Resumo
Diante do cenário de distanciamento social que estamos vivendo, naturalmente temos consumido mais entretenimento. Filmes, livros, músicas tem ocupado e qualificado o tempo, ou pelo menos a parte dele em que conseguimos relaxar – muitas vezes por méritos da arte e da cultura.
São muitas as obras que nos dão suporte para refletir o momento por uma perspectiva diferente ou simplesmente nos transportam para outro lugar sem vestígio do coronavírus. A produção de tantos artistas são um oásis em qualquer época, mas se tornaram ainda mais essenciais ao dar cores a dias tão cinzentos.
“Tenho lido mais livros, escutado mais músicas, visto mais danças. A arte é o que está me salvando na quarentena, é o que está mantendo a minha sanidade. E tenho buscado observar a arte produzida por outros artistas que antes eu não observava, para aprender algo novo, olhar o mundo de outras perspectivas e não apenas com o olhar dos artistas que já conhecia”, nos contou Reginaldo Oliveira, que é docente da Escola Técnica de Artes da Universidade Federal de Alagoas (UFAL), mestre em dança e dançarino da Companhia dos Pés.
Nilton Resende, que é professor adjunto de Literatura da Universidade Estadual de Alagoas (Uneal) e integra a Cia. Ganymedes de teatro como diretor e ator, também fala sobre como o período é difícil.
“Tenho sim consumido mais arte: tenho visto mais filmes e tenho lido mais. E continuo trabalhando na escrita de um romance”, conta o também escritor, autor de três livros já publicados: O Orvalho e os Dias (poesia), Diabolô (contos) e A construção de Lygia Fagundes Telles: edição crítica de Antes do Baile Verde.
“Mas não se pense que este período tem realmente nos deixado com mais tempo, porque grande parte do dia eu passo em frente ao computador, em trabalhos remotos: reuniões com professores, reuniões da universidade, orientações de tcc, preparação de artigos, leitura e julgamento de artigos como avaliador para revistas, orientações em grupos de pesquisa… Tenho passado mais tempo trabalhando do que o período antes da pandemia”, completa Nilton.
E, se para muitos a arte tem sido uma solução na quarentena, para quem vive dela esse período tem sido um problema maior. Sem apresentações, cachês ou bilheterias, a cena cultural está parada devido às recomendações das autoridades de saúde em todo o mundo.
A cantora Mel Nascimento, bacharel em Canto pela UFAL, com o CD Um bando de Samba (2014) e com o álbum FORÇA DE MULHER em fase de gravação, avalia o período. “Primeiro que financeiramente foi um baque já que a minha atividade principal é a música e a outra questão é o distanciamento; é inegável a vontade de estar no mundo fazendo o que mais me dá sentido. Ainda mais quando o samba, que é o meu xodó, tem como normalidade a coletividade e aglomeração”, afirmou. Ela também classifica as lives periódicas que faz como “um respiro”.
Para Laís Lira, atriz, formada em Artes Cênicas: Licenciatura em Teatro pela UFAL, e integrante da Cia do Chapéu também como produtora, o período de pandemia afetou de mais de uma forma. “Quando as medidas de distanciamento social começaram eu tinha dois shows com a banda Artehfato previstos para abril. Ambos foram cancelados, o que acarretou a não entrada financeira dos respectivos cachês”, explicou a também cantora e compositora.
“No teatro não tínhamos apresentações previstas para o momento até então. Entretanto, eu estava ensaiando um espetáculo, que tinha previsão de estrear em agosto/setembro. O que não acontecerá, visto que paramos os ensaios presenciais. Ou seja, como é de se imaginar, tudo precisou ser revisto e está sendo ressignificado”, destacou.
Políticas de apoio
No começo de abril, o Governo Estadual, por meio da Secretaria de Cultura, lançou um edital que promove um festival de “lives”. Os artistas contemplados farão apresentações de suas casas, transmitidas pelas próprias redes sociais e divulgadas nos perfis da Secult. A iniciativa deve contemplar 340 artistas e movimentar R$ 300.300,00.
“Lembramos que essa iniciativa é de caráter emergencial. Assim como todo o mundo, nós não esperávamos ter que lidar com essa pandemia. Nós tínhamos um planejamento que foi interrompido por causa das circunstâncias, mas não podíamos ficar parados, visto que a cultura, além de um papel social, também exerce um papel econômico, já que representamos 7% do valor do PIB”, disse a secretária de cultura, Mellina Freitas, à Agência Alagoas.
Cerca de duas semanas depois, porém, alguns artistas protestaram na praça dos Martírios. Eles criticavam o edital, que não contempla a todos os artistas da categoria, e a falta de medidas imediatas.
Reginaldo compreende a insatisfação acerca do certame. “Não há ação e nem aproximação por meio das secretarias tanto municipal quanto estadual. Foi feito um edital pela Secretaria de Estado da Cultura completamente errôneo e incoerente com a produção, com a necessidade dos artistas e com o próprio período do isolamento”, explica.
O dançarino e professor ainda cita que há algumas ações de artistas acontecendo para suporte da classe e menciona a do Fórum de Teatro de Maceió. “Há uma série de ações de capacitação, de reflexão crítica, de cobrança das autoridades responsáveis pelas instituições de cultura na providencia de ações concretas para o setor artístico”.
Mel Nascimento também avalia a postura do Estado diante da urgência da classe. “Quanto ao estado sinto um pouco de morosidade no quesito edital de emergência e falta de interesse em dialogar com os participantes do Conselho Municipal”, disse.
A cantora, que também é líder do grupo Mulheres na Roda de Samba, cita outras iniciativas como o Conselho Municipal de Políticas Culturais (CMPC) “onde todas as linguagens culturais dialogam tentando chegar a um censo comum para beneficiar principalmente aos artistas que estão vivendo em situação extrema” e o suporte da Fundação Municipal de Ação Cultural como “muito importante”.
Laís, por sua vez, coloca o edital estadual como uma iniciativa que minora o impacto econômico sofrido pelos artistas. “No âmbito estadual e municipal, algumas iniciativas, como o edital ‘Dendi Casa’ lançado pela Secretaria de Estado da Cultura (Secult) e a criação do Comitê de Crise da Cultura, iniciativa do CMPC, foram tomadas visando amenizar o impacto socioeconômico na vida dos artistas que, principalmente, vivem única e exclusivamente de arte”.
Já no âmbito federal, a atriz e cantora, que também é responsável pela produção cultural de uma escola particular em Maceió, lembra que arte e cultura não foram interesse do governo desde o início.
“Desde a extinção do MinC, da promoção de uma política baseada na censura, no desrespeito à diversidade até a dança das cadeiras dos secretários e da derradeira secretária, não havia como esperar uma postura diferente de um governo desinteressado pelas políticas públicas direcionadas à classe artística e aos trabalhadores da cultura”, avalia.
“Logo, falar da postura do governo, no âmbito federal, é como falar de um jogo onde o ‘herói’ é um homem bomba, que a qualquer momento nos ‘presenteará’ com um ‘Game Over’. Seria irônico se não fosse triste e trágico, já que preso ao ‘corpo’ deste homem estão milhões de outros homens, mulheres, crianças, a cultura, o meio ambiente, um país inteiro e tudo que cabe nele, prestes a explodir junto com esse desgoverno”, conclui Laís.
Nilton também critica o governo federal em sua postura não só em relação ao coronavírus, como também ao tratamento da cultura. “No âmbito nacional, não temos um governo, temos um desgoverno. Temos uma política genocida em todos os aspectos. Jair Bolsonaro sempre desprezou a cultura, e continua fazendo isso. Felizmente, o legislativo aprovou a criação da Lei Aldir Blanc, que permitirá auxílios emergenciais para a área cultural”, afirmou.
Perspectivas
“Difícil é se reinventar na crise dentro de um setor que desde sempre vive em crise”, disse Mel Nascimento. Apesar da frase trazer uma realidade dolorida, a cantora ainda avalia que é necessária a reinvenção e mais qualificação dos profissionais da cultura.
“Todas as cadeias foram afetadas e ações devem ser pensadas para amenizar por hora e contribuir para a reestruturação da classe de trabalhadores da cultura, porém, é necessário e urgente que esta mesma cadeia se reposicione dentro do mercado, através de requalificação e criação de novos meios de fazer cultura”, destacou.
Nilton Resende, que também trabalha no cinema como ator, preparador e diretor de elenco, e estreou como roteirista e diretor ano passado com o curta metragem A Barca, olha para o impacto sofrido pelo cinema e mira seus próximos passos.
“O cinema já está sendo impactado de diversas formas: produções estão suspensas; cinemas estão fechados; festivais têm acontecido no formato online; produções menores têm sido feitas remotamente, valendo-se da criatividade, do experimentalismo”, afirma.
“Mas, por algum tempo o cinema não será mais o mesmo, desde a produção de um filme até sua exibição: a escrita de roteiros com menos contato corporal entre as personagens; protocolos que já estão sendo divulgados, a respeito de como deverão ser feitas as produções, com diversas exigências tais como o transporte de apenas uma pessoa da técnica por veículo, o que prejudicará imensamente os filmes de baixo orçamento; as salas de exibição com diminuição de poltronas, para aumentar a distância entre os espectadores, como já podemos ver em fotos de redes de cinema em alguns países”, pondera.
Já o professor de dança Reginaldo reforça a importância das ações de agora para se pensar em qualquer plano futuro. “Fazer uma previsão da futurologia é trazer para junto uma reflexão do presente. As perspectivas pensando nas ações que estão sendo tomadas por agora, não são boas nem reconfortantes. Repito, é preciso que as instituições responsáveis pelos setores de cultura agilizem ações inclusive para que os artistas não morram de fome. É preciso que estas instituições dialoguem com os artistas, procurem saber quais as reivindicações e propostas dos artistas para esse momento”, afirmou.
Laís Lira reforça a importância das redes sociais, que deixam de ser apenas meio de divulgação e alcançaram o posto de principal espaço de consumo e da produção artística atual. “Até porque mesmo quando voltarmos aos encontros presenciais é bem provável que as pessoas ainda estejam receosas de frequentarem espaços com grandes aglomerações. Isto provavelmente afetará nosso modo de conceber e produzir. Trabalhos mais intimistas, número limitado de público, uso de máscara devem ser algumas das medidas que precisaremos seguir durante o processo gradual de retorno à “normalidade”, avaliou.
Lei Aldir Blanc
O Projeto de Lei 1075/2020, proposto pela deputada federal Benedita da Silva (PT/RJ) e de relatoria de Jandira Feghali (PCdoB/RJ), visa o repasse de cerca de 3 bilhões de reais (do Fundo Nacional de Cultura) a estados e municípios do país para auxiliar os trabalhadores da cultura.
O valor deve ser destinado a uma renda mensal aos trabalhadores da cultura, subsídio mensal para a manutenção de espaços e equipamentos de instituições e organizações culturais e elaboração de editais culturais. Além disso, o projeto prevê linhas de crédito para pessoas físicas e jurídicas, suspensão da cobrança de tributos federais e prorrogação dos programas Federais de fomento.
O texto Já foi aprovado na Câmara dos Deputados e no Senado, aguardando a sanção presidencial.