administrativas que afirma estar adotando para evitar cometer mais crimes como o que ocorreu com Beto. É pelo menos a sexta vez, entretanto, que a rede protagoniza situações extremas de racismo, violência ou desrespeito à vida humana. Em Alagoas, a rede é representada pelos supermercados Atacadão, que já foi condenado na Justiça do Trabalho por assédio moral contra funcionários.
Se o Carrefour tenta apagar o fogo e reduzir a imagem negativa focando a publicidade numa ‘solidariedade à família da vítima’, o G Barbosa, no entanto, vem reagido de forma diferente. Nenhuma resposta vem sendo dada para minimamente retratar a situação. A Mídia Caeté procurou a administração por telefone e através do portal, enviando e-mail no setor específico da imprensa em duas oportunidades. Até o momento não recebeu nenhuma resposta.
Não foi só silêncio que saiu dali. De acordo com o advogado da vítima, Basile Christopoulos, o retorno do G Barbosa veio através de mais hostilização e até acusações. “O supermercado tem escondido várias informações. Não tivemos acesso a filmagens. As imagens de pessoas furtando não são do meu cliente, que nem estava no supermercado nesse dia 18. O que foi filmado, na verdade, foi um rapaz cometendo um furto no dia anterior e a única semelhança com meu cliente é de que o jovem em questão também era negro. Isso só reforça a perspectiva racista”, explica.
No momento, as imagens foram recolhidas pela Polícia Civil e quem deve cuidar do caso é o delegado Oldemberg Paranhos. “Mesmo que ele tivesse cometido esse crime de furto, o que não foi o caso, nada justifica o crime de espancamento, tortura. Colocaram um saco em sua cabeça e utilizaram técnicas de tortura como um pescoço entre as pernas de um agressor”, detalhou.
Ainda segundo o advogado, embora o supermercado tenha encaminhado imagens de furtos anteriores, o lugar onde o rapaz foi agredido não havia câmeras. “Tem imagens com ele sendo conduzido contra a vontade até essa sala de monitoramento”, relata o advogado. Toda a abordagem violenta aconteceu das 10h40 até às 14 horas, quando ele deixa o local machucado. Só então equipes da Polícia Militar foram acionadas e solicitaram imagens, liberando o rapaz.
“Não entraram em contato comigo ou com a vítima. Pelo contrário. Entraram em contato com jornais e enviaram uma nota dizendo que ele tinha feito exame de corpo de delito dois dias depois, o que também não é verdade. Ele fez no mesmo dia e temos aqui a prova com a data. A postura deles é a pior possível. Negando o fato, colocando em dúvida a honestidade do cliente para que ele tenha sua moral ainda mais abalada. E a gente sabe o quanto isso é motivo para não encontrar emprego”.
Segundo Basile Christopoulos, até o momento, o pai do garoto segue bastante abalado. “Meu cliente ficou muito mal no dia, com dores no rosto. Ele foi espancado basicamente no rosto e ficou muito machucado, sem conseguir comer. Ficou dias sem sair de casa, sem ir para rua. Saiu apenas para comprar o celular – que é o que ele queria fazer desde o começo – e conseguiu comprar em outro lugar. O pai dele também chora muito, em todos os lugares que fomos. A mãe tem problema cardíaco e, por isso, vem sendo poupada”, explica.
Até o momento, em busca da Justiça, já percorreram para a Secretaria de Direitos Humanos, o Ministério Público, a OAB e, em breve, também deverá ter uma reunião com o presidência do Tribunal de Justiça.
“Pela resposta que o supermercado vem dado a um fato tão grave como esse, a tortura deve ser repreendida em qualquer nível e circunstância. Imagine em um lugar privado. A resposta do supermercado é muito ruim, o que mostra como vem compactuando com essa prática. É preciso uma reparação drástica do dano que vem sendo causado para que não possa causar a mais niguém.
Segundo Basile, todos os documentos e provas vêm sendo reunidos para uma ação judicial. “Vamos voltar à delegacia para buscar as imagens que vão subsidiar a ação civil de reparação de danos e para que possamos atuar também como assistente de acusação na prática de crime de tortura, com fundamento racial”. Explica. “Vamos incluir como crime de tortura, mas – óbvio – motivado por questões raciais. Embora eles não tenham xingado, o componente racial é importante. O vídeo que ele viu no dia de outra pessoa furtando a loja, o único fator em comum que ele tinha com a pessoa era o fato de ser negro e jovem”.
“Já é muito difícil para uma pessoa negra entrar em um supermercado ou em um shopping sem ser constrangido, imagine você ser violado, espancado, violentado e acusado publicamente. É algo que vai além”.
Enquanto o racismo silencia ou revitimiza, o enfrentamento também não se cala: vem em voz alta e na rua. No fim de semana seguinte, movimentos sociais se reuniram em um protesto, percorrendo as ruas do Tabuleiro até a frente do G Barbosa. “O ato teve uma motivação antiracista e também pelo estopim que foi o caso do G Barbosa. Vem como reflexo dos vários casos de racismo que vem tendo visibilidade no mundo inteiro”, relata Geysson Santos, integrante da equipe Cia Hip Hop e do Instituto do Negro de Alagoas.
Antes da mobilização chegar ao G Barbosa, uma viatura da Polícia Militar já estava no estacionamento. O supermercado, por sua vez, decidiu fechar as portas provocando incômodo a consumidores que queriam deixar o local com seus carros, enquanto culpabilizavam os integrantes da manifestação. Apenas diante da chegada de mais viaturas da PM para salvaguardar o patrimônio do estabelecimento – um total de quatro viaturas ficaram paradas ao redor do ato – a administração decidiu abrir os portões. Do lado de fora, a mobilização não dispersou até finalizarem todos os discursos, ao menos para o momento.
“Esse ano foi bem marcado por manifestações antiracistas. No início da pandemia, houve manifestação em Maceió que não teve muita perna, mas agora acredito que vem mais nesse reflexo. As pessoas não estão mais dispostas a morrer ou apanhar. Ninguém está mais disposto a dar a vida por nada e deixar as pessoas passarem por isso. A pauta desse ato é viver”, comentou.
“O país que existe racismo, mas não existe o racista”
E a pauta do ato e de outros já programados, não para no G Barbosa. O ato também pede justiça por Beto e questiona onde está o Jonas, desaparecido há dois meses, após ser levado por uma guarnição da Polícia Militar, em uma rua pública na Grota do Cigano, bairro do Jacintinho. O ato também pede justiça por Marielle, relembra os casos cotidianos de racismo e grita com vozes e cartazes: os racistas não passarão. Nessa equação que usa a realidade como base, não importa se racistas não queiram ser chamados de racistas.
“É uma prática comum e, quando acontecem casos como esses que são expostos, não assumem a responsabilidade. O Brasil é o país em que existe o racismo, mas não existe o racista. “Até agora o G Barbosa não fez nada”, comenta Geysson. “A tortura é uma prática que vem da rua, é produzida pela polícia, que faz isso na rua, e reproduzida por seguranças que geralmente são PMs que trabalham na folga e fazem bicos em supermercados. Eles só reproduzem lá dentro o que fazem na rua cotidianamente”, diz.
Não é possível ser negado. Ainda mais quando o Atlas da Violência de 2020 demonstra que 75.5% das vítimas de homicídio são negras no país e que Alagoas desponta no Nordeste: para cada não negro assasinado, 17 negros são vítimas deste crime.
Por outro lado, o enfrentamento ao racismo também vem ganhando uma visibilidade ainda mais cotidiana. “O que está acontecendo é centralização das lutas. Centralizar a galera que luta cotidianamante de forma dispersa para que a luta antiracista ganhe um corpo, mostra também como tem pessoas que já fazem a discussão no cotidiano”.