Dia do Nascituro e as campanhas contra o aborto previsto em lei

Articulado pela CNBB e movimentos pró-vida, matéria já é lei em Alagoas desde 2019 e agora avança na Câmara

Atualmente tramitando na Câmara de Maceió, o Projeto de Lei 11/2021 que institui o “Dia do Nascituro” e a “Semana da Vida” pretende impulsionar uma série de ações em defesa do nascituro, incluindo campanhas contra o aborto em casos previstos em lei. Articulada nacionalmente pela Igreja Católica e por movimentos pró-vida como a “Rede Nacional em Defesa da Vida e da Família”, a matéria faz apoio explícito ao Estatuto do Nascituro, vem sendo enraizada em diversos estados e municípios do país – e já é lei em Alagoas desde 2019.

No âmbito municipal, o projeto segue agora encaminhado pela vereadora Gaby Ronalsa (DEM), já foi aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça do legislativo, e também teve parecer favorável por parte do relator da Comissão de Saúde, o vereador e médico Cleber Costa (PSB).

Apesar de não citar em nenhum momento a palavra ‘aborto’ , o conteúdo traz definições precisas sobre seus objetivos e origens. Inicia com a definição do Nascituro, como o “ser humano que tem vida intra-ulterina, ou seja, aquele que foi concebido mas ainda não nascido”. Dessa forma, no dia 8 de outubro – mesma data em que a Igreja Católica celebra o Dia do Nascituro – devem ser propostas campanhas, palestras e diversas atividades formativas, incluindo o incentivo para que escolas da rede pública municipal realizem trabalhos e tarefas com o tema “o direito do nascituro à vida”.

Já na “Semana da Vida”, indicada para acontecer entre 1 e 7 de outubro de modo a também conciliar com o calendário da Igreja Católica, a ideia é que sejam promovidas atividades à adolescência voltadas à prevenção à gravidez – embora não especifique a perspectiva adotada – além de palestras sobre maternidade e paternidade responsáveis, pré-natal e aleitamento materno, entre outros.

“Desde o ano de 2005, a Igreja Católica entre os dias 1º a 07 de outubro a Semana Nacional da Vida, instituída pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB, culminando com o Dia do Nascituro, é, inclusive, uma data fixa no calendário da CNBB”, menciona o PL assinado por Gaby Ronalsa.

Além da CNBB, Gaby Ronalsa menciona ainda a lei estadual nº 8127/2019, que estabelece o Dia do Nascituro no âmbito estadual, encaminhada à Assembleia Legislativa pelo deputado Dudu Ronalsa (PSDB). A Mídia Caeté buscou o deputado com alguns questionamentos, mas ele não respondeu as perguntas.

Finalmente, o PL faz uma referência direta ao Estatuto do Nascituro, projeto de lei pleiteado em âmbito federal desde 2007 e que parte da concepção de proteção integral ao nascituro, equiparando um embrião ou feto ao mesmo status jurídico de uma pessoa nascida viva. O PL causou grande repercussão por seu conteúdo não só retirar das mulheres todo e qualquer direito ao aborto seguro e legal – hoje no Brasil permitido para os casos de gestação de risco, resultante de violência sexual e fetos anencéfalos – como chegar ainda a propor que as vítimas de estupro recebam uma bolsa para a criação das crianças – popularmente chamada de “Bolsa Estupro”. Assim, estupradores seriam reconhecidos como pais ao pagarem pensão aos nascidos, estabelecendo ainda obrigatoriedade de vínculo entre vítima e do agressor.

Sem apresentar maiores detalhes sobre estas questões, Gaby Ronalsa confirma sua perspectiva de ser contrária ao aborto em todas as situações. “Tenho muito orgulho em ser Pró-Vida e já participo do movimento aqui em Maceió, há mais de dois anos”, relatou a vereadora. “Entrei na vida pública para lutar pelo que acredito. Lutar pela vida é uma delas. O Nascituro é o ser humano que tem vida intra-uterina, ou seja, aquele que foi concebido mas ainda não nasceu. Defendo a vida de sua concepção até sua morte natural. Na campanha recebi o apoio de muita gente e me comprometi, mais uma vez, nessa luta”, relatou a vereadora.

Já diante do tema da “prevenção à gravidez” descrita no Projeto de Lei, Ronalsa não deixa muito definido quais as formas de prevenção adotadas, respondendo que: “É essencial falarmos sobre o tema, é importante termos campanhas de conscientização de gravidez, prevenção à gravidez na adolescência, maternidade e paternidade responsáveis, e outros assuntos correlatos e, sobretudo precisamos debater sobre os riscos de um aborto, afinal estamos tratando de vidas e precisamos salvá-las. É indispensável, ainda, o apoio do Executivo Municipal para desenvolvermos e concretizarmos os projetos previstos na proposição apresentada”.

Ao ser questionada sobre como o PL dialoga com a saúde física e psíquica de mulheres e meninas que, no contexto de aborto previsto em lei (vítimas de estupro, gestação de risco ou com fetos anencéfalos), o efetivam, a vereadora interpõe que a campanha trará um viés educativo. “Os danos psicológicos causados pelo aborto trazem muitos transtornos a serem tratados por profissionais que acolham. Há inúmeros estudos que comprovam o extremo dano posterior ao aborto, mesmo naquelas mulheres que ‘dizem que querem abortar. Inúmeras se arrependem”, diz.

Coordenadora do CDDM, advogada Paula Lopes. Foto: Arquivo Pessoal

Para a advogada Paula Lopes, a perspectiva adotada está longe de ser ‘educativa’ e reforça o punitivismo contra mulheres. “Esse tipo de Lei reata a forma punitivista com que a sociedade condena as mulheres, evidenciando sempre a defesa da vida, ‘apenas da vida daqueles que ainda irão nascer’. Depois que o nascituro ganha vida de fato, ninguém acolhe, proporciona condições ou dá oportunidades para aquela mãe crie seus filhos, e aí a mulher acaba sendo condenada novamente”, comenta.

A coordenadora do CDDM também atesta como os danos psicológicos são ocasionados pela criminalização. “O aborto como todo tabu é feito nas piores condições, a maioria clandestinamente, e é uma grande causa ainda da morte de mulheres, sobretudo adolescentes. Recentemente conheci alguns projetos de cuidam de mulheres que passaram recentemente por situação de abortamento e vejo como é trágico para elas serem condenadas não apenas legalmente, mas socialmente e principalmente por suas famílias”.

Gaby Ronalsa declara que o PL não pretende alterar lei federal em relação aos casos de aborto previsto em lei, mas não esconde sua divergência, reforçando diversas vezes, ao longo de suas respostas, o uso do termo “matar bebês” e “matar vidas inocentes”. “Repito sou pró-vida, como já disse, defendo a vida da concepção à morte natural sendo terminantemente contra o aborto, qualquer que seja”, comenta. “Pró-vida é um movimento que acolhe, protege e salva vidas. Sempre questiono: A constituição federal veda a pena de morte, até do pior dos criminosos, assim como tipifica como crime matar alguém, então por que condenar a morte – matar – um inocente, que sequer teve direito a defesa?”

Indefesas

Para a advogada e mestre em Direito Público, Elita Morais, o debate que coloca de forma abstrata o direito do nascituro retira da equação a realidade concreta das vidas das mulheres. “A primeira coisa que achei bastante problemática é a forma como se dá a discussão em torno do nascituro. Consigo encontrar pouca ou quase nenhuma brecha para que a gente ande em conjunto. Não vi nenhuma preocupação sobre a situação real dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, que é principalmente a quem a gente vai dirigir essa discussão”, atentou.

Nesse sentido, pondera a necessidade de definir melhor os caminhos que guiará o debate sobre prevenção, por exemplo, tendo em vista que a narrativa construída pela Igreja Católica diverge daquela utilizada no âmbito da saúde pública. “Porque prevenção à gravidez perpassa pelo debate com a juventude nas escolas sobre DST, e o arcabouço de medidas contraceptivas para mulheres”, comenta. “A gente fala que mulheres, meninas e adolescentes, não têm acesso ao que é mais básico sobre saúde pública. O PL não dá nenhuma segurança. Pelo contrário, a tendência é ter muito problema, porque a gente tem arcabouço na legislação que permite a mulher abortar em determinadas situações e não vejo a menção a esses casos” comenta.

É neste ponto que, segundo Morais, a perspectiva religiosa é escancarada ainda mais. “Por isso a laicidade do estado é fundamental. Lá [no PL] ela deixa claro que é uma data que pertence a uma determinada religião. Já é discutida na agenda da instituição. Não é uma agenda do Estado, mas de uma religião”, problematiza.

Advogada Elita Morais. Foto: Arquivo Pessoal

Elita Morais acrescenta, ainda, como esta proposta vem a complementar grandes dificuldades já encontradas para mulheres no acesso ao aborto em casos previstos em lei, intensificando o sofrimento de quem precisa buscar assistência. “Em Alagoas temos problemas com atendimento às mulheres de maneira geral. Em Maceió, há duas delegacias de mulheres, e uma em Arapiraca. No interior, as delegacias são completamente longínquas e mulheres da zona rural mal têm acesso, ainda mais a programas de saúde pública. Temos duas legislações específicas sobre atendimento à vitima de violência sexual. A mulher que foi violentada não precisa de Boletim de Ocorrência ou alvará judicial, mas ainda assim, muitas vezes eles são exigidos dela no caso de gravidez decorrente de estupro. Quantas mulheres sabem sobre esse direito? Vão discutir isso no PL? Acredito que não”.

Gaby Ronalsa permanece defendendo que é possível evitar o aborto em todas as circunstâncias. “Sei que o tema é controverso, mas existem outras formas de resolver a situação sem matar um inocente, além da prevenção. Como Pró-vida prego salvar tanto a vida do bebê quanto a da mãe. E para aquela mãe que não quer a criança há sempre a possibilidade da adoção, que é um ato de amor. E para aquelas mães, grávidas, que não tem local para ficar, muitas, inclusive são expulsas de casa ou sofrem perseguições, há dezenas de casas pró-vida espalhadas pelo Brasil que estão prontas para recebê-las. Essas entidades, além do lar, oferecem apoio e suporte para as mulheres que escolhem não abortar, mas decidem entregar os filhos para a adoção. Existe esse possibilidade então por que matar um bebê?”, afirma.

Ronalsa alega que, embora seja católica, e utilize o calendário da Igreja Católica, o movimento Pró-Vida a que faz parte não possui “ideologia religiosa ou política”.

“O PL é claro quando menciona a Igreja Católica apenas para justificar a data, por ser uma data que se comemora o Dia do nascituro, um de seus objetos, assim como outros PLs existentes que usam outras referências. Sendo uma prática corriqueira”, afirma. “Sou católica apostólica romana, e minha religião também defende a vida, contudo o movimento que faço parte – Pró-vida – não tem ideologia religiosa nem política, ou seja, não tem ligação com nenhuma religião nem partido político. Temos fundamento no campo do direito, da ética e da ciência e não necessariamente no religioso. Somos a favor da dignidade da vida humana, da vida em todas as circunstâncias”, diz.

Por outro lado, Ronalsa menciona uma instituição bastante conhecida. “A Rede Nacional em Defesa da Vida e da Família reúne voluntários em todo o Brasil que se dedicam a evitar que mulheres façam o aborto. Somos e precisamos ser uma rede de apoio às mães e aos bebês. Acredito e defendo esse viés de que toda vida importa! Estou aqui para defender e lutar pela vida e pelos direitos daquele que sequer é ouvido, do inocente que está vivo, apenas ainda não nasceu!”, coloca.

Com vínculos evidentes à religião e a partidos originalmente de direita, a Rede Nacional em Defesa da Vida e da Família tem como uma de suas maiores mobilizadoras a atual ministra e pastora Damares Alves. Por sua vez, a defesa do nome de Damares para o Ministério foi levantada amplamente pela Rede e mais de 118 entidades e movimentos pela criminalização do aborto.

 

Leis e PLS por todo o país – O Programa Nacional de Legisladores

 

É assim que, de fato, a CNBB e a Igreja Católica não são as únicas instituições que interferem diretamente neste projeto. A Rede Nacional em Defesa da Vida vem articulado também de forma bastante explícita todos aqueles e aquelas que pretendem legislar contra o acesso ao aborto em qualquer dos casos. A organização chegou a sistematizar, em 2020, o Programa Nacional Legisladores pela Vida, assinado até então por candidatos às eleições municipais no ano passado.

Em Alagoas, três até então candidatos receberam o “Selo de Compromisso com a Vida e com a Família”, todos por Maceió: Gabriela Ronalsa, Leonardo Dias e Menino Mailson – este último que não ganhou as eleições.

 

Candidatos a vereadores e compromisso com Projeto “Legisladores pela Vida”. Foto: Rede Nacional em Defesa da Vida

Já Leonardo Dias não só cumpre a agenda, como esteve presente ativamente na campanha contra o direito legal ao aborto da criança capixaba de dez anos que, estuprada desde os seis pelo tio, engravidou do agressor. O vereador menciona: “É óbvio que a gente fica sensibilizado com a situação da criança de dez anos. Nenhuma criança de dez anos tem estrutura psicológica ou mesmo financeira ou física, de comportar uma gravidez. Isso é um ponto que a gente não pode negar. Existe esse problema e precisa ser observado, porém o direito à vida é o primeiro que nós temos”, argumenta, em defesa ao feto, sem aprofundar sobre os riscos iminentes à vida da menina, caso prosseguisse com a gestação. O vídeo completo pode ser acessado em sua página, clicando aqui.

As ações dos “legisladores pela vida” integram o termo de compromisso disseminado pela Rede Nacional, que é taxativo. “Por meio deste instrumento, firmo o meu compromisso de, se eleito for, defender a vida humana desde a sua concepção, até sua morte natural. Apoiando os projetos de lei que visam defender o nascituro (especialmente PL478/2007), comprometendo-me a implementar políticas públicas de apoio à família e à mulher, especialmente durante o período gestacional e na primeira fase da infância, bem como, me opor a toda e qualquer ação governamental nos âmbitos municipal, estadual e federal, que tenha como objetivo promover o aborto”, define.

Assim, apresenta um checklist para cumprimento dos aspirantes a legisladores: Promoção da criação da Frente Parlamentar em Defesa da Vida e Família; Declaração do Município Pró-Vida; Instituição da Semana Pró-Vida no calendário municipal; Instituiçãodo Dia do Nascituro no calendário municipal; Moção de Apoio a PL 4754/2016.
Moção de Repúdio a ADPF 442 e à ADI 5581; Oposição a quaisquer medidas nacionais ou internacionais de implementação da Agenda 2030 que caracterizem violação às liberdades individuais da Vida e Família. O termo pode ser acessado através deste link.

Imagem: Termo de Compromisso de ‘Legisladores pela Vida’

 

Extrapolando aqueles que se comprometeram com a Rede, a adesão vem se estendendo cada vez mais também em âmbitos estaduais. A Mídia Caeté leu o conteúdo das primeiras 25 leis e PLs relacionados a esta matéria em diversos estados e municípios do país. Com redações extremamente semelhantes, as diferenças acontecem eventualmente em relação à data. Embora comumente apresentem o 8 de outubro, há exceções como a proposta encaminhada pelo vereador da cidade de São Paulo, Fernando Holiday (Patriota) – que propôs a data 9 de outubro em seu PL. Em projetos mais antigos, também foram apresentadas propostas para o mês de março, como o caso do estado do Rio de Janeiro, cuja lei foi promulgada em 2002, ou em novembro, como Niterói (RJ). Vale ressaltar, ainda, que a cidade de São Paulo também promulgou em 2021 mais uma lei referente ao assunto, com a Lei 4941 que estabelece o “Dia de Conscientização Vida sim Aborto não”.

Em comum, os projetos e leis também tinham como objetivo divulgar evento e promover palestras, seminários e demais comemorações alusivas à data nas escolas e diversos espaços da sociedade civil, como unidades básicas de saúde, associações, enquanto também deixam aberta a possibilidade de entidades e ONGs serem acionadas para reforçar as campanhas. Em nenhum projeto do Dia do Nascituro foi colocado o adendo da proteção do direito ao aborto em casos previstos em lei, por exemplo, deixando por outro lado a referência direta à proteção à defesa do nascituro em todos os casos.

No Paraná, por exemplo, a Defensoria Pública chegou a publicar uma nota técnica sobre o PL do respectivo estado (303/2017), por repisar na criminalização do aborto e “deixa de mencionar a necessidade de conscientização dos agentes de saúde e da população em geral a respeito dos direitos da mulher gestante, inclusive a respeito das hipóteses de aborto permitido”.

Se por um lado, grande parte dos projetos deixa a definição ‘vaga’ – embora com sinalizações importantes sobre o conteúdo – em outros, a descrição sobre o conteúdo das campanhas é mais explícita. Em São Bernardo dos Campos (SP), os artigos da lei apontam a campanha pela “sexualidade orientada para a formação da família”; “a conscientização sobre a atuação de agentes políticos contra a dignidade do nascituro”; e “os efeitos positivos da abstinência sexual para a prevenção de gravidez não planejada”.

Em Campo Grande, por exemplo, o autor do PL, vereador e médico Wilson Sami, chegou a utilizar a tribuna na Câmara para emitir as opiniões: “Tivemos esses alertas, mas hoje não se valoriza a vida, se fala do aborto, da eutanásia. Temos 60 mil homicídios ano no Brasil. Tem coisa errada. Temos que orar muito e levantar bandeira que a vida está acima de qualquer influência de poder”, disse o vereador.

No caso de Maceió, o vereador Cleber Costa (PSB) – relator da Comissão de Saúde – afirmou à Mídia Caeté, por meio de assessoria, que  ao emitir o parecer “se restringiu a aspectos técnicos para ações que visa promover e acompanhar ações voltadas à saúde pública em seus mais diversos aspectos”, que devem ser respeitados os casos de aborto previstos em lei. Questionado se retificaria seu parecer para acrescentar o adendo em questão, o vereador negou,  respondendo que o “parecer se ateve ao conteúdo escrito do texto que foi apresentado à comisssão, não contemplando pensamentos não expressos”.

 

 

Retrocesso e contradição

A assistente social e docente do Pograma de Pós-Graduação em Serviço Social da Universidade Federal de Alagoas (PPGS/UFAL), Elvira Barretto demonstra o impacto de um PL que aparece com avanços em meio à pandemia. “Em linhas Gerais, o PL 11/21 é descabido e representa um retrocesso na legislação brasileira. Além disso, chama atenção um Projeto de Lei sobre o ‘direito do nascituro’, que nasce em um contexto de pandemia avassaladora, demandante de ações propositivas e concretas, por parte do poder legislativo, em vista as mortes de pessoas já nascidas e o profundo sofrimento de famílias que têm suas histórias interrompidas por perdas irreparáveis”, relata.

Assistente Social e professora Elvira Barretto. Foto: Arquivo Pessoal

Para Barretto, existem impactos imediatos na saúde psíquica, física e moral da mulher. “Essa lei traz consigo a defesa de um “nascituro” descontextualizado e generalizado, abstraído do corpo e dos sentimentos de quem o abriga; um “nascituro” abstraído de uma sociedade que não garante a dignidade da sua vida quando nascer; um “nascituro” abstraído e descontextualizado de uma sociedade que não assegura condições básicas de sobrevivência à maioria das pessoas que nela (sobre)vive. Do ponto de vista moral, essa lei fomenta o preconceito, a violência às mulheres que não têm como manter uma gestação, até por problemas de saúde específicos”, rebate.

A assistente social reforça, ainda, as contradições que o projeto constitui quando defende uma defesa da vida, mas ignora a realidade de mulheres. “Mais que nunca, a ciência tem sua importância inquestionável na defesa da vida. É, portanto, um contrassenso que a vida das mulheres sejam tratadas com menos importância do que a “vida” de um “nascituro”, não obstante não haja, até os dias de hoje, um consenso, entre os cientistas, do momento exato em que se inicia a vida biológica de qualquer animal vivente”, diz.

Mesmo a disseminação do conteúdo apresentado pela PL em escolas é visto com preocupação pela pesquisadora. “A sociedade precisa atentar para a gravidade do PL 11/21. É preocupante e implica em imensurável irresponsabilidade a disseminação de informações imprecisas e insuficientes sobre o tipo de conteúdo a ser tratado nas escolas e outros espaços educativos e de comunicação a cerca do “direito do nascituro” e da “semana da vida”, conta.

“Há ainda o perigo de alijar muitas mulheres, mães de família, a cumprir com suas obrigações de mãe, haja vista pesquisa a comprovar que o perfil das mulheres que tiveram a experiência do aborto não corresponde ao que é veiculado no senso comum, pois não são adolescentes nem são prostitutas na sua maioria, são mulheres casadas ou com companheiros estáveis, que estão no período reprodutivo feminino mais intenso, entre 18 e 29 anos; quanto à opção religiosa, os dados demonstram que a maioria dos abortos foi feita por católicas, seguidas de protestantes e evangélicas e, finalmente, por mulheres de outras religiões ou sem religião”, completa. Elvira apresenta, ainda, o estudo a qual obteve os dados declarados. Clique aqui para acessar a pesquisa.

A participação da Igreja Católica também é identificada por Elvira, conquanto defenda o cumprimento constitucional da laicidade. “A laicidade do Estado é intimamente relacionada com democracia. Conforme a Constituição, o Estado brasileiro é laico, portanto, qualquer ato governamental deve desagregar-se de instituições religiosas. O PL 11/21 interfere na laicidade do Estado, quando seu objeto é desprovido de fundamento objetivo, estando permeado por uma moral religiosa. Cabe salientar que a religião é de fórum íntimo, está no âmbito das liberdades individuais, a serem materializadas instituições próprias”, diz.

 

Día del Niño por Nacer

Ocorre que existe uma proposição ainda mais antiga, datada de 1999, que estabelece no âmbito federal o Dia do Nascituro. Assinada pelo então deputado federal Severino Cavalcante, o Projeto de Lei revela inspiração direta com o festejo do Dia do Nascituro na Argentina, lá designado “Día del Niño por Nacer”.

Ainda na justificativa, o parlamentar coloca o “exemplo argentino” como um propósito a ser seguido pela maioria dos membros do Poder Legislativo do Brasil, “um incentivo a mais para que não descansemos nesse humaníssimo propósito, que sabemos ir ao encontro das aspirações de todos os cristãos, que representam a grande maioria da sociedade brasileira”.

A data de 25 de março foi selecionada pelo autor da proposta “em razão de ser esse o dia em que a cristandade celebra a Anunciação da Virgem Maria, uma vez que o nascimento mais celebrado do mundo cristão é o do Menino Jesus, cujo momento da concepção se deu nesse dia”, definiu no PL. E ainda prosseguiu: “Ao apresentar o presente projeto, isto fizemos sob a fundada expectativa de vê-lo aprovado, a fim de que, sob a inspiração das campanhas que pretendemos ver encetadas pelos Poderes Públicos, cada nova vida humana em nosso País, já desde a sua concepção, seja recebida como uma dádiva do Criador”. Confira o documento na íntegra clicando aqui. 

Se Argentina foi tomada como “exemplo” aos legisladores cristãos, a história trouxe reviravoltas significativas quando, em 30 de dezembro de 2020, o país passou a permitir o acesso legal ao aborto, em todos os casos, até a 14ª semana de gestação. A chamada “onda verde” foi celebrada em toda a América Latina, como símbolo de esperança para os direitos sexuais e reprodutivos, para a saúde pública e as lutas por redução de mortalidade materna – cujo aborto inseguro e clandestino segue como uma das principais causas: outra perspectiva de mobilização pela vida.

 

 

 

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