A despeito dos esforços adotados pelos governos estaduais e municipais para o combate à pandemia do novo Coronavírus, o Covid-19, profissionais de saúde em unidades pública e privada de Maceió, que atuam na linha de frente de atendimentos, trouxeram relatos desta última semana em que a situação fica cada vez mais delicada dentro das unidades de saúde: falta de EPIs, de espaços adequados para atendimento, subnotificação por insuficiência de testes, e uma situação de lentidão, favorece ainda mais a proliferação do Covid-19 e sua posterior incapacidade de tratamento. Até agora, sete pessoas estão confirmadas com Coronavírus em Alagoas, pela Secretaria Estadual de Saúde, mas o número é contestado pelas equipes de saúde.
Para o médico da Atenção Primária que atua na Unidade de Saúde da Família Robson Cavalcante de Melo, Rafael Morais, o problema começa na própria lentidão em dar respostas à altura do surto. “O Governo Federal ignorou a chegada do vírus durante as primeiras semanas e, nesse momento, está aderindo a uma estratégia de mitigação frouxa, sem realizar todos os testes necessários”,
Segundo Morais, sob decisão federal, pessoas com sinais de infecção advindas de locais em que existe transmissão comunitária têm sido orientadas a se afastar por 14 dias, porém sem realizar o teste. “O problema é que sem testagem não sabemos de fato quantos e quais são os casos de Coronavirus e perdemos de vista a cadeia de transmissão,”, problematiza. “Portanto, podemos afirmar que há cidades hoje com muito mais casos que os números oficiais, e com transmissão comunitária mesmo sem confirmação do MS”.
A médica pediatra Joana* (nome fictício para preservar a identidade da funcionária) que atua no Hospital Memorial Arthur Ramos, também confirma que o caos já chegou nas unidades de saúde antes mesmo dos decretos. Antes de sexta-feira, 20, quando o Governo Federal publicou uma portaria declarando que todo o território nacional já se encontra em transmissão comunitária (confira a portaria aqui), a pediatra já revelava a subnotificação dentro de uma rotina hospitalar que já se encontrava em um “cenário de guerra”.
“Desde ao período da volta às aulas a pneumonia começou a aumentar, e muito. Pneumonia de todos os tipos, típica, atípica, meninos cansando sem diagnóstico de asma. Muito antibiótico prescrito diariamente. Agora então, em alguns serviços, o paciente ficava no meio da triagem contaminando outros. O SUS até então tem sido menos acometido porque, queira ou não, esse processo começou na classe média, por viagens. Mas tiro esse medo pela moça que trabalha aqui em casa, pelo meu irmão que trabalha em hospital público”, comenta. “Em alguns lugares, notifica sem fazer teste, porque não tem kit. Então é subnotificação total. Já conhecemos filhos de médicos que estão com a doença. Sabemos de profissionais de saúde são os mais acometidos”.
Para muito, outro problema vivenciado é a falta de preparação para lidar com os atendimentos. “Não existe protocolo certo ainda, porque as informações são muito novas e mudam muito. Um local faz de um jeito. Outro lugar faz em outro, mas há várias falhas na prática”.
Para um outro profissional do mesmo hospital, aqui identificado como Antônio*, a situação de estrutura torna ainda mais inseguro o local dos autondimentos. “Por ser tudo novo, estava tudo muito improvisado. Crianças colocadas na triagem, na observação, e a gente faz jogo de cintura para lá e para cá. Soubemos ainda de colegas que, em alguns hospitais, os donos não estavam deixando a equipe de enfermagem usar máscaras, porque diziam que as mães das crianças podiam se assustar. Começaram a deixar só agora. Eu não queria saber. Quem quisesse que me tirasse da Emergência mas eu não tirava”, conta.
Assim como em várias outras regiões do país, o profissional classifica o despreparo em relação às situações de urgência. “Não teremos leitos o suficiente, nem UTI, nem respirador. Digo isso porque já era uma realidade antes, mas agora piorou tudo. Até sexta-feira, pacientes com suspeita de Covid-19 eram atendidos nos mesmos locais que os demais. Só neste sábado é que decidiram deixar uma sala específica, mas bem improvisada e sem pia”, acrescentou.
Percebendo que a situação tem cada vez mais se agravado, a pediatra completa: “O Governo do Estado precisa abrir mais leitos e fazer logo enquanto o desespero de fato não começou”.
Na Saúde Pública, a falta de suprimentos também já tem sido comum, segundo Rafael Morais. “Conversei com médicos da Unidade Hamilton Falcão, que é a referência do Benedito Bentes e do Antares, e está faltando água lá há vários dias. Já entraram em contato com a Secretaria, e nada. Existem situações onde a falta de sabão é comum. Na minha unidade, há limitação da infraestrutura. Também não há o material básico de segurança proposto pelo Ministério da Saúde, como avental descartável, óculos de proteção ou máscaras cirúrgicas. Ao menos sabão e álcool em gel não tem faltado. Fora isso, tem muita gente da saúde que está amedrontado, mas estão fazendo tudo pra manter a calma e passar as informações de forma correta”, diz.
De acordo com a Associação dos Médicos do Brasil (AMB), o material que profissionais de saúde devem utilizar para proteção individual são: máscara tipo N95 ou PFF2; óculos ou Face Shield; luvas; gorro; capote impermeável e álcool Gel 70%.
A pediatra também define o estado em que se encontra, em atuação no hospital privado. “Estamos trabalhando com muito desgaste físico, emocional e psicológico. A população não consegue entender a real situação. Temos famílias, filhos, pais idosos. Pessoas na família imunocomprometidas. E os hospitais privados não tem estrutura pra isso. São locais improvisados que a gente atende. Não tem proteção, capote muitas vezes, máscara pra todo mundo. Não tem luva. Então para pegar é a maior burocracia. Não tem sala pra paciente”, cita.
Já o médico da USF, Rafael Morais, relata que, neste momento, a conduta tem sido de organização para avaliar e conduzir os casos mais simples, e os direcionar os mais graves aos hospitais. No entanto, há expectativa de um quadro bastante complicado muito em breve, uma vez que muitos municípios têm limitado atendimentos para casos de urgência e emergência, a fim de que pacientes com doenças crônicas não entrem em unidades onde poderão contrair coronavírus. A decisão, embora necessária, terá um custo.
“Isso coloca uma situação complexa em nossas mãos, especialmente no SUS, onde temos uma demanda grande de outros problemas de saúde que não tem sido tratados ou observados, devido à falta de profissionais, exames e medicamentos que ocorre frequentemente no SUS, além da precariedade do trabalho, locais de moradia e da insegurança alimentar. Essas medidas, apesar de necessárias, causarão um aprofundamento desses problemas e uma piora dos problemas de saúde especialmente da população periférica”, comenta.
A Secretaria Estadual de Saúde foi procurada para responder aos questionamentos, mas não trouxer retorno. No fim da tarde, a Agência Alagoas – canal oficial do Governo Estadual de Alagoas – publicou uma matéria divulgando a abertura de 105 novos leitos de UTI, que serão distribuídos pelas redes de assistência hospitalar pública, filantrópica e privada, além de leitos nas unidades da capital e do interior, disponibilizados para casos graves de coronavírus. A matéria divulga a disponibilização de R$ 20 milhões em recursos extraorçamentários do Tesouro Estadual para os leitos e para compra de EPIs.
Já a Secretaria Municipal de Saúde respondeu, através de nota, que: “a Central de Abastecimento Farmacêutico da SMS conta com estoque regular de álcool em gel e máscaras, que é destinado às unidades seguindo o cronograma de entrega de medicamentos e insumos ou conforme solicitação emergencial do farmacêutico da unidade. Já há previsão de aquisição de mais unidades dos materiais, seja pela finalização de processo licitatório ou por compra emergencial. Além disso, há outro processo licitatório em andamento, iniciado no fim do ano passado. As unidades de saúde em que os insumos acabam pelo aumento da demanda nos últimos dias, devem solicitar um pedido emergencial à CAF.”
O Hospital Arthur Ramos, por sua vez, também respondeu com a seguinte nota:
“NOTA DE ESCLARECIMENTO
O Hospital Memorial Arthur Ramos esclarece que tem trabalhado com seriedade e dedicação para que profissionais e pacientes tenham toda a segurança necessária durante a pandemia de COVID-19.
Diante disto, informamos que o hospital tem mantido o abastecimento de Equipamentos de Proteção Individual (EPIs), assim como tem divulgado conteúdo para todos os profissionais sobre o uso correto de EPIs na assistência direta ao paciente com suspeita ou confirmação de coronavírus.
Sobre o atendimento emergencial aos possíveis casos de coronavírus, o HMAR fez as adequações indicadas pelo Ministério da Saúde.
Ao chegar na urgência, o paciente se dirige até o totem da recepção e se estiver com sintomas de gripe, retira a ficha “Triagem Gripe”. Em seguida é direcionado para aguardar o atendimento no “gripário”, espaço reservado exclusivamente para tais pacientes, excluindo o contato com pacientes que buscam atendimento por conta de outras patologias. Ao chegar no gripário, o paciente recebe uma máscara cirúrgica e aguarda a triagem. Neste espaço, os pacientes ficam separados uns dos outros, com distância de 1 metro entre cada cadeira, sem a necessidade de circulação pelo hospital.
Ainda no gripário, o paciente é avaliado pelo médico e os casos suspeitos de COVID-19 são encaminhados para sala de coleta, onde é feita a notificação ao CIEVS e, em seguida, coletado material por um profissional do laboratório para realização de exame para confirmação de COVID-19. Seguindo a avaliação médica, os casos leves suspeitos de coronavírus recebem alta com orientação de isolamento domiciliar e os casos graves são internados no hospital, em uma ala exclusiva para pacientes acometidos pelo COVID-19, seguindo as devidas medidas de proteção.
Por fim, ressaltamos que o Hospital Memorial Arthur Ramos tem tomado todas as providências necessárias para assegurar a segurança de profissionais e pacientes neste período de enfrentamento ao coronavírus.”
Neste sábado, entramos em contato mais uma vez com os profissionais, e eles confirmaram que as adequações foram realizadas e foram distribuídos os EPIs devidos desde sábado, 21.
Lentidão, negacionismo e “EC da Morte”: riscos ao SUS
Enquanto em Alagoas as unidades públicas e privadas buscam se preparar, em meio a dificuldades apontadas pelos profissionais, a transmissão do Coronavírus se alastra e não aguarda o ritmo da realidade do sistema de saúde. O Brasil já conta com 1021 infectados pelo Coronavírus – registrados – e 18 mortos. A pandemia que hoje já adquiriu o status nacional de transmissão comunitária, quando já não se sabe de onde partiu a contaminação, foi por muito tempo declarada pelo presidente Jair Bolsonaro como um ‘alerta exagerado’, mesmo com os números crescentes de morte na China, e a explosão ainda maior na Itália.
Em entrevista à Mídia Caeté, que pode ser conferida na íntegra clicando aqui, o mestre em Sociologia e professor do Instituto Federal de Alagoas, Gabriel Magalhães, atenta para os prejuízos causados pelas ações do próprio Governo Federal -e a ausência delas – no embate ao surto no país. Para além do negação constante da realidade, que gerou uma série de ações irresponsáveis de bolsonaristas há menos de 15 dias, há uma Emenda Constitucional que limita o limite de recursos, a EC 95.
“É explícito que o Governo Federal desdenhou os riscos desta pandemia. Esta postura é um produto direto de uma orientação ideológica irracionalista que perfaz o todo do governo Bolsonaro, que tende a recusar por princípio qualquer análise ou orientação que advenha de fóruns internacionais, como é o caso da OMS, bem como de instituições de pesquisa sérias, vide a negação do aquecimento global e a demissão do diretor do INPE, Ricardo Galvão”, relata
No que denomina um “caldo ideológico tóxico”, o sociólogo acrescenta ainda as investidas de Bolsonaro em desequilibrar o poder a seu favor através da pressão das ruas, tendo em vista seus conflitos contínuos com os demais Poderes. “Desta forma, mobilizou as suas bases para o ato do dia 15 de março ainda no mês de fevereiro. Assim, o princípio negacionista do governo em relação ao problema adquiriu contornos mais dramáticos, pois negar este risco – tachado de “histeria” da mídia – se tornou condição para o êxito da sua manifestação e, por conseguinte, dos intentos autoritários do governo. E assim se deram os fatos, com os manifestantes do dia 15 negando veementemente os riscos do Covid-19, pondo a saúde pública em perigo”, reforçou o pesquisador.
A insuficiência das medidas estatais, no entanto, é evidenciada pela perda progressiva dos recursos na Saúde, através da Emenda Constitucional 95, a conhecida “EC da Morte”. Gabriel Magalhães apontou como a liberação de recursos tem sido incipiente, se comparada às retiradas promovidas pelo Governo Brasileiro, em resposta aos interesses do sistema financeiro.
“Em 2016 foi aprovada a EC95, a lei de bronze que submeteu o Estado brasileiro aos interesses do sistema financeiro, constitucionalizando o teto de gastos não financeiros por longínquos 20 anos. De lá para cá estamos vivenciando a adequação do Estado a este preceito”, relata. “Segundo o Conselho Nacional da Saúde, em três anos de vigência a EC95 retirou R$ 20 bilhões do SUS e a estimativa é que em 20 anos sejam retirados R$ 400 bilhões. Ora, se a saúde pública no Brasil já padece de um subfinanciamento crônico, produto direto do neoliberalismo que se abateu no Brasil logo após a promulgação da Constituição, essa EC95 a fere de morte. Em razão da pandemia o Congresso se comprometeu a liberar R$ 5 bilhões em emendas parlamentares para o SUS, Ora, só em 2019 a perda foi de R$ 9 bilhões, portanto, em se continuando desta forma não há perspectiva alguma de melhora no bem-estar dos 75% dos brasileiros que se utilizam do SUS, ou dos 90% dos alagoanos que dele se valem”, calcula.
É nesse sentido que, para o sociólogo, são bastante contraditórias as declarações proferidas recentemente pelo representante da pasta da Saúde do Governo Federal. “Ironicamente, o Ministro da Saúde, Luiz Mandetta, tem enfatizado a importância do SUS no combate à pandemia de coronavírus. Representante de um governo que almeja reduzir drasticamente a rede pública de saúde, nesta hora tão dramática o ministro é obrigado a reconhecer o quão importante é esse patrimônio oriundo da Constituição de 1988 e construído por milhares de trabalhadores da saúde, normalmente em condições adversas”, relata.
“A existência de um sistema de saúde gratuito e universal dota o Brasil de condições mínimas necessárias para combater a pandemia. A OMS deixou clara sua preocupação com a pandemia nos EUA, país que não conta com um sistema público de saúde. Trata-se, portanto, de um aspecto relevante e que deve ser explicado, pacientemente, para a população, de modo a torná-la capaz de reivindicar o SUS ao mesmo tempo que se detecta seus reais inimigos. Hoje, defender o SUS é exigir a imediata revogação da EC95. Caso contrário, qualquer defesa do SUS não passa de perfumaria para ludibriar cidadãos ingênuos”, defende.