“Cara de vagabundo”: Greve dos professores da Ufal chega ao fim, mas o racismo e a intolerância estão longe de acabar

Além dos ataques à categoria, docente da Universidade é vítima de racismo e assédio moral nas redes sociais
Ataques aos servidores ocorreram em um grupo do WhatsApp. FOTO: Reprodução.

Por Emanuelle Rodrigues 

Professores e técnicos da Universidade Federal de Alagoas (Ufal) retornaram às atividades acadêmicas na segunda-feira (8), após assinarem acordo com o Governo Federal e encerrarem a greve, que durou de 65 dias. Além das pautas de recomposição orçamentária e reajuste salarial, um assunto ganhou destaque no movimento grevista em Alagoas: o combate ao racismo e ao assédio na universidade. O fato ocorreu após um docente da instituição sofrer ataques racistas em uma rede social.

Tudo começou na penúltima semana da paralisação, quando – após a decisão da categoria docente pela manutenção da greve – estudantes da Ufal, sobretudo das áreas da saúde, se mobilizaram para manifestar sua oposição às pautas grevistas. Na ocasião, criaram um grupo no WhatsApp e alguns membros dirigiram ataques aos servidores, com ênfase para o professor Tiago Zurck, do Centro de Educação (Cedu).

“Baita cara de vagabundo”, disse um dos estudantes ao se referir à foto de seu perfil institucional do  Sistema Integrado de Gestão de Atividades Acadêmicas (Sigaa), em que o docente, um homem negro, aparecia com tranças nagô. Em outra mensagem, o estudante completou: “Eu fico imaginando se esse vagabundo for exonerado algum dia. Vai virar mendigo pq não consegue fazer outra coisa”. Em resposta a esta fala, outro aluno disse “Não seja tão baixo. Um mendigo não seria tão inútil”.

Em uma rede social, o professor Tiago Zurck afirmou que “Para garantir que o ideal de uma sociedade democrática e antirracista seja efetivado, uma universidade pública que forma profissionais de altíssima qualidade não pode tolerar que profissionais da saúde com valores e práticas racistas sejam entregues ao mercado de trabalho sob a pena de tais práticas serem reproduzidas com outros cidadãos e pacientes”.

Até aquele momento, nada foi feito e os membros do grupo, que possuía cerca de 300 pessoas, continuaram a atacar o docente. Na ocasião, também foram expostos os valores recebidos por ele, acessíveis através do Portal da Transparência do Governo Federal, em uma tentativa evidente de intimidação. No mesmo dia, as mensagens foram vazadas e o professor Zurck, junto com outros professores, tomaram ciência do caso.

Com o vazamento das mensagens dos alunos contrários à greve, que proferiram falas de ódio e de cunho racista ao docente, também caracterizadas por assédio moral ao servidor no exercício de suas funções e direitos civis, Zurck tomou ciência do caso e registrou dois Boletins de Ocorrência (B.O.), um na Superintendência da Polícia Federal (PF) e outro na na Delegacia Especial dos Crimes Contra Vulneráveis Yalorixá Tia Marcelina, da Polícia Civil (PC). Além disso, abriu processo administrativo na Ufal e acionou a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) de Alagoas.

Prints das mensagens vazadas. Fonte: Reprodução.

A estudante da Faculdade de Serviço Social (FSSO) Margot Gomes, integrante do Movimento Estudantil (ME), relatou que foram proferidas muitas outras ofensas, tanto para os professores quanto para os alunos que apoiaram o movimento grevista. Uma das expressões utilizadas para se referirem a esses estudantes foi “marmitinha de intelectual”, comenta Margot. “O Movimento Estudantil repudia completamente isso o que aconteceu. Foi um crime racial, não foi uma piadinha de mal gosto. Aconteceu com Zurk, mas poderia ser com outro professor negro, ou estudantes negros”, concluiu.

O Artigo 9º da Constituição Federal (CF) assegura “o direito de greve, competindo aos trabalhadores decidir sobre a oportunidade de exercê-lo e sobre os interesses que devam por meio dele defender”, cabendo à categoria a decisão pelo início e fim do movimento. Contudo, ainda há muito para se avançar na conscientização da sociedade sobre direitos civis e humanos e o papel do serviço público na construção de uma sociedade mais igualitária. 

A Educação Pública Federal, responsável por realizar maior parte dos projetos de pesquisa e extensão do Brasil, vem sofrendo cortes severos desde 2016, especialmente após a aprovação do teto de gastos. Isso tem penalizado servidores e estudantes com a diminuição de bolsas, auxílios, recursos para projetos de pesquisa e extensão, além de precarizar a infraestrutura dos prédios.

CRIMES DE ASSÉDIO E RACISMO NO SERVIÇO PÚBLICO E NO REGIMENTO DA UFAL

Injúria racial é um tratamento discriminatório dado a pessoas de grupos minoritários com o objetivo de gerar constrangimento, humilhação, vergonha, medo e exposição indevida, em função de sua cor, etnia, religião e procedência. A Lei 14.532/2023 equipara injúria racial ao crime de racismo, tornando-se inafiançável e imprescritível, com pena de reclusão de dois a cinco anos, além de multa. Já o assédio moral se configura, de acordo com o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), como “toda conduta abusiva, a exemplo de gestos, palavras e atitudes que se repitam de forma sistemática, atingindo a dignidade ou integridade psíquica ou física de um trabalhador”. Tipificado como crime pelo Código Penal, através da Lei 2.848/1940, a pena pode variar de 1 a 2 anos, além de multa.

De acordo com o Regimento Interno da Ufal (2006), Art. 91, Inciso III, “agredir verbal ou fisicamente colega, docente ou técnico-administrativo” constitui uma prática passível de pena disciplinar. O Art. 141, inciso II, da Lei 2.848/1940 ainda aumenta a pena em um terço quando direcionada “contra funcionário público, em razão de suas funções”. No § 2º, a lei ainda determina que “Se o crime é cometido ou divulgado em quaisquer modalidades das redes sociais da rede mundial de computadores, aplica-se em triplo a pena. (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019).

Para a professora de Relações Públicas Rosa Correia, coordenadora do Núcleo de Estudos Afro-brasileiros e Indígenas (Neabi), há uma série de agravantes nas falas da conversa vazada. A primeira é associar a greve por melhorias no serviço público, um direito constitucional do trabalhador, a um ato de vadiagem. O segundo é associar ao termo vagabundo a imagem do docente, promovendo “a desqualificação da pessoa negra, mesmo ela estando numa função de status, como a de professor universitário”. Em terceiro, utilizaram o termo mendigo para também caracterizar o docente, fazendo referência um problema social resultante da abolição do tráfico de escravos que tem as pessoas negras e pobres como principais vítimas.

Foto do Sigaa. | FOTO: Reprodução.

Segundo Correia, “as pessoas não têm ainda costume de criminalizar o agressor, de denunciá-lo”. “A denúncia do racismo e outros preconceitos é muito mais que a indicação de uma prática ilícita, é um caminho para a mudança social, uma saída para o lugar de sub-existência ou invisibilização das pessoas não-brancas”, pontuou. A professora explica que a posição ocupada pelo docente gera incômodo “(e não a de ser grevista), de ocupar um lugar tradicionalmente branco, claramente observável nos corredores e salas de aula de alguns cursos de saúde da Ufal”.

PRONUNCIAMENTO E MEDIDAS INSTITUCIONAIS

Em nota, a Ufal informou que a instituição “tem políticas e práticas muito claras sobre atos de assédio e o crime de racismo”, usando “dispositivos legais que regem o serviço público, com instauração de processos administrativos e aplicação dos dispositivos do regime disciplinar quanto à apuração e às eventuais penalidades”. A Universidade explicou que “vai instaurar o processo de apuração, tão logo seja formalizada a denúncia nos canais competentes, por processo administrativo ou pela plataforma fala.br.”

A Associação dos Docentes da Ufal (Adufal) publicou uma nota em “repúdio aos ataques e ofensas, inclusive racistas, que professores e professoras da Ufal têm sofrido, especialmente nas redes sociais, em decorrência da greve”. No texto, a entidade pontuou que “Além do racismo, usar a internet, celular e outros meios de comunicação para ofender ou prejudicar o outro também é crime”, “colocando à disposição dos/as docentes a assessoria jurídica da entidade para fins de orientação e acompanhamento desses casos”.

O Andes Sindicato Nacional explicou, em nota, que “Este ataque incluiu a exposição de dados pessoais, a tentativa de desqualificação do docente e farta utilização de termos ofensivos e de expressões indicadoras de injúria racial”. “O Andes-SN manifesta integral solidariedade ao Professor Tiago Zurck e repudia veementemente as agressões contra ele perpetuadas, esperando que sejam devidamente investigadas e que seus(suas) autore(a)s sejam responsabilizado(a)s”, completou.

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