Resumo
O decretos de isolamento dos governos estadual e municipais, com objetivo de retardar a transmissão da doença causada pelo novo coronavírus, Covid-19, têm obtido respostas da população. As ruas estão mais vazias e o fluxo quase inexiste em espaços de lazer como praças ou praia. Sem opção, entretanto, grande parcela continua sob maior exposição aos riscos, em uma ‘aglomeração escondida entre quatro paredes’, dada a condição precária de trabalho. Empresas têm ignorado a quarentena, submetendo funcionários aos riscos, e recebem a chancela do Jair Bolsonaro que, na segunda-feira (23) acentuou a insegurança dos trabalhadores assinando a Medida Provisória 927/2020. Entre outras providências, a decisão do presidente permite menor atuação de fiscalização do trabalho e menos exigências de saúde e segurança do trabalhador.
Nas margens dos direitos, trabalhadores informais e autônomos, que compõem 47,2% da população alagoana, segundo o IBGE, também não veem o “fique em casa” como opção.
O que lhes resta é consumir todas as informações possíveis sobre cuidados pessoais. Limpar os objetos de trabalho se possível com álcool 70%. Higienizar óculos, celulares continuamente. Evitar usar transporte público, mas, caso necessário, buscar os mais vazios e se higienizar logo após o desembarque. Até lá, não tocar o próprio rosto. Prender os cabelos. Se estiver tossindo, utilizar máscaras. Não falar próximo de ninguém. Manter a distância das pessoas. Ao chegar em casa, deixe os sapatos na porta. Utilizar uma sacola para colocar as roupas imediatamente após chegar em casa. Não circular no domicílio com as roupas do trabalho e nem tocar em n-a-d-a antes de tomar um banho.
Há poucas semanas um ritual como este parecia impensável. Atualmente tem sido algumas das situações pelas quais pessoas que ainda não puderam se isolar em casa têm praticado para evitar o contágio pelo vírus. Não há garantias de que estes cuidados livrem do risco, no entanto. Para completar, nem mesmo estas precauções podem ser aplicadas a todas as pessoas.
Inseguros com o coronavírus, operadores de call center relatam receber ameaça por “justa causa”
Para a operadora de call center da empresa Alma Viva, Ana Clara* (nome fictício usado para preservar a identidade da funcionária), por exemplo, nem todos esses cuidados são possíveis. “Tem gente resfriada trabalhando. O álcool em gel acaba bem rápido. Eu não tenho como passar gel nos computadores que fico, porque não tenho dinheiro para comprar, e a maioria também não. E nós compartilhamos os computadores, porque é um saindo e o outro entrando”, relata.
Na última sexta-feira (20), tendo em vista a negação da empresa em se posicionar diante do surto, os funcionários realizaram um protesto em frente a uma das unidades. Na ocasião, uma das manifestantes, que é operadora de telemarketing, afirmou que “o protesto aconteceu, porque a empresa tinha dito que iria continuar funcionando normalmente. Não vão parar e ainda disseram que quem faltasse de forma injustificada seriam aplicadas medidas de advertência”, relatou a manifestante que será identificada como Maria*.
Horas depois, o governador Renan Filho anunciou a determinação de que estes estabelecimentos deveriam funcionar com 50% do funcionamento de imediato e implantar regime de teletrabalho à totalidade dos funcionários em um prazo máximo de 10 dias. “Eles retirarm gestantes e idosos do trabalho, mas ainda assim ficou muita gente. É impossível ficar o tempo inteiro mantendo distância. Tem refeitórios, banheiros. As máquinas [computadores] ficam muito perto uma da outra e é muita gente circulando o tempo inteiro. Eles tiraram metade da operação, quebraram o banco de horas e o pessoal teve que ficar até mais tarde”, afirmou Ana Clara.
Temerosos, os operadores tentaram se mobilizar mais uma vez, na segunda-feira (23), mas, segundo eles, foram perseguidos pela empresa através de conversas de “feedback” com coordenadores das operações. “Eles ameaçaram todos de demissão sob justa causa, caso a gente pare as operações. Temos que trabalhar nesse risco constante e ainda com medo de perder o emprego”.
A empresa Alma Viva foi procurada, mas não atendeu e não retornou as ligações. O espaço permanece aberto para retorno.
Diarista, uber e feirantes: até agora, sem quarentena
Sem carteira assinada, a diarista Marina* trabalha na casa de uma família três dias por semana e relata que a rotina não deverá ser modificada mesmo sob a quarentena. Nestes dias, se desloca do bairro da Santa Amélia, parte alta da de Maceió, para o apartamento situado no bairro da Ponta Verde.
Aos 49 anos, conta que nunca trabalhou com carteira assinada e que aguarda uma promessa da atual patroa. “Eles disseram que iriam pagar meu INSS e que queriam que eu trabalhasse lá quatro dias por semana. Isso iria acontecer depois que eles terminassem de pagar as passagens da viagem”. A família retornou há três semanas, segundo Marina, após uma viagem aos Estados Unidos, para comemorar o aniversário de um filho de sete anos.
De acordo com Marina, a instrução recebida pela patroa foi de que, caso sentisse algum sintoma de resfriado, informasse. “Ela disse que se eu não pudesse ir, avisasse. E que se alguém lá tivesse algum sintoma, iria me avisar também. Ela veio há pouco tempo dos Estados Unidos, pois foi para a Disney com o esposo, a sogra e o filho”.
Marina garante, apesar disso, que pretende cumprir o isolamento, caso perceba que é necessário. “Se isso acontecer vou ter que pensar como ter alguma renda, mas não faço ideia do que poderia fazer, porque sempre fiz isso. Nem vou poder vender roupa ou outra coisa, porque não poderemos sair de casa”. Marina mora com o marido, a filha e o genro. Ela conta que, no caso de todo mundo ter que ficar em casa, apenas o genro deverá receber alguma renda, por ainda estar com emprego formalizado.
Quem também tem tentado tomar diversos cuidados, mas assegura que vai continuar trabalhando, é a motorista de Uber, Mirelly Clarindo dos Santos. Mirelly, que paga semanalmente o aluguel do veículo que dirige, afirma ter recebido pouco rendimento neste período de quarentena, mas pretende continuar trabalhando. “Hoje minha única fonte de renda é fazendo transporte por aplicativos. Pago diária de carro, sou mãe solo e tenho dois filhos. O movimento caiu 70% esses dias, o que complicou bastante. E para piorar, há o risco [de morte] que corremos também. Por maior cuidado que possamos ter com higiene, é um risco muito grande”, diz.
Segundo Mirelly, os motoristas de aplicativo de Maceió estão sendo orientados a realizar viagens apenas dentro dos limites do município. “Só podemos rodar por aqui. Muitos taxistas tiveram carro apreendido porque estavam indo para outros municípios e não podem também. Só pode sair de Maceió se for para casa de parente e precisa comprovar que é família”, explica.
Quem garante que também vai trabalhar, com ou sem riscos de contrair coronavírus, são alguns comerciantes da feira livre no bairro do Benedito Bentes. Trabalhando há dois anos e meio com venda de acessórios e conserto de celulares, Elenilson Justino da Silva, não pretende fechar seu estande. O motivo? Precisa da renda para ter alimento em casa. “Sabendo o que está acontecendo, todo mundo está, mas medo eu não tenho. Quem tem fé em Deus, tem tudo. Não penso em fechar de jeito nenhum. Ninguém vai fechar não. A não ser pessoas que trabalham [como feirantes], mas são aposentados, ou têm um dinheirinho extra. Mas eu não. Na minha casa só tem eu, minha esposa e dois meninos, de 3 e 6 anos. Minha esposa trabalha quando tem como. E eu faturo de acordo com a semana e o que consigo ter para vender. O movimento infelizmente está fraco, mas continuamos abertos”.
Para além do comércio, Elenilson é artista e compõe a equipe do Coco de Roda Arco-Íris. “São 15 anos de estrada. A gente recebe uma ajuda de custo do governo, quando nos apresentamos lá em baixo [parte baixa da cidade]. Mas como não vamos apresentar nesses dias, então não sei como vai ficar”, comenta.
Quem também não pretender fechar a venda de verduras por conta do coronavírus é o casal de comerciantes Antônia dos Santos e Cícero Cabral. “Tenho medo de que? Se for para morrer, morrem todos e acabou-se”, diz Cícero. Antônia acrescenta: “Estão dizendo que vai ser tudo fechado. E quem vai dar de comer a gente? Não pode fechar agora não. E o que vamos fazer? O que vamos comer? Vamos deixar as coisas apodrecer e depois?”.
Embora ambos estejam na faixa etária dos 70 anos, nenhum deles recebe qualquer benefício social, mesmo aposentadoria. “Vejo um monte de pessoas ainda mais velhas que não consegue. A gente fica sem essa esperança”, conta.
Advogada trabalhista propõe medidas conciliatórias
Embora evitar o caos na saúde – ou ao menos adiá-lo – tenha movido uma série de decisões políticas, sobretudo por parte de governos estadual e municipais, outro tipo de preocupação não é escondida pelas esferas estatais: a saúde lucrativa do empresariado. Para a advogada trabalhista e integrante da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos advogados do Brasil (OAB) Seccional Alagoas, Gabriela Lamenha, o medo do desemprego move trabalhadores da mesma forma como as perdas econômicas são alvo de temor para as empresas.
“Não há o que se negar ainda que a principal preocupação é a saúde da população, entretanto, levando em conta o sistema capitalista que vivemos, grande parte das atitudes tomadas pelas empresas privadas correspondem a uma proteção do capital. Tanto que, muito embora tenha havido diversas recomendações para reduzir o funcionamento e indicação de isolamento, muitas destas empresas apenas determinaram a suspensão das atividades após a expressa ordem dos decretos”, relata.
Estudante de Ciências Sociais na UFAL, Gabriela Lamenha pesquisou sobre formas de conciliar interesses de trabalhadores e empresários, durante este período de quarentena decorrente da transmissão do Covid-19. O projeto perpassou por uma tentativa de não penalizar trabalhadores com demissões ou submissão a riscos de saúde, e nem maiores perdas econômicas aos empresários. Utilizando longo arcabouço da legislação, entre as propostas, sugere teletrabalho, férias individuais ou coletivas, utilização de banco de horas e diminuição de carga horária com redução de salário de, no máximo em lei, de 25/5. “Esta última é uma medida bastante polêmica, entretanto, legal, especialmente em momentos de instabilidade econômica”, pondera.
Para Gabriela, a situação requer atenção também para trabalhadores em condição mais precarizada. “Não se pode deixar de pontuar a realidade dos trabalhadores informais, autônomos e pequenos empresários que na grande maioria das vezes não estão assegurados das garantias previdenciárias e tendem a se lançar no mercado precarizado, arriscando sua saúde e a de outros por não terem qualquer auxílio. Tendo sido essa situação intensificada após as reformas trabalhista e previdenciária, especialmente”, analisa. Neste ponto, apontou o auxílio proposto pelo ministro Paulo Guedes de R$ 200 para trabalhadores autônomos sem renda.
Entretanto, a crença nessa possibilidade de conciliação tem sido minoritária, diante da sequência de medidas governamentais que não só são incipientes como estruturalmente comprometem cada vez mais a saúde dos trabalhadores e da população empobrecida.
O mestre em Sociologia e professor do Instituto Federal de Alagoas, Gabriel Magalhães, analisa que, para que as medidas ofertadas efetivassem minimamente o necessário período de isolamento, precisariam perpassar pela construção de política pública que crie condições de fato para adoção da quarentena.
“É necessária a efetivação de equipamentos públicos de isolamento: a título de exemplo de outros países, a Espanha tem estatizado hotéis para garantir a quarentena de todos os seus cidadãos. Além disso, é necessário estabelecer uma renda mínima para os trabalhadores informais contagiados, o que obviamente não se confunde com a proposta do ministro Paulo Guedes de assistência no valor de R$ 200,00. Por fim, empresas de aplicativo devem ser responsabilizadas pelos seus trabalhadores cadastrados, contribuindo também com a manutenção da renda desses brasileiros durante a vigência da crise”, reforça.
Quarentena é instrumento proibitivo para milhões de brasileiros
Quando a transmissão do Covid-19 chegou “oficialmente” no Brasil, o “boom” de medidas governamentais – mais aceleradas nos âmbitos estaduais e municipais do que nos federais – se instaurou dentro de um país que já se encontrava em um contexto social e econômico extremamente comprometido. Se por um lado, o IBGE registrou uma queda no número de desemprego para 11,9%, por outro lado, apontava que a redução ocorria em decorrência da desistência de mais de 65,7 milhões de pessoas em buscar emprego.
No mais, ao avanço de medidas de contingência, e à retirada sistemática de direitos trabalhistas com progressivas reformas, acrescia os efeitos do Teto dos Gastos imposto pela Emenda Constitucional 95, implantada em 2016, que cada vez mais compromete o atendimento de saúde para 80% da população dependente do SUS, cerca de 150 milhões de pessoas. Em entrevista, o mestre em Sociologia e professor do Instituto Federal de Alagoas, Gabriel Magalhães, apontou para este contexto onde estão inseridas as atuais medidas para combater a transmissão do Coronavírus em Alagoas e no país.
Mídia Caeté: Como você avalia que tem sido as medidas adotadas pelo Governo do Estado e pela Prefeitura de Maceió no combate à transmissão pelo novo Coronavírus? O que você percebe sobre avanços e falhas?
Gabriel Magalhães: Não sou médico epidemiologista, logo teço minhas opiniões a respeito a partir das análises que me aproprio desses profissionais. Assim, as medidas tomadas pelos governos estadual e municipal me parecem importantes, ainda que muito aquém da dramaticidade da situação. A Covid-19 demonstrou suficientemente do que é capaz, seu grau de contaminação é muito alto, o que me leva a concluir que as medidas tomadas foram tímidas. Como professor, me pareceu muito equivocada a relutância do governador e do prefeito em suspender as aulas nas respectivas redes de ensino mesmo diante da escalada do coronavírus no país, inclusive aqui no estado vizinho, Pernambuco. Ora, proibiram eventos em locais fechados que ultrapassem 100 pessoas, mas até este número temos uma grande quantidade de pessoas, um aglomerado. Assim são as salas de aula na rede pública, ao menos 50 alunos por sala de aula, um local fechado e sem distância suficiente entre as pessoas. Além disso, são crianças e adolescentes cujo contato físico é constante. São potenciais vetores no transporte público e mesmo em casa, onde encontram pais, avós. Portanto, a decisão de postergar a suspensão das aulas para segunda-feira (23/03) me pareceu muito temerária, beirando a irresponsabilidade. De forma desnecessária estão pondo a saúde pública em risco, especialmente de famílias pobres e dos trabalhadores da educação, muitos dos quais já têm idade avançada, sendo do grupo de maior risco, e uma vida de trabalho bastante árida. A título de ilustração, Pernambuco suspendeu toda a rede a partir da quarta-feira (18/03), mas boa parte dela já tinha parado já na segunda-feira (16/03). Outro vizinho, Sergipe, suspendeu as aulas na terça-feira, 17.
MC: Para você, estes caminhos de algum modo se cruzam com o modo como o próprio Governo Federal tem lidado com a pandemia?
G.M: É explícito que o Governo Federal desdenhou os riscos desta pandemia. Esta postura é um produto direto de uma orientação ideológica irracionalista que perfaz o todo do governo Bolsonaro, que tende a recusar por princípio qualquer análise ou orientação que advenha de fóruns internacionais, como é o caso da OMS, bem como de instituições de pesquisa sérias, vide a negação do aquecimento global e a demissão do diretor do INPE, Ricardo Galvão. A este caldo ideológico tóxico se somou no último mês o embate entre o Executivo e os demais Poderes da República, o que levou Bolsonaro a buscar desequilibrar o poder a seu favor através da pressão das ruas. Desta forma, mobilizou as suas bases para o ato do dia 15 de março ainda no mês de fevereiro. Assim, o princípio negacionista do governo em relação ao problema adquiriu contornos mais dramáticos, pois negar este risco – tachado de “histeria” da mídia – se tornou condição para o êxito da sua manifestação e, por conseguinte, dos intentos autoritários do governo. E assim se deram os fatos, com os manifestantes do dia 15, negando veementemente os riscos da Covid-19, pondo a saúde pública em perigo. Bem, voltando para Alagoas, minha hipótese é de que a lentidão do governador em tomar medidas mais drásticas está associada às eleições municipais deste ano, quando firmou aliança com o ex-procurador estadual, Alfredo Gaspar. Apesar de Renan se configurar como um governador não alinhado com Bolsonaro, o que tendencialmente o levaria a tomar as medidas necessárias de forma mais célere até para fazer um contraponto ao “terraplanismo” do Governo Federal, objetivamente o que ocorreu foi o contrário: para não se indispor com os manifestantes da extrema-direita alagoana que simpatizam com Alfredo Gaspar, tanto por suas posturas políticas, quanto por sua aproximação com a família Bolsonaro, o governador resolveu postergá-las para simular uma certa “normalidade”, bem ao sabor do que os bolsonaristas estavam pregando no início da semana. O mesmo serve para Rui Palmeira. Suspender as aulas da rede pública de ensino dois ou três dias depois do ato da extrema-direita mancharia a candidatura de Alfredo Gaspar perante esse segmento. A indisposição com Renan poderia ser transferida para o ex-procurador, desta forma, optou-se por simular a normalidade e, após pressão da opinião pública e das entidades de classe, decretar a suspensão da rede pública de ensino para a semana seguinte, quando a escalada da Covid-19 já deve pôr medo mesmo nos bolsonaristas mais radicais.
M.C: Como estas medidas específicas são efetivas, considerando o contexto de contingenciamento na Saúde e o modo como têm sido executadas as políticas públicas?
G.M: Estamos imersos numa crise econômica que já se arrasta por 5 anos dada a política econômica implementada desde 2015, ainda no segundo governo Dilma. De lá para cá se radicaliza uma orientação macroeconômica ultraliberal, cujo objetivo único é reduzir ao máximo a participação do Estado na economia, via privatizações e extinção de todas as barreiras comerciais e financeiras que ainda restam, e nas políticas sociais. Em 2016 foi aprovada a EC95, a lei de bronze que submeteu o Estado brasileiro aos interesses do sistema financeiro, constitucionalizando o teto de gastos não financeiros por longínquos 20 anos. De lá para cá estamos vivenciando a adequação do Estado a este preceito. Não há como se concretizar os preceitos social democratas da Constituição de 1988 com a vigência da EC95. Esta é a negação daquela. Por isso a contrarreforma da previdência, que suprimirá aproximadamente R$ 4 trilhões da economia popular em duas décadas, por isso a busca insana do ministro Paulo Guedes por desvincular totalmente os recursos da União, dos estados e municípios, suprimindo os mínimos constitucionais que asseguravam a não captura integral dos fundos públicos pelo rentismo que assola o país. Segundo o Conselho Nacional da Saúde, em três anos de vigência a EC95 retirou R$ 20 bilhões do SUS e a estimativa é que em 20 anos sejam retirados R$ 400 bilhões. Ora, se a saúde pública no Brasil já padece de um subfinanciamento crônico, produto direto do neoliberalismo que se abateu no Brasil logo após a promulgação da Constituição, essa EC95 a fere de morte. Em razão da pandemia o Congresso se comprometeu a liberar R$ 5 bilhões em emendas parlamentares para o SUS, Ora, só em 2019 a perda foi de R$ 9 bilhões, portanto, em se continuando desta forma não há perspectiva alguma de melhora no bem-estar dos 75% dos brasileiros que se utilizam do SUS, ou dos 90% dos alagoanos que dele se valem.
4. A maior recomendação em nível mundial para coibir a transmissão do vírus tem sido que a população evite sair de casa ou estar em situações de aglomeração. Existem parcelas da população que não possuem esta escolha (seja por suas condições de trabalho, de moradia, ou mesmo de acesso à saúde). Você pode falar um pouco a respeito?
G.M: A tragédia social brasileira torna o instrumento necessário da quarentena proibitivo para milhões de brasileiros. No quesito habitação, nosso déficit é de aproximadamente 8 milhões de unidades. Milhões de brasileiros vivem em habitações precárias e com alto adensamento, sem qualquer possibilidade de se fazer quarentena. Segundo informações da mídia, na China, a epidemia se alastrou nas residências, pois os infectados nos espaços públicos contaminavam seus parentes em casa. A epidemia transbordando os limites da classe média alta em direção aos estratos mais empobrecidos encontrará essa realidade social, habitações precárias e altamente adensadas, impulsionando o contágio, sem haver condições objetivas para quarentena. Vale lembrar que a nível de Nordeste e Alagoas, em particular, esta realidade é ainda mais gritante. Ademais, com 41% da população ocupada na informalidade, índice que em Alagoas chegou a 47% em 2019, isso significa que cerca de 40 milhões de brasileiros não podem deixar de sair de casa, sob pena de padecer de fome. A quarentena recomendada pela OMS é de 14 dias, algo irreal para esses brasileiros. Desta forma, torna-se impreterível uma política pública robusta que crie condições para que esses milhões de brasileiros possam entrar em quarentena. É necessária a efetivação de equipamentos públicos de isolamento: a título de exemplo de outros países, a Espanha tem estatizado hotéis para garantir a quarentena de todos os seus cidadãos. Além disso, é necessário estabelecer uma renda mínima para os trabalhadores informais contagiados, o que obviamente não se confunde com a proposta do ministro Paulo Guedes de assistência no valor de R$ 200,00. Por fim, empresas de aplicativo devem ser responsabilizadas pelos seus trabalhadores cadastrados, contribuindo também com a manutenção da renda desses brasileiros durante a vigência da crise.
M.C: No que diz respeito a trabalhadoras e trabalhadores, especificamente, quais categorias têm sido mais prejudicadas e como?
G.M: Além dos trabalhadores informais, é importante alertar para os impactos desta crise sobre os trabalhadores formais brasileiros, que representam aproximadamente 35% da população ocupada no país, cerca de 33 milhões de pessoas. A renda média desses trabalhadores é de R$ 2.169 segundo a Pnad/IBGE, superior à renda média do trabalhador por conta própria (R$ 1.312). O impacto do isolamento generalizado irá ser drástico na demanda de todos os setores, o que levará as empresas a demitir milhares de empregados, deprimindo ainda mais a economia que já estava rastejante. Ora, as medidas propostas pelo governo são, novamente, ridículas, visam à proteção exclusivamente dos empresários. Assim como em outras oportunidades, as empresas conseguirão benesses tributárias e creditícias sem haver efetivamente contrapartida, pois as demissões continuarão. A redução de 50% da jornada e do salário é um acinte, levará as famílias à miséria e ampliará a lucratividade das empresas. Comparando com a França, mesmo o neoliberal Macron buscou salvaguardar o poder de compra dos assalariados suspendendo o pagamento de bens e serviços essenciais, como água, gás e alugueis. Portanto, é imprescindível que o governo exija contrapartidas claras dos empresários que receberem benefícios, para se evitar demissões. O poder de compra do assalariado não pode ser afetado, mesmo na hipótese de haver alguma redução de jornada e de salário, que obviamente não pode ser de 50%, esta deve ser compensada pelo governo por mecanismos indiretos. O consumo das famílias equivale a 65% do PIB. A compressão ainda maior da demanda das famílias irá fazer a economia sucumbir no abismo.
M.C: Qual cenário (ou quais cenários) você imagina que teremos no Brasil e em Alagoas daqui a cinco meses (Tempo previsto de duração da epidemia)?
G.M: Não havendo uma mudança radical na política econômica, o cenário será o pior possível, um verdadeiro caos. Infelizmente esta mudança não está no horizonte do governo. Além dos efeitos deletérios da Covid-19, com muitas mortes, o índice de desemprego subirá sem haver o escape da informalidade, da venda de água, nos sinais à “uberização”, o que produzirá um cenário distópico. Em se concretizando um pleno isolamento social certamente o país vivenciará saques de famélicos, e não serão os R$ 200,00 propostos por Paulo Guedes que sustará esse efeito. Em Alagoas todas essas consequências serão ainda mais agudas em razão dos indicadores sociais do estado e da penúria do governo estadual e das prefeituras, o que reduz a possibilidade desses entes fazerem alguma medida contracíclica.
M.C: O “Coronavírus” teria algo a ensinar para além da tragédia?
G.M: Creio que um ensinamento seja a necessidade das sociedades tomarem efetivamente as rédeas sobre os rumos da vida social. O capitalismo na sua fase contemporânea, que lhe é inerente, tem progressivamente depauperado as sociedades, concentrando cada vez mais riqueza na mão de poucos, do 1% mais rico, em detrimento da maioria. Esse empobrecimento relativo e mesmo absoluto da maioria tem se refletido também nas instâncias decisórias da sociedade, convertendo os poros democráticos conquistados pelos trabalhadores no passado em um sistema absolutamente impermeável, plutocrático. Trata-se de uma tendência global, mas que é agudizada nos países periféricos e dependentes, como é o caso do Brasil. A Covid-19 está atacando uma humanidade fragilizada pelo capitalismo financeirizado. O colapso da Itália expressa bem essa situação: a poderosa Europa, berço do Estado de bem-estar social e base de uma economia complexa e altamente produtiva, sucumbe a um vírus, certamente não em virtude do vírus em si, mas da sua decadência enquanto civilização do capital. Sequer a solidariedade resta na Europa e no mundo Ocidental, excetuando-se a Ilha Rebelde, Cuba, pois cada país tem se fechado para o seu próprio combate ao coronavírus. A solidariedade internacionalista tem vindo do Oriente não ocidentalizado e não capitalista, da China, que tem ajudado com equipamentos médicos, medicamentos e com profissionais da saúde os países ocidentais, inclusive nosso vizinho, a Venezuela. Parece-me que o ensinamento da tragédia é esse: a necessidade de se voltar à agenda política novas formas de sociabilidade não regidas pelo capital.
M.C: Sistema Único de Saúde: qual sua relevância neste contexto?
G.M: Ironicamente, o Ministro da Saúde, Luiz Mandetta, tem enfatizado a importância do SUS no combate à pandemia de coronavírus. Representante de um governo que almeja reduzir drasticamente a rede pública de saúde, nesta hora tão dramática o ministro é obrigado a reconhecer o quão importante é esse patrimônio oriundo da Constituição de 1988 e construído por milhares de trabalhadores da saúde, normalmente em condições adversas. A existência de um sistema de saúde gratuito e universal dota o Brasil de condições mínimas necessárias para combater a pandemia. A OMS deixou clara sua preocupação com a pandemia nos EUA, país que não conta com um sistema público de saúde. Trata-se, portanto, de um aspecto relevante e que deve ser explicado, pacientemente, para a população, de modo a torná-la capaz de reivindicar o SUS ao mesmo tempo que se detecta seus reais inimigos. Hoje, defender o SUS é exigir a imediata revogação da EC95. Caso contrário, qualquer defesa do SUS não passa de perfumaria para ludibriar cidadãos ingênuos.