Os norte-americanos usam coloquialmente a expressão ‘devastado’ quando querem descrever um estado de espírito de profunda dor ou tristeza. A etimologia – que é o estudo da origem e evolução das palavras – sugere que o termo devastar deriva do latim devastare e é dicionarizada com os significados de arruinar, assolar, destruir, danificar, despovoar. No Brasil, a expressão é quase sempre usada para tratar de questões ligadas ao meio ambiente, sobretudo no que diz respeito às nossas florestas. Acertadamente os dois países fazem bom uso linguístico do verbo, contudo, a devastação sofrida em território brasileiro no ano de 2019 traz consigo efeitos colaterais bem mais danosos do que qualquer estado de ânimo americano.
E foi assim, devastado, que o ano do Brasil começou, quando a barragem B1, da mineradora Vale, em Brumadinho (MG), eclodiu. Até então, o rompimento da barragem em Mariana, também em Minas Gerais, ocorrido no ano de 2015, havia sido a maior tragédia ambiental do país. Milhões de toneladas de rejeito, mais de 253 mortes, e em seu primeiro pronunciamento oficial, o presidente Jair Bolsonaro dá sua primeira grande prova de despreparo envolvendo questões ambientais. O chefe da nação relata ter tomando conhecimento do rompimento de uma barragem de “dejeitos”, com d, e refere-se a mortos e feridos como “possíveis vítimas” (assista aqui). O que viria depois era uma sucessão de ações desencontradas e falas equivocadas, distantes da real necessidade dos sobreviventes e familiares. Entre tropeços, Bolsonaro tratou de desvincular a responsabilidade do governo, culpabilizando a Vale e enfatizando se tratar de uma empresa privada e que, portanto, deveria arcar com os custos da reconstrução da região sozinha. Que a Vale é culpada, não nos resta dúvidas, mas a União é corresponsável. Foram órgãos federais que deram licença para instalação e exploração da mineradora na cidade. O crime ambiental atingiu e ainda atinge a vida de centenas de milhares de pessoas. Embora especialistas enfatizem que o prejuízo humano foi maior que o ambiental e que Mariana segue sendo o crime ambiental no Brasil de maior impacto ao bioma, o mar de lama em Brumadinho prejudicou o abastecimento de água na região, causou a mortandade da vida aquática, arrastou 125 hectares de Mata Atlântica, contaminou o solo a arrasou comunidades ribeirinhas, inclusive indígenas.
Ao longo de 2019 o Brasil sofreu com desmatamento e queimadas descontroladas, ingerência política em órgão estratégicos, ameaça à vida marinha após o surgimento de manchas de óleo no litoral nordestino, bloqueio de recurso do Fundo da Amazônia, prisão de brigadistas, conflitos entre grileiros e comunidades indígenas, briga do presidente com ativista adolescente, exonerações, investigações, corte de verbas, debate sobre usina nuclear em Pernambuco, exploração de petróleo em Abrolhos. Para completar, a política anti-ambiental de Bolsonaro tem o apoio do controverso e ineficaz, Ricardo Salles, o ministro do Meio Ambiente, ruim de pronunciamentos, pior de ação.
Com base em dados divulgados no blog do jornalista e professor de jornalismo ambiental da PUC/RJ, André Trigueiro, a Mídia Caeté fez o resumo de 15 medidas equivocadas sobre a política ambiental praticada pelo governo Bolsonaro somente nos sete primeiros meses de governo. E o resultado é alarmante:
* Transferência da Agência Nacional da Águas para o Ministério do Desenvolvimento Regional e do Serviço Florestal Brasileiro para o Ministério da Agricultura;
* Revisão das 334 unidades de conservação que, segundo Salles, poderão ter os traçados revistos ou serem extintas;
* Projeto de Lei de Flávio Bolsonaro (PSL/RJ) defendendo o fim das Reservas Legais;
* Freio às fiscalizações de desmatamento promovidas pelo Ibama, acarretando em uma queda de 34% das ações e multas;
* Ibama divulgando os locais de repressão a crimes ambientais, dando tempo de fuga aos criminosos;
* Desejo do presidente em transformar uma área de refúgio de espécies marinhas, conhecida como Estação Ecológica de Tamoios, em espaço aberto para visitação e pesca;
* Afastamento do chefe do Centro de Operações Aéreas da Diretoria de Proteção Ambiental do Ibama, José Augusto Morelli, o mesmo que flagrou o presidente, quando era ainda deputado federal, em um barco com objetos de pesca na mesma Estação de Tamoios (uma fixação do presidente, ao que parece);
* Pedido de demissão do presidente do ICMBio, Adalberto Eberhard, dias depois de o ministro Ricardo Salles ameaçar abrir uma investigação contra fiscais do próprio instituto.
* Dança das cadeiras de diretores do ICMBio. Três pediram demissão e um quarto foi exonerado por Salles, pelo twitter, que em seu lugar nomeou um policial militar – sim, você não leu errado. Lembrando que o ICMBio administra quase 10% do território brasileiro;
* Desmantelamento da política climática com corte de 95% das verbas, além da exoneração do coordenador Executivo do Fórum Brasileiro de Mudanças Climáticas, Alfredo Sirkis, por promover evento no qual 12 governadores se manifestaram publicamente contra o aquecimento global;
* Impasse diplomático que resultou no congelamento dos repasses do Fundo da Amazônia. Noruega e Alemanha – que contribuem com 95% – bloquearam os repasses, depois de o ministro criticar o modelo de gestão do projeto;
* Tentativa de exploração de petróleo na região de Abrolhos, mesmo com parecer técnico do Ibama vetando. Sete blocos marítimos foram a leilão em outubro de 2019, mas não receberam nenhuma oferta. Responsável pelo pregão, ANP informou que as áreas não arrematadas entrarão em “oferta permanente;”
* Desenterro da MP 867, que muda as regras do Código Florestal e desobriga proprietários rurais de recompor matas e florestas. Por sorte, senadores não votaram a medida no prazo limite, fazendo ela perder a validade;
* Carta de oito ex-ministros do meio ambiente denunciando o risco real do aumento descontrolado do desmatamento na Amazônia;
* Abertura de processo do TCU contra Salles para investigar os índices de desmatamento a e liberação desordenada de agrotóxicos.
Aliás, sobre os agrotóxicos, com 57 novas autorizações somente no mês de novembro de 2019, o número no ano chegaria a 467 novas liberações se não fosse decisão provisória da Justiça do CE que barrou 63 venenos.
Mas isso foi só nos sete primeiros meses de governo. Os outros cinco ainda estavam por vir. Logo depois da crise provocada pelo desmatamento desenfreado na Amazônia, o diretor do Inpe, Ricardo Galvão, foi exonerado por divulgar a situação real. Ao invés de encarar o problema de frente, o presidente achou mais fácil exonerar Galvão por “propagando negativa do Brasil”. Resolvendo o problema do desmatamento demitindo quem analisa e divulga os dados verdadeiros e colocando lá alguém disposto a produzir propaganda positiva. Isso porque a Amazônia ainda nem estava em chamas. Depois disso vieram as queimadas descontroladas provocadas por grileiros e que tiveram presos e apontados como autores, brigadistas que trabalham em defesa da floresta. Vale lembrar que durante a crise, o presidente ainda deu algumas dicas e tomou medidas nada concretas para tratar da situação. A mais esdrúxula foi recomendar um jornalista a fazer cocô dia sim, dia não para ajudar na preservação do meio ambiente. Mas ainda assistimos ele culpar as ONGs pelas queimadas e até culpabilizar o ator norte-americano, Leonardo DiCaprio, pelos incêndios na floresta.
Incansável, resolve que em seu governo não haverá demarcação de terras indígenas. Acirrando a guerra entre grileiros e índios. Os casos de ataques e até mortes contra líderes indígenas, que já era grande no Brasil, cresce assustadoramente.
No Congresso, assistimos a aprovação de um Projeto de Lei que permite a privatização do saneamento básico. A medida segue na contramão dos países desenvolvidos que privatizaram o sistema de abastecimento de água e agora estão reestatizando as empresas após os péssimos resultados da privatização.
Bolsonaro também é autor da Medida Provisória que permite que as empresas de capital aberto publiquem seus balancetes em sites. Desconectado de qualquer preocupação ambiental, o próprio presidente declarou ser uma retribuição à mídia que o atacou. Em referência aos impressos que denunciam as mazelas de seu governo.
Eis que as praias do Nordeste brasileiro são tomadas por uma mancha de óleo, cuja a origem até hoje não foi esclarecida. Toneladas de óleo foram retiradas da costa pelas mãos dos próprios moradores. A inércia do governo é assustadora. Mais de 500 locais foram tomados pelas manchas, levadas até o litoral do Rio de Janeiro pelas marés. O incapaz Ricardo Salles apenas sobrevoa as áreas e promete ajuda. Enquanto a vida marinha está sob ameaça, o secretário de Aquicultura e Pesca do governo Bolsonaro, Jorge Seif Júnior, declara que “o peixe é um bicho inteligente”. Portanto, vivemos em uma país em que a inteligência dos peixes é a arma para a preservação marinha se o Atlântico for tomado por petróleo. A política ambiental é a do salve-se quem puder ou quem for inteligente como os peixes.
Declarações não tão dessemelhantes são proferidas por outro ministro, dessa vez o de relações exteriores, Ernesto Araújo, que afirma que não existe aquecimento global, com base onem umada de frio que ele experimentou em Roma, durante viagem ao exterior. Ainda segundo Ernesto, o aquecimento global é uma trama marxista.
Ora, nós nascemos ignorantes, mas não precisamos morrer também ignorantes. Temas como aquecimento global, desmatamento e poluição marinha são estudados de forma meticulosa por especialistas. Refutar ciência sem argumentos não é uma questão de opinião, é pura ignorância. Há quem diga que as falas absurdas de Bolsonaro e seus seguidores são uma espécie de cortina de fumaça criada propositalmente para que, enquanto a população discute o periférico, o grupo se articula e efetiva novas aberrações.
Não por acaso, em meio a essa tragicomédia, o presidente acaba apelidado de Exterminador do Futuro.
Enquanto isso, o governo brinca de fazer inimizade com a ativista Greta Thumberg e de acionar seu exército virtual para desconstruir a imagem de uma garota de 16 anos que tem mais a contribuir em um único discurso sobre o tema do que o presidente do Brasil durante um ano de governo e outros 18 como parlamentar.
Sua ‘brincadeira’ reverbera em situações ainda mais violentas contra os maiores protetores da floresta no país, os povos tradicionais. Neste sentido, percebemos o quanto o genocídio praticado contra a população indígena é também uma mensagem de legitimação da exploração. Vale matar, destruir, devastar. Nem humanidade, nem florestas. Nada que obstacularize a exploração e a produção de lucro de madereiros e ruralistas deve ser mantido em pé.
A carne sobe, a desconfiança no Brasil cresce e sim, estamos devastados. Devastados ao modo brasileiro e ao modo americano. O que esperamos de 2020? Mais compromisso político com o meio ambiente e suas questões. Se “ninguém solta a mão de ninguém”, que se aplique a um olhar mais atento, um ouvido mais sensível, e uma solidariedade de fato (e não de stickers) às vozes que têm morrido ou sido presas por denunciar essa devastação. Chega de conivência enquanto os bons são silenciados.
Ah, só pra finalizar…a Terra não é plana.