Resumo
Desde que o mundo é mundo, a humanidade busca saber qual o seu lugar no universo e o qual papel irá exercer na sociedade. Questões como “o que é a vida”, “em que ponto ela começa”, e “quando ela termina” acompanham a sociedade e cada segmento social tem sua resposta.
Para a igreja católica a vida inicia no instante da fecundação; no judaísmo, apenas no 40º dia, quando o feto começa a tomar forma humana. Cada credo tem sua forma de analisar aonde a vida se inicia, o que influencia diretamente nos conceitos de morte, aborto e contracepção.
Os católicos são contrários ao aborto em qualquer instância por não verem diferença entre o ovo fecundado e qualquer pessoa. Para o judaísmo, a interrupção da gravidez antes do 40º dia não é considerada crime e é algo admissível em estágios posteriores no caso de riscos para a mãe. Os mulçumanos admitem o aborto até o 42º dia de gestação.
Na comunidade científica também não existe consenso. Para parte dos estudiosos, por exemplo, a vida começaria com a presença de atividade cerebral. Mas há divergência sobre o início das sinapses, se ocorrem na oitava ou na vigésima semana de gestação.
A discussão infinda teve desdobramentos em território alagoano. Além do entendimento sobre vida e morte, há contornos jurídicos envolvendo médicos e enfermeiros.
No mês de novembro, em Maceió, alguns outdoors foram colocados pela cidade com os dizeres “O DIU É ABORTIVO”, “Campanha pela vida da mãe e do bebê” e um convite para saber mais na página do Instagram @defesadavida_al. O conteúdo do perfil, que se auto intitula “pró-vida”, é de ataque massivo ao aborto e comparação da prática ao homicídio.
Mas não é a primeira vez que o DIU estrela os outdoors da cidade. Em agosto, o Conselho Regional de Enfermagem (Coren/AL) usou da publicidade para divulgar que é também competência dos enfermeiros a inserção do dispositivo. Pouco tempo depois, houve a réplica do CREMAL (Conselho Regional de Medicina de Alagoas) alegando que o procedimento é exclusivo dos médicos.
Mas o que é o DIU? Como funciona?
O dispositivo intrauterino, conhecido popularmente como DIU, é uma pequena estrutura de plástico em forma de T que cabe na palma da mão, é um contraceptivo bastante eficiente. O T380A – que é oferecido na rede pública de saúde – tem um revestimento de cobre, que torna o ambiente uterino hostil para espermatozoides e óvulos, impedindo a fecundação. Como o dispositivo atua antes da fertilização, não é considerado abortivo.
Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), o DIU é o método contraceptivo reversível mais utilizado no mundo. Fatores que contribuem para a popularidade do dispositivo são o intervalo maior de manutenção e, no caso do T380A, a validade de até dez anos e o fato de não haver ação hormonal. Além disso, reduz as chances de câncer do endométrio e conta com alta taxa de eficiência.
A chance de uma gravidez indesejada com o DIU de cobre no primeiro ano de utilização é de quatro mulheres a cada 1000. Durante os dez anos de uso, a probabilidade de falha é de duas para 100. Para se ter uma ideia, a pílula anticoncepcional apresenta uma taxa de falha de três a 90 para 1000, a depender do uso correto por parte da mulher.
No entanto, no Brasil, apenas 1,93% das mulheres utilizam o método. A impopularidade pode se dar pela desinformação, pelo alto custo praticado nos consultórios privados e ainda pela pouca distribuição na rede pública de saúde.
Além dos outdoors
Para o presidente do Coren/AL e enfermeiro obstetra, Renné Costa, o DIU não tem ação abortiva. “Não. Eu não vejo dessa forma. O DIU causa uma inflamação no endométrio e essa inflamação faz com que o ovo – que é a junção do espermatozóide com o óvulo – não se implante e ele não consegue se desenvolver”, afirmou.
Ele ainda ressaltou a ação espermicida do dispositivo. “A própria inflamação cria um ambiente hostil para o espermatozoide e ele não consegue sobreviver. O aborto ocorre quando o feto já está bem desenvolvido, já tá ligado a parede do útero”, finalizou o presidente.
Hilca Mariana Gomes, enfermeira obstetra e gerente da Saúde da Mulher em Penedo, disse que é difícil dar uma resposta para o DIU ser ou não abortivo por conta do cunho religioso, mas reiterou que, cientificamente, não existe aborto sem concepção. “O DIU dificulta a concepção e não a evolução do feto. Se houve fecundação não irá acontecer obrigatoriamente o aborto por causa da presença do DIU”, disse a enfermeira obstetra.
“O DIU atrapalha o que acontece antes da concepção, como uma camisinha que não deixa o espermatozoide chegar até o óvulo”, continuou. “Casos isolados não podem virar regra geral”, cravou Hilca.
A publicidade sobre o DIU repercutiu gerando debates também nas redes sociais. Tanto na própria página – com discussões nos comentários, relatos de denúncia do perfil e comentários apagados pela moderação da – quanto outras pessoas repercutindo em suas páginas. Esse foi o caso da dra. Melania Amorim. Médica, obstetra e ginecologista, ela postou, em seu Instagram, uma foto do outdoor destacando que a informação é falsa.
A médica ainda explicou o modo de funcionamento do dispositivo e correlacionou o baixo uso do contraceptivo à elevada taxa de gravidezes não planejadas. Além disso, mencionou outros benefícios que o DIU pode trazer às mulheres como redução de mortalidade materna, prevenção de gravidez na adolescência e a garantia dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres.
Já o CREMAL não tem um posicionamento oficial sobre os outdoors por entender que se trata de uma questão religiosa. Mesmo assim, o Conselho Regional de Medicina entende que a inserção do DIU é uma atividade exclusiva dos médicos e que enfermeiros não podem exercer. A prática do aborto é crime no Brasil – salvo em casos de estupro, risco de vida para a mãe e fetos anencéfalos – e, caso o dispositivo fosse abortivo, sua comercialização e utilização seriam proibidas.
DIU em disputa
Baseado em dados da saúde pública, na Nota Técnica 5/2018 do Ministério da Saúde, e no parecer 358/2009 e 17/2010 COFEN/CTLN, que o Coren-AL, junto ao Conselho Federal de Enfermagem (Cofen), decidiu capacitar 11 enfermeiros em Penedo e Arapiraca para sobre consultas ginecológicas, com foco na saúde reprodutiva e na inserção do DIU por enfermeiros obstetras, em agosto deste ano.
Uma das pacientes voluntárias, de 23 anos de idade, estava grávida de aproximadamente 12 semanas, quando teve um DIU inserido por um dos enfermeiros capacitados. Alguns dias depois, a jovem abortou. Após o ocorrido, o CREMAL conseguiu, por meio de uma liminar, suspender a inserção de dispositivos intrauterinos por enfermeiros.
A Nota Técnica 5/2018 do Ministério da Saúde – chefiado pelo médico ortopedista Luiz Henrique Mandetta – foi revogada no final de dezembro, de maneira discreta, pela NT 38/2019. O documento, que anula a NT 11/2019 por vício de formalidade, revogou também a autorização de inserção de DIU por profissionais de enfermagem junto a outras duas Notas Técnicas sob uma justificativa genérica.
“Quanto as demais Notas Técnicas, o Departamento, tem se empenhado em avaliar conteúdos, materiais, manuais, entre outros instrumentos e ferramentas de indução e articulação das políticas públicas de saúde, de modo a garantir que disponham da maior atualização possível em relação à literatura tecno-científica, alinhamento com o arcabouço jurídico-normativo brasileiro, e centralidade nas necessidades do cidadão e da população”, explica o documento.
Segundo informações repassadas pelo Conselho Regional de Enfermagem de Alagoas, cerca de 400 dispositivos foram colocados desde a capacitação, enquanto, nos últimos quatro anos, apenas 136 foram oferecidos pela rede pública de saúde. O presidente do Coren-AL afirma que a motivação da enfermagem é garantir o acesso das mulheres aos seus direitos sexuais e reprodutivos.
“O que a gente quer com isso é garantir acesso. Na Atenção Básica é onde deveriam ser resolvidas 85% das demandas da população. Então, quanto mais perto o dispositivo, quanto mais perto nós oferecermos métodos de contracepção e facilitar o acesso da população, melhor será. Isso é o que a gente acredita”, pontuou Costa.
O dr. Fernando Pedrosa, presidente do CREMAL, por sua vez, alega que acima de ser algo bom ou ruim para sociedade, a capacitação do enfermeiro para inserir o DIU esbarra na questão legal. “Não posso nem ventilar. Mas eu entendo que, fazendo parte de uma equipe, elas poderiam fazer a questão técnica quando as gestantes fossem pré-avaliadas pelo médico, fossem pós-avaliadas pelo médico, passassem por um ultrassom”, disse.
Penedo
“Colocaram um DIU em uma mulher grávida”, relatou o presidente do CREMAL. “Ela estava gestante, chegou no posto, estava para colocar o DIU e afirmou que tinha tido um sangramento. A mulher mesmo grávida pode sangrar, menstruar. No primeiro ciclo é normal ter um pequeno sangramento”, explicou.
“Eu já vi casos em que nasce com o DIU. Eu já vi casos de mulheres que engravidaram com o DIU. É infalível de proteger contra a gestação? Não. Mas a contraindicação de colocar o DIU em mulher grávida é absoluta, pois é alto o índice de aborto”, continuou Pedrosa.
Ainda segundo o médico, o Ministério da Saúde não exige exame de ultrassom na colocação do dispositivo para baixar custos na assistência de saúde. Apesar da nota técnica sobre o DIU não obrigar o exame, os protocolos municipais de aplicação, de acordo com o presidente do Coren/AL, exigem do município que aderir, acesso à ultrassonografia para exames da mulher que receber o contraceptivo.
A enfermeira obstetra Hilca Gomes foi uma das onze profissionais de enfermagem que receberam treinamento pelo Conselho Federal de Enfermagem para inserir DIU de cobre fornecidos pelo SUS. Ela explica que de 108 mulheres que solicitaram o contraceptivo antes da liminar foram selecionadas 86, pois as outras tinham confirmação ou suspeita de gravidez.
“Nada foi feito de maneira precipitada”, declarou. E seguiu alegando que o atendimento à jovem que sofreu o aborto seguiu o protocolo. “Não tinha nenhum sinal de gestação, inclusive com exame negativo, que está registrado no prontuário. Ela relata menstruação 8/8/2019 com exame negativo para gravidez e o DIU foi inserido 15/8/2019 após assinar um termo de autorização”, relata Hilca.
A enfermeira obstetra ainda informou que o município e o COFEN prestaram assistência à moça, que foi consultada, realizou ultrassonografia e teve o pré-natal iniciado. Foi avaliada a possibilidade de retirada do DIU – inviável no caso da paciente.
Direitos das mulheres
Hilca ainda opinou a respeito da publicidade colocada pela capital e falou sobre os direitos das mulheres. “Me parece que o objetivo deste tipo de informação é multiplicar informações incorretas à comunidade. Onde a mulher e profissionais são abortistas por tentar assegurar os direitos sexuais e reprodutivos que estão descritos da Constituição”.
“A enfermagem está atrás de aumentar acesso para comunidade e buscar formas sustentáveis de assegurar o direito à saúde para todos. Falar de DIU é também promover saúde dentro da família, mulheres fazendo uso de menos hormônios (mulheres estão morrendo por uso contínuo), estudando mais (gravidez é a maior causa de evasão escolar), planejando as gestações, e tantas outras vantagens”, finalizou a gerente de Saúde da Mulher.
A enfermeira ainda informou que, após o treinamento do COFEN, recebeu certificado de instrutora e que a ideia é a enfermagem multiplicar o treinamento em outros estados, enquanto o procedimento está proibido em Alagoas.