Resumo
Patrimônio imaterial de Alagoas, o sururu caracteriza nossa identidade tanto ou mais do que bandeira oficial. Se na gastronomia foi adornado com sofisticação e riqueza, na literatura é abraçado com a profundidade da escrita de Graciliano, Dirceu Lindoso, até o icônico exercício de olhar no Manifesto de Edson Bezerra. É quando o sururu descreve a realidade social e chega ao seu local de urgência: como fonte de sustento e sobrevivência e um dos maiores indicadores ambientais e sociais que a Lagoa Mundaú apresenta a Maceió e a chamada região metropolitana.
Acontece que, há pouco mais de um mês, o que a Lagoa vem mostrado é que o sururu está morto. Desde a intensificação das chuvas em Maceió – mas não exatamente por culpa delas – pescadores já não conseguem mais encontrar o molusco vivo e saudável para comercialização, ou sequer o suficiente para consumo próprio. A reação é perceptível e demonstrada com o vazio das barracas na orla lagunar e a grande apreensão entre as milhares de famílias, que não encontram outra opção de renda, após enfrentarem, há pouco mais de três meses, o episódio da mortandade de peixes.
Rememorando episódios de cheias anteriores, o pescador Luciano Teixeira tem expectativa de que a situação vá melhorar em meses, o que significa um período incerto para as famílias até este novo ciclo. “No meses de setembro e outubro, podem retomar ainda filhotes, daqui que cresçam vai para janeiro e fevereiro. Até lá, vai ser assando e comendo para quem tem alguma coisa. Para quem não tem é só assando”, relata.
A solução encontrada aos que ainda possuem algum recurso é a busca de sururu na laguna de Roteiro, embora haja uma compreensão coletiva de que não conseguirão manter essa dinâmica por muito tempo. “Eles passam a semana e voltam domingo. E aí tem que rezar também para o sururu render o suficiente para valer a pena, porque – se sair pouco – fica difícil para pagar toda a cadeia, como despinicadeira e cozinheira”, relata Denise Maria. Auxiliar de dentista há doze anos, ela foi demitida durante a pandemia e começou a trabalhar com o marido, pescador.
“Eles ficam umas cinco ou seis horas na lagoa. Nesse inverno, a lagoa é tão fria que tem hora que nem sentem as pernas. É uma vida sofrida e só para sobreviver, não para ter bens materiais. E quando ganham um pouco a mais, tem que guardar essa sobra porque uma hora o sururu vai acabar e aí vai se virar como? Se é todo mundo da pesca?”, conta.
Alguns pescadores não quiseram identificar o nome, mas se dispuseram a relatar. G.S acrescentou: “Temos que deixar nossa família e viajar para chegar o pão de cada dia que é na pesca. Aqui, qualquer lado que a gente pende o sururu está morto, aberto, ou branco, ou só meio preto”, conta. Para completar, confirma que não observou qualquer órgão no local. “Não veio ninguém. Nem Prefeitura, nem colônias para ajudar o pescador com defesa. Iam fazer reunião, mas depois cancelada”.
Já Luciano Teixeira comenta sobre o próximo período : “O inverno foi pesado mas não como esse. Ano passado, não morreram de uma vez. A gente que tem trocadinho guardado alugamos e conseguimos trazer sururu de lá de Roteiro. Quem não tem recurso, está para lá e para cá sem fazer nada e vai chegar a hora que vai acabar a feira e vai ser pior. Todo mundo morrendo de fome”, relata uma semana antes da situação de fato piorar com o transbordamento da Lagoa, que, além de tudo, levou água para dentro das casas, ocasionando perda de vários móveis e obrigou parte da comunidade a deixar o lugar para dormir em abrigos instalados.
A marisqueira Edleuza Maria* conta como vem enfrentado o momento. “A gente sobrevive de sururu e, com ele morto, muitos estão passando por necessidade. Algumas pessoas vêm aqui e ajudam, mas muitos aqui estão sem nada. Hoje, estou com esse pouquinho, porque trouxeram de Roteiro. Quando pesar, é que vou ver se dá para continuar, senão vou parar” conta.
Aposentada desde 2015 como marisqueira, Edleuza complementa a renda continuando seu trabalho como para o sustento. “Tenho um filho e dois netos pequenos. Os netos moram comigo, então não dá para sobreviver só de aposentadoria. Agora, não tem de jeito nenhum sururu aqui e sabemos que, lá em Roteiro, já vão nos colocar para correr, porque somos muitos e a lagoa lá é menor”.
Sem visualizar mais soluções, a marisqueira só vislumbra um desfecho. “Parar e não fazer nada. Nada mesmo. Não tem nada para fazer. A sobrevivência da gente é sururu e mais nada. Assim como a do pescador é peixe, e os peixes também estão morrendo”, diz, acrescentando não terem recebido nenhuma interferência de poder público para sequer minimizar os danos.
Com ausência de políticas públicas, incerteza sobre a destinação das moradias, a comunidade enfrenta condições ainda mais brutais diante dos crimes ambientais que destroem a fauna lagunar. É nesse momento que práticas assistencialistas tomam conta do local. Com as barracas fechadas sem o sururu, e uma longa história de violação de direitos, o que resta é esperar por doações e medidas paliativas que, na maioria das vezes, é o único tipo de intervenção que aparece com frequência na região, seja por intervenção de políticos locais, ou por ONGs.
“Espero que saibam como está a situação aqui e possam ajudar, trazer alguma coisa”, contou Edleuza. Já Denise acrescenta: “Chega perto das eleições e alguns vêm, porque querem voto, mas o povo está deixando de ser besta”, comenta.
“Um apocalipse embaixo d’água”: causas das mortes
O que tem causado tanta perda de sururu, afinal? Começamos perguntando a Edleuza. “É por causa da chuva”, responde. “Desceu barro de todos os cantos que choveram. A água barrenta para no fundo da lagoa. Como o sururu sobrevive com a boca aberta, a lama entra, e ele não tem como sobreviver. No ano passado, teve chuva, mas não morreu. Este ano, a chuva foi maior e todo mundo parou”.
Outros pescadores entendem haver outras razões. É o caso de Matogrosso, que identifica algumas diferenças em relação às situações de mortandade de sururu ocorridas no passado. “Em outras vezes em que isso aconteceu, ele foi morrendo por etapa. Vinha cabeçada d’água e morria uma parte. Desta vez, foi geral. É como se estivesse acontecido um apocalipse debaixo d’água. As autoridades sabem, mas é inevitável”, relata.
“Na cabeça do rio, tem muitas usinas que juntam resíduos da lavagem da cana. Isso fica juntando em barragem que, nesse tempo de chuva, sobrecarrega e eles têm que abrir as comportas. O resíduo acumulado, nesse tempo todo, vai se arrastando”, explica. “Alguns dizem que é a água do barro, mas não é. É a mistura com essas substâncias. Na última chuva, deu uma cheia que alagou tudo. O sururu ficou embaixo de dois dedos de lama e não morreu. Não é lama, nem é agua, mas a contaminação”, reforça.
É neste sentido que Matogrosso relembra a natureza do sururu. “Ele se alimenta do assoreamento da água. Tudo o que bota na água ele se alimenta, e é assim que ele filtra. Quando aumenta a salinidade, ele fica mais magro. E aumenta a gordura dele, quando a água não está doce nem salgada demais, na quebrança. Em Roteiro, nas cabeceiras, não tem essas reservas da usina, aí por isso não acontece”, conta.
O professor e pesquisador do Centro de Ciências Agrárias da Universidade Federal de Alagoas (Ufal), Emerson Soares, se dedica ao estudo das águas e em meio aos estudos no chamado Complexo Estuarino Lagunar Mundaú-Manguaba, vem identificando e publicizando os múltiplos fatores que colocam hoje a Lagoa nesse estado. São eles: o lançamento de esgoto com a deficiência na coleta de resíduos sólidos; o grande assoreamento gerando a ocorrência das cheias, a ocupação desordenada de áreas de risco em razão da urbanização mal planejada; e as práticas agrícolas que, com o regime da chuva, lança no solo agroquímicos e fertilizantes que, com a chuva, vão cair na Lagoa Mundaú.
“Quando isso acontece, os organismo sésseis, que não têm capacidade natatória e pouca capacidade de locomoção, geralmente têm problemas com a mortalidade. Foi como o que aconteceu com os peixes, em março. Foram espécies com menor capacidade natatória de fugir da região. Com as chuvas, a primeira coisa que acontece é a diminuição da salinidade, porque a atividade hidrodinâmica favorece a água doce, que vem geralmente pelo Rio Mundaú. Vem com muito sedimento, porque a região marginal foi desmatada, fragilizando o solo. Quando vem a água doce arrastando o solo que cai no rio, ela também vem trazendo sedimento que vai para a lagoa. Isso impede a radiação solar de penetrar na água, diminuindo a produtividade primária na região, que é o alimento do sururu”, explica. Então aumenta a quantidade de sedimentos e diminui a salinidade.
E aí vem ainda os produtos agroquímicos. “O esgoto vem sendo lançado no ambiente e efluentes industriais tanto de indústrias como de usina, vêm do solo para a lagoa. Junta tudo isso em um ambiente em que a água não tem tanto por onde circular e as bactérias não têm como reciclar. Entra muita matéria, muito mais do que sai”, explica. “E ainda tem a barreira hidrodinâmica das marés, que impede que água saia, tornando um depósito de problemas que vai causar a mortalidade do sururu”.
“É como se ele crescesse se contorcendo pela dor”: o surgimento do sururu branco e as borbulhas na água
As incertezas se mantêm na navegação. São históricos os questionamentos sobre o que vem sendo produzido pela gestão pública, ou quem será responsabilizado e de fato agirá no enfrentamento da gravidade do Complexo Lagunar. O maior deles é como a Lagoa será salva.
Há algumas novas dúvidas, no entanto. Neste momento, o que intriga mais ainda a comunidade pesqueira é o surgimento de um “sururu branco”. Com sua concha embranquecida em formato irregular, o interior é composto por uma substância viva alaranjada, cujo tendão atravessa todo o ‘corpo’ gelatinoso. Não há quase nenhuma semelhança com o sururu nativo já conhecido.
Acompanhando de perto esse surgimento, o pescador Matogrosso descreve o que vem observado. “Alguns tem a casca branca, outros como se estivessem ficando brancos, mas – além da cor – tem a característica de como a casca se retorce. É como se eles estivessem crescendo se contorcendo de dor, gritando. Essa tripa, que é um tendão, no sururu normal ela fica na ponta. Aqui nesse sururu branco, ele entranha por dentro de todo o corpo, atravessando até o outro lado da casca. Além disso, o corpo é todo gelatinoso, então quando a gente vai puxar o tendão para tirar, esse miolo estoura todo. Então não é possível de ser consumida, e com certeza é cheia de produto químico”, explica.
Segundo Matogrosso, logo quando ele começou a aparecer e foi percebido que não era possível ser consumido, o esforço vinha acontecendo no sentido de tentar separar o sururu preto do branco. “Se você cozinha o preto junto com esse branco, fica tudo podre”, conta. O problema é que, segundo o pescador, atualmente há uma proliferação de colônias brancas sobre o preto em meio a tudo o que vem acontecendo na Lagoa.
“O sururu preto morreu, mas esse branco está resistente. Até então os lugares onde havia berçário do sururu preto, o saudável, esse branco já aparece por cima dos outros. Se a água vier e ele resistir, vai tomar conta. É muito triste saber, porque – na parte do mangue – era onde tinha a melhor parte do sururu. Era mais natural, porque dava na raiz do mangue. E hoje só tem os cachos enormes desse sururu”, conta.
De acordo com os pescadores, embora a mortandade do sururu já tenha sido vivenciada pela comunidade em outros períodos, esse tipo de molusco é uma novidade. Diferentemente do sururu tradicional, que ultimamente só vem sendo encontrado morto – esse segue vivo e crescendo cada vez mais, embora impróprio para consumo. “A gente não consegue nem tirar que se desmancha, mas ele, depois da mutação, resiste à Lagoa enquanto o preto não resiste”.
O pesquisador Emerson Soares levanta hipóteses onde a proliferação do sururu branco pode ser atribuída às mudanças ambientais e perda de certos nutrientes na lagoa, mas também pode ser adoecimento, mutação genética ou ainda há a grande possibilidade de ser uma espécie invasora.
Soares acrescenta ser necessário estudar a coleta de material para verificar a relação com o teor de cálcio e magnésio. “Pode ser em razão de algum metal pesado encontrado na lagoa, com produto agroquímico que também é lançado e vem sendo transportado pelos rios. Seja como for, é uma resposta do animal dizendo que o ambiente não está bom, não tem boa qualidade. É um bioindicador do impacto, uma resposta ao estresse que alcança na lagoa, quando a água se torna vetor de doença”.
Questionado sobre a possibilidade de se tratar de algo mais profundo como uma mutação, o pesquisador explica que não é possível afirmar antes de um estudo mais profundo. “Toda mutação tem relação com causa genética ou com causa ambiental. A causa ambiental vai afetar o organismo ou ele vai ter formas de se adequar à situação. Para afirmar que é uma questão mutagênica, seria muito forte falar isso, porque não ocorre da noite para o dia. Pode ocorrer devido aos anos em que as lagoas vêm sofrendo com a poluição. Mas ainda não acredito nesta hipótese, até que a gente faça uma análise genética para verificar se houve mudança no padrão do genoma”.
Até então, segundo o Soares, a hipótese trabalhada é de um processo de adoecimento. “A gente vai para a primeira via, que é um efeito- uma reação do organismo ao ambiente contaminado, causando deficiência de nutrientes, e ele vai se adaptando às condições para sobreviver. E, se não conseguir, começa a ser extinto”.
Aliás, alguns trabalhadores da pesca identificam essa espécie, inclusive, como “sururu da Braskem”, ao constatarem que sua proliferação vem se dando há pouco mais de um ano e multiplicando em grande velocidade nos últimos meses, além do fato da maior concentração das colônias acontecer numa área de mangue alagada nas proximidades dos equipamentos instalados pela empresa.
“Ela está despejando produtos na Lagoa. A Braskem vai acabar com essa lagoa futuramente, através desse produto, porque mesmo nos piores momentos coisa como essa nunca aconteceu. Em uma lata de sururu, dar meio a meio do branco e do preto. Desde o ano passado, vem dando muito mais desse branco e a tendência é piorar. Todo mundo sabe o que é, mas pobre não tem direito. A lagoa está se acabando e ninguém faz nada”, relatou um pescador.
Os pescadores afirmam que a maior parte dessas colônias embranquecidas tem se proliferado nas áreas do mangue, alagadas em razão da subsidência do solo provocada pela mineração da Braskem, que afetou cinco bairros e é considerado – hoje – o maior crime ambiental urbano no mundo.
Esta área do mangue vem sendo delimitada por bóias de segurança que foram colocadas pela empresa. No entanto, pescadores não tem conhecimento de qualquer outra ação além desta, até o momento. “Eles vieram aqui com umas lanchas e disseram que iriam fazer a dragagem da lagoa, deixando a gente feliz, porque iria ajudar muito para o nosso trabalho, mas aí colocaram só essas bóias e depois vieram dizer que seria nosso limite de segurança, que não é para passar dali”, explica.
Ao avançar sobre as boias, é possível visualizar melhor o local onde foram instaurados equipamentos da Braskem, além de toda área do mangue alagada, e, segundo estudo ambiental entregue pela empresa encomendado à instituição TetraT ech, foi identificada a perda de 1,72% da área de ocorrência de manguezal dentro da AE. O estudo pode ser visualizado clicando aqui.
Em resposta à Mídia Caeté, a Braskem informou por meio de assessoria que não faz lançamento de qualquer efluente na lagoa Mundaú. “Este fato foi informado ao Ministério Público Federal, no último dia 22 de março, em resposta a questionamentos sobre eventuais intercorrências em suas operações que pudessem estar associadas à mortandade de peixes registrada na lagoa, no dia 13 de março. O trabalho realizado pela Braskem na região está relacionado com o fechamento dos poços para extração de sal e todas as atividades são devidamente licenciadas e fiscalizadas pelos órgãos competentes. Vale lembrar que a extração de sal foi encerrada em 2019”.
A mineradora acrescentou que “em relação à lagoa, o estudo realizado pela empresa Tetra Tech, nomeada no acordo socioambiental firmado com o MPF e com participação do Ministério Público do Estado de Alagoas, identificou o alagamento de menos de 2% da área de mangue estudada. O plano ambiental proposto pela Tetra Tech indica uma medida de recomposição de área de mangue que será oportunamente definida em conjunto com as autoridades”.
A empresa não trouxe informações concretas a respeito de que momento oportuno trataria sobre a recomposição do mangue, ou sobre as consequências do despejo em solo de qualquer tipo de material que, com as chuvas, pode ser arrastadado à Lagoa.
Entretanto, não é possível afirmar que a mineradora seja a responsável – ou, ao menos, a única responsável – pelo que acontece. Primeiramente porque, segundo Matogrosso, uma outra característica do “sururu branco” é sua adaptação de constituir suas colônias em pedaços da madeira, comumente encontrados na área de mangue.
Entra, ainda, aquela explicação trazida por Emerson Soares a respeito dos múltiplos fatores que também podem ter gerado este fenômeno de enfraquecimento e embranquecimento.”Existem problemas sérios com o metal pesado na Lagoa, com potencial carcinogênico e cancerígeno, e é preciso saber se esse produto de alguma forma afeta o sururu. A ciência precisa de dados concretos e hipóteses reais testadas, mas é uma possibilidade”
Ainda assim, é nesta localidade do mangue alagado em que é possível encontrar maior concentração de borbulhas na água. O pesquisador Emerson Soares explica tratar-se, também, da poluição.
“Não é natural. Isso é poluição. São poluentes e acúmulo de matéria orgânica em decomposição, que provocam esses gases. A lagoa não tem uma condição tão rápida de dissipar e realizar a troca de água. As bactérias do sedimento não conseguem realizar a ciclagem dos nutrientes devido à grande quantidade de nutrientes e matéria orgânica, além de poluentes. Então esse material de decomposição gera metanos, gás sulfídrico que geram essas bolhas”, explica.
Falta de repostas, ações pontuais e ausência das entidades competentes
A Mídia Caeté entrou em contato com a Prefeitura de Maceió para obter respostas sobre quais providências vêm sendo adotadas em relação ao que acontece na Lagoa Mundaú. Mesmo já obtendo as perguntas, por meio de assessoria, a Prefeitura decidiu não nos responder. O Instituto do Meio Ambiente também foi contactado no sentido de atualizarmos quais diligências vêm sendo realizadas, desde monitoramento à responsabilização de agentes causadores, seja a mineradora, as usinas e indústrias – incluindo o que já havia sido anunciado pelo próprio Instituto. No entanto, após primeiros contatos, o órgão também não trouxe qualquer reposta. A Secretaria de Estado do Meio Ambiente e dos Recursos Hídricos (Semarh) foi procurada e, entre as poucas informações encontradas, foi encaminhado o contato do presidente Comitê do Complexo Estuarino (CELMM), Matheus Gonzales. Gonzales, no entanto, também afirmou que não poderia falar à Mídia Caeté por estar em viagem.
O Ministério Público Federal informou que, até o momento, não existia nenhum procedimento para apurar a extinção do sururu na Lagoa Mundaú ou o surgimento do “sururu branco”. No entanto, desde a mortandade do peixe ocorrida em março, foram efetuadas diligências que podem contribuir com o entendimento sobre o que ocorre no Complexo.
“No âmbito do inquérito civil nº 1.11.000.000285/2022-63, foram expedidos ofícios cobrando providências e requisitando informações sobre a situação do Complexo Estuarino Lagunar de Alagoas, em razão de laudos periciais que indicam uma acentuada contaminação da Lagoa Mundaú, o que preocupa em relação ao meio ambiente e à saúde pública. Este inquérito foi instaurado para apurar, sob uma perspectiva estrutural, as múltiplas causas de degradação do Complexo Estuarino Lagunar Mundaú-Manguaba (CELMM), com o objetivo de viabilizar a elaboração, implementação e monitoramento de um plano de ação para garantir a integridade ecológica do ecossistema lagunar por meio de uma governança socioecológica”, explicou. Ainda de acordo com o MPF, o inquérito está sendo instruído e aguardam mais informações, solicitadas posteriormente.
A Mídia Caeté procurou alguns órgãos que chegaram a ser oficiados pelo MPF. Além da Prefeitura, do IMA e da Semarh, que não trouxeram respostas, também buscamos a Polícia Federal que informou, por meio de assessoria, que já havia sido instaurado um inquérito sob responsabilidade da delegada Ana Vidal.
Já a Ufal vem se comprometendo com os estudos na Lagoa, seja a partir de iniciativa própria, seja a partir de solicitações, como as demandadas pelo MPF. “A Universidade Federal de Alagoas tem uma função social importante: 97% da produção científica em Alagoas sai da Ufal. Quando tratamos dos pilares de pesquisa, ensino e extensão, o papel social da universidade se evidencia pela responsabilidade de que a pesquisa seja publicada e divulgada para a sociedade. A Lagoa é uma região de interesse social e pesquisa muito importante. Vários grupos se debruçam em estudos ali e há ainda outro estudo grande que realizaremos neste semestre”, adianta.
O foco se dá também pelo entendimento da importância social do lugar. “O sururu emprega muita gente. É preciso atenção especial ao que acontece ali, porque – além de empregar muita gente, ser fonte de renda e gerar emprego – quando falamos sobre a situação de lagoa, também tratamos de muitos problemas com o metal pesado nesse sururu, desdobrando para problemas de saúde pública e uma série de enfermidades”.
Quem também vem acompanhado as condições do Complexo Estuarino desde 2010 é o ambientalista Alonso Netto. Seja na condição de Secretário Comunitário do Meio Ambiente, seja integrando comissão gestora de acompanhamento, ou através do coletivo Enxame, Alonso tem acompanhado a situação da Laguna desde 2010, abrangendo desde a saúde dos animais, com a verificação de espécies nativas e invasoras, como também a saúde e existência – ou não – de políticas públicas voltadas às marisqueiras, catadores, e pescadores do complexo que abrange a Região Metropolitana de Maceió, identificado como Complexo Estuarino Mundaú-Manguaba.
“Quando a gente pensa na Laguna Mundaú, é preciso sempre pensar em todo o complexo, porque ela é interligada por alguns canais com a Manguaba, e principalmente o canal do Calunga. E existe total negligência dos órgãos competentes, seja no âmbito municipal, estadual e federal”, comenta..
No âmbito municipal, o ambientalista destaca a falta de acompanhamento contínuo por parte das secretarias. “Fazem algumas ações pontuais. Nesta nova gestão, percebo que supervalorizam números do tipo ‘Foram mais de 200 toneladas limpas de resíduos’. Na realidade, poucos questionam esses números e acabam passando como verdade. Não há projeto que faça regeneração contínua do mangue, nem que dê educação ambiental de forma descomplicada para o povo lagunar. Infelizmente, muita gente não tem algo básico como documento de registro como CPF, RG, título. Não tem acesso a saúde básica nos postos’, conta.
No âmbito estadual, destaca a responsabilidade do Instituto do Meio Ambiente e da Semarh. “Não existem políticas públicas de educação ambiental contínua nas escolas, ou política de resíduos sólidos para que não se coloque lixo de forma desordenada nas calçadas, nas ruas. E sabemos que, com as chuvas, esses resíduos são levados para os rios e posteriormente para laguna. Não existe política de barreiras ecológicas nos canais, que já são diagnosticados há anos por levar resíduos sólidos maiores para dentro da Laguna. Também não existe política de balneabilidade, com diagnóstico periódico dos padrões biológicos de oxigênio, manganês, mercúrio. São feitas ações pontuais que não respondem à necessidade macro que o Complexo necessita”.
Algumas outras ações são citadas, mas sempre numa perspectiva de insuficiência diante da gravidade da situação da Lagoa, como as algumas ações em educação ambiental em bases descentralizadas do Batalhão de Policiamento Ambiental e do IMA, mas ambos com pouca abrangência.
“É importante que se tenha um programa de educação ambiental e regeneração das matas ciliares, tendo em vista que o Rio Mundaú vem de Garanhuns, perpassa por 33 municípios, e muito dessas baixadas lagunares, topo de barreira e de morro, foram cortadas e ocupadas por casas em área de risco que, hoje, quando chove, se arrasta o lixo de encostas nessas cidades, além do esgoto com todo tipo de material e substância dessa região. Além disto, nosso estado, assim como Pernambuco, se utiliza do Rio Mundaú como local de retirada de água barata e disposição de água irregular em sua calha”.
Ainda que seja reconhecida a importância do Rio Mundaú em todo o território, há uma ausência de preocupação quanto ao cuidado dos territórios em que ele atravessa. “A retirada das matas ciliares, ocupadas por casas, indústrias e usinas, impacta de forma gigantesca as nascentes do rio, como também seu curso. Periodicamente, há grandes despejos de vinhaça e outros produtos químicos que vêm da indústria triste da cana de açúcar que, além de impactar tanto o meio ambiente, maltrata e muito os trabalhadores”.
Entre os questionamentos enviados aos órgãos, agora via Lei de Acesso à Informação (LAI), a Mídia Caeté solicitou dados de quais empresas e indústrias teriam sido oficiadas a respeito do despejo irregular de produtos químicos, vinhaça, com impactos diretos à Lagoa, além de também ter sido solicitada atualização a respeito da responsabilização à Braskem sobre as condições da Lagoa.
O papel do Comitê da Bacia Hidrográfica do CELMM também é evidenciado. Ou melhor, sua ausência. “Hoje não tem tido operação, nem diálogo com a comunidade ou academia. Mal se reúnem ou têm pautas que possam trazer soluções para os problemas que já são estabelecidos e periódicos”. A situação de abandono fica ainda mais evidente quando se compreende a série de leis e ações ignoradas. Em 1984, Netto rememora que diversas regiões inseridas no Complexo foram tombadas como Áreas de Proteção Ambiental (APA), o que constitui uma série de obrigações a governos municipais e estaduais no sentido de gerar projetos de ação em rios e no mangue, como educação ambiental, saneamento básico, tratamento dos resíduos domésticos que afetam a área da baixada lagunar, etc.
“Em 2000, foi criada a Lei 9985 que instituiu o Sistema Nacional de Unidade de Conservação, o SNUC”, relata. A partir da lei, se oficializa ainda mais a responsabilidade sobre um plano de manejo efetivo para as espécies endêmicas, como o próprio sururu, com o conselho, o projeto de extensão específico. “O que acontece, na prática, é que infelizmente o comitê é burocrático e administrativo e não tem responsabilidade nenhuma sobre os rios e lagunas a que tem responsabilidade de gerir”, acrescenta. A Mídia Caeté procurou o presidente do CELMM, Matheus Gonzales, mas ele informou que estava fora do estado e não poderia falar à reportagem. Já o portal do Comitê tem última atualização de entrega de plano de ação datada em novembro de 2006. Você pode conferir clicando aqui.
As informações sobre o Comitê seguem inseridas dentro do portal da Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA). Segundo Netto, a Agência é caracterizada mais um problema, quando são fragilizadas e se tornam balcão de negócios. “O racismo ambiental é muito grande. E, infelizmente, nesses municípios pouco se faz, e no âmbito federal também é irrisório. A ANA mudou sua forma administrativa e hoje está nas mãos do Centrão. Praticamente se tornou um puxadinho da CHESF, assim como o Comitê de Bacia Hidrográfica e da CODEVASF”
Múltiplos, difusos, e quem se responsabiliza?
Lembrar do crime ambiental que acontece no CELMM, hoje visibilizado pela mortandade de sururu e peixe na Lagoa Mundaú, é quase como soltar a antiga anedota do “todo mundo, alguém, qualquer um e ninguém”. A diferença acontece quando os nomes já são conhecidos, mas a responsabilização e a cobrança se dispersam ao longo de épocas, gestões e dinâmicas políticas.
São múltiplos os fatores identificados cientificamente, que geram o “apocalipse debaixo d’água” na Lagoa Mundaú e em todo o Complexo Estuarino. São também múltiplos os atores que conduzem agentes contaminantes e que, de um modo ou de outro, chegam na Laguna. Ao longo da reportagem, é possível verificar também que são múltiplas as entidades e gestões que, responsáveis pelo monitoramento, fiscalização, ou ações ambientais, também as negligenciam. No entanto, há protetores e investigadores – seja no laboratório, seja catando sururu na Lagoa – para evitar que o desfecho da situação seja chaá-la de tragédia, culpando a chuva, ou o barro. Enfim, mascarando ações humanas como fossem desastres naturais e inevitáveis.
Neste sentido, Alonso Netto cita o livro de Otávio Brandão, intitulado “Canais e Lagoas”. “É um livro de 1916, onde ele fala que já são cíclicas as doenças do sururu, assim como as doenças de veiculação hídrica do povo lagunar. Mas entendo que há uma mudança após 2015 a 2018, quando surgiu todo esse caso da Braskem e a mineração ficou mais evidenciada, inclusive com a morte do sururu em épocas distintas ao que acontecia antes, e a demonstração de ter sido um crime ambiental de maior proporção. Pesquisadores e educadores ambientais, institutos e universidades começaram a gerar dados e ter interesse em buscar informações em relação ao povo lagunar e os animais da região”, relata.
Alguns estudos foram destacados pelo militante, que identificaram grande volume de manganês, além da alta concentração de raticida. “Foram verificados índices bem acima do padrão e presença gigantesca principalmente no Mutange, Bebedouro, Flexal de Baixo. Tem produto de usina sendo jogado, e com a questão das pessoas que saíram dos bairros e deixaram muitos gatos e cachorros. Infelizmente um dos procedimentos de guerrilha que a própria Braskem tem usado é colocar venenos de ratos. Quando chove, esse material é encarrilhado e levado para a região lagunar. O veneno de rato tem grande poder de retirada de oxigênio da água. Cai uma gota e contamina milhares de litros” diz.
A falta de responsabilização, mais uma vez , entra em xeque. “Não existe uma responsabilização civil, criminal, administrativa, de nenhum dos órgãos, que de fato impacte em nosso Complexo. E essa responsabilidade é tripartite. Do cidadão, dos municípios, das empresas envolvidas no perímetro, e principalmente do Estado, que é de sua responsabilidade a gerência dessa unidade de conservação. É importante oficializar e documentar as devidas responsabilidades. E não apenas estas pequenas ações sendo feitas”