De acordo com um relatório do World Inequality Lab, divulgado em dezembro do ano passado, o Brasil é um dos países mais desiguais do mundo. A entidade faz parte da Escola de Economia de Paris e conta com a colaboração de centenas de pesquisadores.
Nesse contexto, as ações afirmativas se tornam ainda mais relevantes como alternativas para transformar esse cenário. Elas são políticas públicas cujo intuito é corrigir desigualdades acumuladas ao longo de vários anos.
Dentro dessas políticas, está a Lei de Cotas (12.711), que entrou em vigor no ano de 2012 e completou uma década em 2022. A legislação passou a determinar que as universidades federais deveriam destinar 50% das matrículas para estudantes autodeclarados negros, pardos e indígenas, de baixa renda e que tivessem cursado integralmente o Ensino Médio em escolas públicas.
“Estas políticas foram primordiais para o processo de democratização do acesso ao ensino superior. Todavia sabemos que o ingresso é a primeira parte do desafio para os cotistas, pois a permanência deles têm sido ameaçada por constantes cortes orçamentários nas áreas da educação superior e da ciência e tecnologia, alvos prioritários do governo federal nas tomadas de decisão relativas aos cortes. Somam-se a isso os impactos da pandemia sobre as condições de vida, trabalho e recursos dos estudantes e de suas famílias”, afirmou o doutorando em Ciências Sociais no Departamento de Estudos Latino-Americanos (ELA/UnB), Leonardo Andrade ao site da Universidade de Brasília (UnB).
Visando ampliar o acesso a conhecimento, não apenas no que se refere à graduação, a Universidade Federal de Alagoas (Ufal), através do Conselho Universitário (Consuni), aprovou uma resolução que amplia as cotas para os Programas de Pós-graduação Stricto sensu e os cursos de Pós-graduação Lato sensu. A partir de agora, passa a ser obrigatória a reserva de 10% das vagas para pessoas Trans (transgêneros, travestis e transexuais), refugiados e assentados.
A Mídia Caeté conversou com o professor Walter Matias, que conduziu a proposta de ampliação das vagas juntamente com a professora Débora Massmann. Ele ressalta a importância da medida.
“A ampliação das cotas para pessoas Trans (transgêneros , travestis, transsexuais), refugiados e assentados qualifica o acesso à universidade e à construção científica por pessoas que têm sido prejudicadas historicamente, devido ao processo de apagamento social da sua identidade e condição sócio-econômica, que as têm expulsado do cotidiano escolar em todos os níveis . Assim, a Ufal deu mais um passo para reconhecimento do direito à alteridade como exercício democrático”, afirmou.
O coordenador da Arte e Cultura do Centro de Acolhimento Ezequias Rocha Rego (CAERR), Will Correia, também enaltece iniciativas desse tipo.
“É uma medida necessária e urgente, que com certeza irá transformar a vida de muitas pessoas, exclusivamente daquelas que são sempre esquecidas pela sociedade. E vale salientar que é necessário uma atenção não só as pessoas que irão ingressar na pós-graduação, mas também para a graduação, que é, muitas vezes o ponto de partida para a transformação de pessoas e sonhos”, diz.
O professor Walter Matias lembra ainda que, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), menos de 0,1% das pessoas trans no Brasil estão em universidades federais e que 70% dessa população não concluiu nem mesmo o ensino médio.
“A atualização da Resolução de Cotas na pós-graduação da Ufal visa trazer ao público as razões dessa situação educacional alarmante e as ações que vêm sendo feitas para melhorar esse quadro. O mesmo se aplica para pessoas refugiadas e reconhecidas pelo Governo brasileiro, bem como pessoas assentadas e cadastradas pelo Incra”, destacou.
Matias continua ressaltando a relevância da aplicação dessas alternativas para contrapor o momento escancarado pelos dados citados acima, que reiteram o preconceito nos espaços coletivos de ensino – seja na educação básica ou no ensino superior.
“Não se deve esperar que a cidadania como direito seja efetivada por um passe mágico, mas sim como conquista política dessas pessoas vulneráveis, desde os fatores sociais aos econômicos. A Ufal não está dando um presente, mas realizando uma conquista de todos e de todas que lutam por uma sociedade democrática, onde radicalizar as contradições faz parte do exercício por justiça e por direitos”.
Leonardo Andrade e Will Correia seguem o mesmo pensamento.
“Sabemos ainda que sem a inclusão de pessoas LGBTQIAPN+ e, demais identidades, o ambiente acadêmico permanece desigual. Entendemos que o diálogo entre distintos saberes tem proporcionado uma formação mais diversa nas universidades públicas. Contudo, as ações afirmativas revelam o quanto as instituições de ensino seguem caracterizadas por desigualdades e conflitos, mostrando-se distantes de reconhecer outras corporalidades e saberes em seus espaços”, disse o doutorando.
“É com educação que mudamos o mundo, que mudamos a nossa estrutura, que transformamos a sociedade. A educação é base para o crescimento social, profissional e intelectual. Resolver esse problema é sem dúvidas dar e ocupar espaços. Precisamos incluir essas pessoas em todos os campos de atuação, e a cota é justamente a porta de entrada para essa mudança”, pontuou Will.
De agora em diante, os editais vão garantir a reserva de vagas para esses públicos, quando o número de vagas totais for igual ou superior a três. Como critério de inscrição, será utilizada a Auto Declaração para Pessoa Trans (Transgêneros, Transexuais e Travestis), e no caso de assentados, são consideradas as pessoas que habitam assentamento de reforma agrária e em um conjunto de unidades agrícolas, instaladas pelo Incra em um imóvel rural.
Em ambas as situações, o candidato deverá ser de família com renda igual ou inferior a 1,5 salário-mínimo e ter concluído ensino médio em escola pública. No caso dos refugiados, eles precisam apresentar o documento expedido pelo Comitê Nacional para os Refugiados (Conare), devidamente reconhecido pelo Governo brasileiro – no momento da inscrição.
Para o professor Walter Matias, é preciso investir em educação como direito de fato por meio de uma prática educadora, que profissionalize e forme criticamente, problematizando as contradições sociais e econômicas.
“Não é a educação como formalização de conhecimentos que muda preconceitos, além das desigualdades. Porém, sem essa educação – que aponta para alternativas às discriminações – o investimento será na ignorância que leva as pessoas ao servilismo. Ou evitamos isso ou perpetuamos a intolerância”, finaliza Matias.
Já o coordenador de Arte e Cultura do CAERR cita Paulo Freire para reforçar a necessidade de uma educação libertadora e transformadora.
“Como dizia Paulo Freire ‘Ninguém tem liberdade para ser livre: pelo contrário, luta por ela precisamente porque não a tem. Ninguém liberta ninguém, ninguém se liberta sozinho, as pessoas se libertam em comunhão’. Ou seja, é preciso que nós enquanto sociedade busquemos meios e ações que possam libertar e transformar o país. O que docentes e discentes da UFAL estão realizando é plausível e transformador, merece todo apoio da sociedade”, ressalta.
Com a nova resolução, a Ufal passa a ter – na pós-graduação – 20% de cotas para negros, 10% para indígenas, 10% para pessoas com deficiência, 10% para trans, refugiados e assentados e 10% para servidores da Universidade.