Quando o Ministério da Saúde oficializou o Plano Nacional de Vacinação contra a Covid-19, até chegou a incluir povos indígenas na lista de grupos prioritários, mas fez questão de apontar uma divisão: o requisito de que estivessem “vivendo em terras indígenas”. A distinção entre aldeados e desaldeados constitui uma crítica antiga pelos povos originários em todo o país – muito pela memória de ataques que perduram há mais de 520 anos, mas não só. Para o coordenador da Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo (APOINME) na microregião AL/SE, Tanawy Xukuru Kariri, essa distinção que é feita pelo Estado é mais uma ferramenta para garantir a continuidade da retirada de direitos, ainda mais acentuada contra indígenas que moram em contextos urbanos, acampamentos, ou mesmo aldeias não reconhecidas institucionalmente.
Liderança Xukuru Kariri na Mata da Cafurna, em Palmeira dos Índios, Tanawy integra a APOINME e relata como vem sendo as mobilizações em busca de garantia direitos em meio a uma série de empecilhos e negligências. Para o coordenador da microrregião AL/SE, a construção da ideia de “índios fora da aldeia”, por exemplo, vem sendo mais uma ferramenta de legitimação para não garantir direitos.
“Esse contexto de ‘índios desaldeados’ a gente não aceita e não concorda. A política usa muito esse termo, que não reconhecemos. Porque para a gente, independentemente de onde são mantidos, índios são índios. E existe a convenção 69 quando se trata desse termo. Como dizer que índio é desaldeado se todo o território brasileiro é indígena? O Brasil é uma grande aldeia. Todo lugar que a gente vá, estamos dentro do nosso território, dentro de nossa aldeia, e temos merecimento”, defende Tanawy.
Rememorar a história da luta por terras é um dos aspectos que confrontam essa ideia de ‘desaldeamento’. Tanawy acrescenta, no entanto, que essa classificação tem uma finalidade bem objetiva. “É um termo que só serve pra tirar direitos dos povos indígenas. Nas aldeias, não temos nosso território demarcado. Então a área que temos para residências na aldeia é muito pouca. Não tem como comportar toda comunidade, que acaba precisando morar em povoados, ou na periferia da cidade por falta de espaço”, explica. “Então o governo tende a não querer dar assistência a esses povos porque não quer demarcar para que fiquem todos juntos. Daí obriga que os índios a morarem fora de sua comunidade sem direito algum”.
A despeito do conhecido e violento processo histórico que hoje constitui o “desaldeamento”, a falta de acesso à terra e ao território, se prosseguem mais negações . “E assim coloca esse termo de indigenas desaldeados e vão retirando as acessibilidades de todos que estão fora. Essa questão da divisão das vacinas. Temos colocado isso em pauta e cobrando. Reforçamos que, para gente, não existe essa divisão. Os índios que moram na cidade estão todas as semanas dentro da aldeia. Participam de rituais, reuniões, estão sempre junto com a gente em todas as atividades dentro da comunidade”, explica. “Não adianta vacinar quem mora dentro das comunidades, e deixar de fora quem mora em outro lugar porque são considerados por eles ‘desaldeadas’”, rebate.
Segundo Tanawy, as ações de combate ao Covid-19 vêm acontecendo em um contexto cheio de contradições e impedimentos na prática que iniciam desde a falta de reconhecimento à ausência de disposição para um diálogo efetivo de acordo com as condições das comunidades. “A gente já começou a ter problema com a consulta prévia. Fizeram por um aplicativo pelo zoom para ver como seria feita essa divisão e 80% das lideranças não têm acesso à internet. As que têm não sabem participar online como está acontecendo agora frequentemente. Acabam empurrando goela abaixo da forma como querem”, relata.
Segundo o coordenador do APOINME, diversos documentos foram encaminhados manifestando o repúdio à divisão realizada. “Temos uma lista do que precisamos, de que essas pessoas estão dentro da comunidade, trabalham dentro da aldeia, e por isso não temos divisão”, diz Tanawy, exemplificando que só entre os Xukuru Kariri, Tanawy, há uma média de 3900 indígenas que moram dentro das aldeias, enquanto pelo menos 4 mil moram em outros lugares. Mais da metade, portanto, fora do acesso às políticas em saúde e diversas outras.
“A SESAI adquiriu a tutela indígena em termos de saúde, que a gente sabe caminhar pela própria perna. Já a FUNAI ficou responsável pelo território, educação, mas nem nesse âmbito conseguiu avançar”, relata, referindo-se como o agravamento desses ataques também se manifesta no desmantelamento do acesso às políticas dentro dos órgãos de proteção. “O sucateamento foi caso pensado. O Governo Federal fez isso estrategicamente para não haver demarcação, pensando já politicamente. É um governo triste, que não está nem aí para a vida humana e para os nossos direitos, isso é genocida”.
É nesse contexto que a demarcação de terra segue como a principal pauta, ensejando até mesmo a construção da APOINME, pensada na luta por território. “A partir do tempo, vimos que precisávamos abranger outras áreas, até pelo não comparecimento das organizações competentes com nosso povo. Hoje levamos para as organizações do exterior, ONU, OIT, para que venha a cobrança de fora para o Brasil. Aqui no Brasil mesmo a gente não vem tendo êxito nessa pauta”, reforça.
Na prática, a luta por territórios segue em condições de conflito, tendo em Alagoas a ofensiva de ‘coronéis’ de famílias tradicionais. “Sabemos que há dois territórios históricos para luta, que são os Xukuru Kariri e Kariri Xocó. No Xukuru Kariri chegou a ter um GT em fase de finalização do trabalho técnico, mas por diversas ameaças de fazendeiros e políticos locais, eles foram retirados. Foi uma turbulência muito grande e não teve volta desde então”. Em Palmeira dos Índios, precisamente, a luta por terra segue confrontada pela ofensiva de posseiros.
Durante os processos de retomada, é a solidariedade entre as próprias comunidades que vem fazendo a diferença na resistência e na luta contra a pandemia. “Tivemos retomadas no povo Xukuru Kariri iniciadas há dois meses, há oito anos, 12 anos, 15 anos. A FUNAI não ajuda por ser área de conflito então somos nós que chegamos junto. A partir do APOINME conseguimos fazer as campanhas, e com doações, comprando mantimentos, máscara, álcool em gel, kits de higiene, para ir doando nas retomadas”.
Com o suporte de campanhas coletivas, de doações, a busca por recursos segue ativa na Articulação, ao tempo em que a luta na perspectiva dos direitos busca um avanço. “É um direito e existem recursos para isso. Nós vemos o portal da transparência e tem recursos para esses trabalhos, mas o que está fazendo mesmo a diferença vem sendo essas doações que a gente vem pedindo”, retrata.
Este slideshow necessita de JavaScript.
“Vivo dentro da aldeia, ando pelas aldeias e sei o que temos vivido. Já vivi perda de parente em retomada, já precisei conversar com matador de aluguel por estar marcado para morrer, já passei por muita coisa, mas a situação que me fez desmoronar foi quando levei cestas básicas no sertão. Cheguei na casa de uma senhora indígena, bati na porta por volta de onze horas e falei ‘bom dia minha vó. O almoço está pronto? Vim para comer com a senhora’. E ela foi abrindo a cesta com expressão de muita alegria, pegando o que tinha na cesta para colocar no fogão. Não ia ter almoço. Vou levar para a vida”.
Por falta de terra, não há espaço para plantio. Sem território, e sem projetos específicos para a população indígena, falta sustentabilidade e condições de produção. Avaliando todas essas condições, Tanawy conta como é a partir da auto-organização que as comunidades seguem enfrentando a pandemia, o genocídio, e buscando dar um salto para além da resistência, recuperando e avançando direitos.
Não é só vacina
A luta não se trata apenas de vacina, embora seja uma expressão bem evidente e importante. Não é só Tanawy que aponta como a classificação é utilizada como fundamento para separar e retirar direitos. Em toda a parte do país, indígenas em contexto urbano, acampados, nas periferias e áreas não consideradas como aldeias, permanecem mais vulnerabilizados enquanto projeto político.
Em entrevista à Mídia Caeté, Nina Cacique, da aldeia Katokinn, em Pariconha, conta como a luta por terra vem sendo o fundamento para outras lutas. “Até o momento não conseguimos. O maior desafio que temos é a luta da terra”. diz. Segundo Cacique Nina, o enfrentamento perpassa pela ausência até mesmo do reconhecimento na aldeia. “Para falar sobre as ações em relação a Covid-19, não tivemos ajuda de ninguém. Tivemos ajuda para os índios do SASI/Sus, mas aldeado não”, conta, referindo-se à defasagem no Sistema de Informação à Saúde Indígena.
Segundo a cacique Nina, até o momento não houve casos graves de Covid-19 dentro da aldeia, embora seja uma exceção neste sentido, diante da realidade do estado e sobretudo do país. Enquanto ainda em fevereiro, o Governo Federal publicava em sua imprensa que mais de 50% dos povos indígenas haviam sido vacinados, as comunidades denunciavam repetidamente o subregistro em diversos âmbitos, seja em reconhecimento, casos de Coronavírus, e até os óbitos pela doença. Segundo artigo científico publicado pela revista Frontiers, só na Amazônia o Ministério da Saúde registrou 103% a menos de mortes do que o número levantado pela COIAB – a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira. A situação é explicada a partir de uma série de contextos sociais como grilagem, mineração ilegal e invasão de territórios.
Convivendo com as especificidades, entre etnias, territórios e mesmo regiões diferentes, permanece o desafio comum dos conflitos, e o pleito comum das lutas por terra como prioridade. “Para falar verdade, aldeia Katokinn tem para nós, mas para o Governo não tem. [Para eles] somos índios na periferia de Pariconha”.
A líder indígena conta como as moradias em lonas permanecem instaladas em pedaço de terra de 13 tarefas ocupado pela comunidade. “Nenhuma providência foi tomada pelo Estado. Hoje alguns fizeram de barro, mas continua na mesma situação. Como vivemos? Um povo numa periferia de uma cidade que não tem terra para plantar, para criar, para morar, e dizer que somos felizes? Não somos. A terra é a coisa mais importante que temos na vida. É o território. Tendo território, a gente vai ter tudo”.