Infelizmente, ir de encontro às recomendações da ciência tem se tornado um hábito no Brasil, sobretudo no que se refere à pandemia de Covid-19. Medicamentos sem eficácia comprovada e campanhas contra o isolamento social, a vacinação e o uso de máscaras tornam o enfrentamento ao Novo Coronavírus uma tarefa ainda mais árdua.
Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), o Brasil demonstra diversos sinais de má condução do combate à pandemia. O diretor de emergências da entidade, Michael Ryan, demonstrou, mais uma vez, apreensão sobre a situação do país.
“O sistema de saúde está com uma grande pressão no momento. Muitos países da América Latina estão caminhando na direção certa, mas não é o caso do Brasil”, disse Ryan.
Já o diretor-geral da OMS, Tedros Adhahom, foi enfático ao afirmar que o Brasil precisa tomar atitudes mais drásticas e deu como exemplo o aumento sistemático do número de óbitos, que vem assustando o mundo inteiro.
“É um esforço conjunto de todos os atores que realmente reverterá essa tendência de crescimento, que está muito rápida e se acelerando muito. Mas estamos preocupados, especialmente, com a taxa de mortalidade, que dobrou em apenas um mês”, alertou Tedros. E completou: “O número de casos aumenta, o número de mortes aumenta. O Brasil tem de levar isso a sério, seja o governo, seja o povo”.
Amplamente divulgado pelo Governo Federal – principalmente pelo Presidente da República, Jair Bolsonaro -, o famigerado “tratamento precoce” é um dos mecanismos que contribuem diretamente para essa subida exponencial da curva de casos, que consolidou o Brasil como epicentro mundial da doença, de acordo com dados da própria OMS.
Em entrevista ao Portal Uol, a pneumologista Carmen Valente Barbas, do Hospital das Clínicas de São Paulo e do Hospital Albert Einstein, afirmou que grande parte dos pacientes diz que tomou o “Kit Covid” e alerta para os riscos do consumo desses compostos.
“Esses remédios não ajudam, não impedem o quadro de intubação e trazem efeitos colaterais, como hepatite, problema renal, mais infecções bacterianas, diarréia, gastrite. E a interação entre esses medicamentos pode ser perigosa”, ressalta Barbas, que também é professora da Universidade de São Paulo (USP) e referência internacional em ventilação mecânica.
Em Alagoas, o coquetel também possui os seus adeptos. Uma clínica na capital tem oferecido o “tratamento” como método de prevenção, cobrando o valor de R$ 200 pela consulta com um dos “especialistas”.
Uma arte com os médicos responsáveis e o número de contato está sendo compartilhada em grupos de WhatsApp em Maceió. Nela, consta também o texto “Centro de Tratamento Precoce para Covid-19. Protocolo atualizado de tratamento precoce para Covid-19”.
Além desse material, é possível ler ainda a descrição de um dos contatos dessa clínica, que diz “Ao apresentar sintomas gripais, a 1 suspeita é Covid-19. Procure imediatamente um médico que trate precocemente! Não ignore a doença!”.
A Mídia Caeté ligou para os números de divulgados (ouça abaixo), se colocando como ‘paciente interessado’ para confirmar a veracidade da publicação e colher mais informações a respeito. No primeiro momento, falamos com a clínica onde os atendimentos são realizados, que nos confirmou o oferecimento do tratamento particular, os nomes dos médicos responsáveis e que as consultas poderiam ser presenciais ou online.
Em seguida, conseguimos também conversar com o Dr Rodrigo Timóteo, um dos profissionais à frente da iniciativa, que reiterou a conduta e listou os medicamentos usados para o “tratamento precoce”, que utiliza substâncias como Hidroxicloroquina, Ivermectina e Azitromicina, além de Vitamina D e Zinco.
Não é de hoje que esse direcionamento é defendido aqui no Estado. Em vídeo divulgado no início deste ano (veja abaixo), Timóteo aparece ao lado de outros médicos defendendo o tratamento e o uso de medicações sem eficácia comprovada. No vídeo, há também o apoio declarado a Jair Bolsonaro.
O presidente do Conselho Regional de Farmácia de Alagoas (CRF-AL), Robert Nicácio, reforça a preocupação com o uso dessas medicações e corrobora que – até o momento, não existe base científica que comprove que elas são 100% seguras, seja para tratamento precoce ou para tratamento tardio.
“A Hidroxicloroquina, por exemplo, é totalmente contra indicada ao paciente que tem problema cardíaco. A Ivermectina é um antiparasitário de baixo potencial de toxicidade – desde que ele seja indicado e usado da forma correta – contudo, o que temos observado é uso indiscriminado deste medicamento e o resultado tem sido hepatite medicamentosa em alguns pacientes. A própria fabricante já informou que não existem evidências do medicamento no tratamento da Covid-19.”, frisa Robert.
VEJA O VÍDEO:
OUÇA OS ÁUDIOS:
Por mais triste que seja, Alagoas tem ganhado “destaque” na promoção da campanha a favor do “tratamento precoce”, conforme noticiou a repórter Bruna de Lara, do The Intercept Brasil, em matéria publicada no último dia 19 de março.
A reportagem revela a participação do atual presidente do Conselho Regional de Medicina de Alagoas (CREMAL), Fernando Pedrosa, em uma live promovida pelo Médicos pela Vida, grupo que promove o tratamento precoce e que agrega Fernando Timóteo e os outros médicos alagoanos do vídeo acima.
Inicialmente, Fernando Pedrosa não participaria do evento, que contaria com a presença de outro alagoano, Emmanuel Fortes – atual vice-presidente do Conselho Federal de Medicina (CFM) e ex presidente do CREMAL.
É importante citar ainda que o CREMAL promoveu, em agosto do ano passo, o seu próprio Treinamento para o Tratamento Precoce da Covid-19.
A Mídia Caeté tentou – por meio da assessoria de imprensa do CREMAL – falar com Fernando Pedrosa, mas foi informada que o presidente não estava respondendo perguntas sobre o tema em questão.
O presidente do CRF-AL, Robert Nicácio, teme justamente que a divulgação desse tipo de informação tenha um viés político que prejudique o enfrentamento correto e coerente da Covid-19.
“A minha preocupação é quando esse tipo de posicionamento passa a ser político. Como presidente de uma instituição de classe, que também agrega profissionais de saúde, sempre combatemos as notícias falsas sobre diversos tratamentos para a Covid-19. A todo o momento, orientamos a população a buscar informações seguras com o profissional de saúde da sua confiança, bem como o acesso a páginas de informações confiáveis. Evitem as redes sociais para se informar sobre medicamentos, tratamentos e doenças.”, reitera.
MANIFESTO PÚBLICO PELO TRATAMENTO PRECOCE
Para completar a guinada contra as recomendações científicas, profissionais alagoanos ainda assinaram o Manifesto pela Vida – Médicos do Tratamento Precoce Brasil, documento que defende o “Kit Covid” e – entre outras coisas – afirma:
“Manifestamo-nos a favor do tratamento precoce da Covid-19, acrescentando alguns trabalhos da literatura que têm nos embasado, inclusive os guidelines de países com índices de mortalidade pela doença muito menores que o Brasil. Destacamos que a abordagem precoce não se trata apenas do uso de uma ou outra droga, mas da correta de medicações como a Hidroxicloroquina, a Ivermectina, a Bromexina, a Azitromicina, o Zinco e a Vitamina D, anticoagulantes, entre outros.”
LEIA O DOCUMENTO NA ÍNTEGRA: MANIFESTO
Entre tais profissionais estão Rodrigo Timóteo e Márdano Amorim, ambos aparecem nas artes e no vídeo mostrados no início da reportagem. A voz de Timóteo ainda pode ser ouvida no segundo áudio postado, referente à ligação para coleta de informações sobre o tratamento precoce em Maceió. A Mídia Caeté ouviu novamente o Dr Rodrigo Timóteo sobre o assunto. Ele defendeu o tratamento precoce e afirmou que seus pacientes progridem bem com o acompanhamento.
“Muitos trabalhos falam sobre a eficácia e a comprovação científica do tratamento precoce. Com eles, conseguimos ter uma literatura robusta. É lógico que tem eficácia. Eu faço o tratamento precoce com meus pacientes todos e a grande maioria evolui muito bem. Não tenho nenhum óbito”, afirma.
Quando indagado sobre o posicionamento da OMS e de outros órgãos acerca da ineficácia do tratamento precoce, o médico questionou a idoneidade das entidades.
“Eu nem considero essas entidades. Para mim, são entidades que não têm idoneidade para fazer recomendação. Eu sigo a recomendação do Ministério da Saúde e de todos os trabalhos que estão sendo divulgados e da experiência clínica”, finaliza.
OUÇA O ÁUDIO COM O POSICIONAMENTO:
Na contramão do defendido acima, o presidente do CRF-AL, Robert Nicácio recorda que o estímulo ao tratamento precoce incentiva a automedicação, que pode ser muito perigosa e contribui para o quadro desesperador no país.
“A automedicação é um problema no nosso país. O que acontece é que, diante de tantas informações sobre tratamentos medicamentosos para a Covid-19, a população vai até a farmácia compra o medicamento, sem acompanhamento de um profissional de saúde e faz o uso de maneira incorreta confundido tratamento precoce com acompanhamento de um profissional médico com um suposto tratamento preventivo. A prevenção é seguir as medidas sanitárias de distanciamento social, de lavagem das mãos, de uso de álcool gel e de não aglomerar.”, comenta.
A Associação Médica Brasileira (AMB) divulgou, nesta nesta terça-feira (23), um boletim oficial, onde condena o uso de remédios sem eficácia contra a Covid-19.
“Reafirmamos que, infelizmente, medicações como Hidroxicloroquina/Cloroquina, Ivermectina, Nitazoxanida, Azitromicina e Colchicina, entre outras drogas, não possuem eficácia científica comprovada de benefício no tratamento ou prevenção da COVID-19, quer seja na prevenção, na fase inicial ou nas fases avançadas dessa doença, sendo que, portanto, a utilização desses fármacos deve ser banida”, diz o texto da AMB.
Nunca é demais lembrar que o “Kit Covid” não é reconhecido e é até contra-indicado não apenas pela OMS. Outras entidades como o Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos e da Europa, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e a Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI) também já se posicionaram contra.