Educadores criticam modelo e questionam privilégio no financiamento de Escolas Cívico-Militares; Secretaria não responde

Diante de desafios da pandemia e desmonte nas escolas públicas, educadores questionam Programa do MEC aderido pela Prefeitura de Maceió
Foto: Observatório da Democracia

Lançado em setembro de 2019 pelo Governo Federal, o Programa Nacional das Escolas Cívico-Militares (EMC) já surge com uma meta: até 2023, 216 escolas nessa modalidade devem ser implantadas em todo o país, representando um total de 54 por ano. Em Maceió, o prefeito João Henrique Caldas decidiu pela adesão às ECM, após projeto indicado pelo vereador Leonardo Dias (PSB) ter sido aprovado pela Câmara, gerando imediatas manifestações contrárias de educadores e organizações educacionais em todo o Estado. As entidades questionam a diferença de financiamento dessas escolas em relação às demais públicas, enquanto demonstram preocupação com a gestão das instituições entregue a militares.

As críticas partem de história e experiências anteriores compartilhadas em todo o país de escolas militarizadas. Seguem desde o próprio formato militar – que segundo educadores confronta princípios constitucionais da educação pública- à lógica que privilegia recursos a estas instituições, enquanto as demais escolas públicas seguem em um processo progressivo de desmonte e falta de condições mínimas para profissionais e, sobretudo, estudantes.

Diretora do Sindicato dos Trabalhadores da Educação do Estado (Sinteal) e do CNTE, Girlene Lázaro, ressalta como a pauta das ECM já caiu atropelando outras demandas da Educação Pública, ainda mais em período de pandemia. “Existe toda uma preocupação da escola em cumprir com seu dever com o aluno, apesar de não haver ajuda do gestor. Não há equipamentos para as aulas. São dos próprios profissionais. Além do mais, nem todos os alunos têm acesso à internet, que é uma pauta que estamos cobrando agilidade. Então se criou um grande transtorno nas escolas em relação a isso”, explica.

Apesar da tensão atual, a preocupação já paira entre educadores desde que o projeto foi lançado. O Ministério da Educação (MEC) publicizou que os militares atuariam a partir do “apoio à disciplina” e “fortalecimento de valores éticos e morais”. O órgão chegou a colocar que as escolas não seriam militarizadas e que questões didáticas e pedagógicas e outras atividades exclusivas permaneceriam atribuídas a docentes.

Apesar da afirmação do MEC, o Decreto Nº 10.004, de 5 de setembro de 2019, que institui o Programa das Escolas Cívico-Militares, define entre suas diretrizes situadas no capitulo III:

  • VIII – viabilização da contratação pelas Forças Armadas de militares inativos como prestadores
    de tarefa por tempo certo para atuarem nas áreas de gestão educacional, didático-pedagógica e
    administrativa; 
  • XI – emprego de policiais e praças das polícias militares e dos corpos de bombeiros militares,
    para atuarem nas áreas de gestão educacional, didático-pedagógica e administrativa.

Já no artigo 7º,  a mesma portaria estabelece que caberá ao Ministério da Defesa:

  • II – colaborar com o Ministério da Educação na definição dos perfis profissionais dos militares
    inativos das Forças Armadas que atuarão nas ECM; e
    III – coordenar com o Ministério da Educação o processo seletivo dos militares inativos das
    Forças Armadas a serem contratados como prestadores de tarefa por tempo certo para atuarem nas ECM.
  • No Art. 8º Compete às Forças Armadas:
    I – promover a seleção dos militares inativos que atuarão nas ECM, de acordo com as
    orientações estabelecidas pelo Ministério da Defesa e pelo Ministério da Educação;
  • III – disponibilizar o corpo docente e os demais profissionais da educação necessários à
    implementação das ECM;
  • IV – elaborar diagnósticos e planos locais para a implementação das ECM;

Acesse o decreto que instituiu as ECM na íntegra clicando aqui. 

É nesse sentido que Girlene Lázaro questiona o que, na prática, os militares farão na escola. “Não acreditamos no que o Governo Federal diz sobre os militares não ocuparem cargo de educadores. Claro que vão ocupar. Isso já existe e em outros Estados tem sido feito dessa forma abrupta e antidemocrática”, conta. “Se eles vão para dentro da escola pública vai ser para assistir? Fiscalizar? Imputar sanções? Não. Vão para mudar o caráter da escola e fazer gestão. Eles impõem pela condição de serem militares. Irão impor modelo de cabelo, farda similar a militar. Também já sabemos que vão impor que  profissionais de educação não possam exercer atividade sindical, nem participar de reuniões, ou não permitir a entrada, como já acontece. Então não acreditamos nisso. E entendemos que é uma total afronta à Lei de Diretrizes e Bases da Educação, e à Constituição Federal. Nossa avaliação é que escola militarizada não cabe dentro da Educação Pública. O objetivo é outro. Por que não permanecem nas academias ou quartéis? Das escolas públicas nós cuidamos, porque sabemos qual é o nosso papel”, ressalta.

Impulsionador do projeto em Maceió, o vereador Leonardo Dias foi responsável por indicar o projeto aprovado na Câmara Municipal e defende a qualidade das ECM. “Esse debate precisa ser realizado, uma vez que essas escolas possuem resultados positivos, que podem ser medidos pelo próprio Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Ideb). Recentemente, por exemplo, a aluna Yasmin, oriunda do Colégio Tiradentes, foi uma das 28 pessoas que receberam nota máxima na redação do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM). Julgo importante ter essa opção aos pais e aos estudantes em virtude dos resultados alcançados por essas escolas.”

Dias defende “valores militares”, mas diz que quer educação “livre de amarras ideológicas”

Leonardo Dias diz possuir dados que confirmam a qualidade da educação nesse modelo de escola pelo Ideb, “que sempre contam com um quadro de competentes profissionais na área de Educação e professores que merecem o nosso respeito, não podendo apenas serem rotulados como “militares no lugar de profissionais”. Essas escolas contam com profissionais qualificados nos mais diversos campos das ciências, se assim não fosse, os resultados não seriam os que estão postos. Defendemos uma escola-cívico militar e não um quartel onde são colocadas crianças, mas sim uma unidade com quadro técnico competente, valores e disciplina”.

O problema é que, ao mesmo tempo em que defende os “valores” militares integrados nestas escolas, Leonardo Dias também diz que defende uma educação “plural e sem amarras ideológicas ou partidárias, e sobretudo com a presença e o respeito pela família no processo educacional”, disse o vereador. Segundo ele, famílias e alunos demonstram satisfação nestas instituições.

Jair Bolsonaro durante o Lançamento do Programa Nacional das Escolas Cívico-Militares – PECIM. Foto: Antônio Cruz/ Agência Brasil

“Ouçam as famílias que possuem seus filhos nessas unidades escolares. Ouçam os próprios alunos oriundos deste tipo de educação. Muitas delas são famílias de baixa-renda. A meu ver, preconceito é achar que algo, por ter o vocábulo “militar” em seu nome, é algo contrário a pobres etc. Isso é querer ter o monopólio da virtude dentro de uma retórica vazia. Eu respeito o trabalho desenvolvido nessas escolas por conhecer de perto e por saber a quantidade de alunos e famílias que foram atendidas por essas escolas. E, principalmente, os resultados e a satisfação dos alunos e pais envolvidos”.

A despeito de sua defesa de não incorporar elementos ideológicos no ambiente escolar, a própria Portaria do MEC especifica todos os elementos ideológicos de caráter militar que serão interpostos em tais modelos de escola pública. Eles podem ser verificados no Capítulo V que trata do modelo da escola:

Art. 11. O modelo de ECM é o conjunto de ações promovidas com vistas à gestão de excelência nas áreas educacional, didático-pedagógica e administrativa, baseada nos padrões de ensino adotados pelos colégios militares do Comando do Exército, das polícias militares e dos corpos de bombeiros militares.
§ 1º A gestão na área educacional será alcançada por meio de ações destinadas ao desenvolvimento de comportamentos, valores e atitudes, com vistas ao desenvolvimento pleno do aluno e ao seu preparo para o exercício da cidadania.
§ 2º A gestão na área didático-pedagógica será alcançada por meio de ações relacionadas à supervisão escolar, ao apoio pedagógico, à psicopedagogia, à avaliação educacional e à proposta pedagógica. 

Dias contesta as informações de que haverá distinção na defesa da qualidade entre os modelos de escola. “O que posso dizer é que defender a existência de unidades cívico-militares não é esquecer do todo da Educação. Educação pública tem que ter qualidade no todo, tem que ter formação constante dos profissionais, trabalho sério, pautado na busca de resultados e com foco na construção de melhores futuras gerações”, propagandeia, embora reconheça não saber como será efetuada a política de financiamento para as distintas modalidades escolares.

Para Girlene Lázaro, são os defensores das ECM que não apresentam elementos para fundamentar a ideia de ‘melhoria na qualidade’. “Quais parâmetros utilizam para fazer a comparação? Escola pública tem que ter recurso, valorização e condições. Se eles têm melhor qualidade de ensino, é porque recebem mais recursos públicos que não chegam na escola. E por que na Escola Cívico-Militar, o dinheiro chega em maior quantidade e não chega na escola pública? Porque ela é tratada de forma diferenciada desqualificando a outra, para mostrar uma realidade que não é verdadeira. O que eles querem é uma excelência com as condições que deveriam ser para as escolas públicas civis. Então não concordo nem acredito na qualidade melhor de ensino, sem que as condições dadas para uma e para outras sejam as mesmas. Essa narrativa é falsa e enganosa para nós”.

De acordo com a Decreto n. 10004 do MEC, os recursos utilizados para implementação do Programa das ECM são disponibilizados pelo ministério com parcerias do Ministério da Defesa, dos Estados, dos Municípios e do Distrito Federal, observado o disposto no art. 25. O artigo 25, por sua vez, dispõe que:

Para a execução do Pecim, poderão ser firmados convênios, termos de compromisso, acordos de cooperação, termos de execução descentralizada, ajustes ou outros instrumentos congêneres, com órgãos e entidades da administração pública federal, estadual, municipal e distrital e com entidades privadas sem fins lucrativos.

De acordo com informações da Agência Brasil, o MEC investirá em R$ 1 milhão por escola – seja para pagamento dos militares, infraestrutura e materiais escolares. Os demais investimentos e contrapartidas não foram divulgadas. A Mídia Caeté buscou a Secretaria Municipal da Educação, via assessoria, e não obteve respostas do órgão.

“Inconcebível o abandono da gestão democrática”

Entre as entidades que contestam a adesão de Maceió às ECM, o Centro de Educação da Universidade Federal de Alagoas (Ufal), o CEDU, manifestou a contrariedade de imediato através de uma nota, que começa criticando a própria motivação utilizada para justificar essa implementação.

“O Programa Nacional das Escolas Cívico-militares insiste na ideia de que os problemas da educação pública brasileira podem ser solucionados com a rígida disciplina militar. Reforça o preconceito contra as comunidades pobres e periféricas, em geral muito mal assistidas por políticas sociais, e especialmente vítimas da violência e da criminalidade. Militarizar as escolas para reprimir a juventude da periferia não é solução, e gera mais exclusão social, principalmente nas populações em situação de vulnerabilidade social”, descreve.

A nota também reforça como a narrativa esconde o modelo de financiamento privilegiado em relação às demais escolas públicas, além de uma legislação que destoa das finalidades apontadas pela Educação Básica. “É um engodo enaltecer o modelo de escolas militares, que recebem financiamento maior do que o das escolas públicas comuns e atendem estudantes previamente selecionados. O ensino militar deve estar voltado àqueles e àquelas que escolhem essa carreira. Sua legislação é diferenciada e suas finalidades são bem específicas e, por isso, não podem ser confundidas com as finalidades da Educação Básica comum a todos e todas cidadãos e cidadãs brasileiros/as”.

Dentro do âmbito prático, as críticas já começam nas dúvidas sobre como vêm sendo implementadas as escolas. Até o momento, Governo Federal e Prefeitura de Maceió vêm propagandeando que haverá consulta pública anterior e necessidade de aceitação das comunidades escolares para efetiva consolidação das ECM, já aderidas pelo Município. A Secretaria Municipal da Educação (Semed) chegou a emitir uma nota, relatando que as consultas públicas seriam efetuadas.

“Nos últimos dias foram reuniões on-line para falar sobre o projeto para as duas escolas em questão, onde apresentamos a Portaria do Ministério da Educação (Nº 1. 071, de 24 de dezembro de 2020) e também para orientar uma consulta pública entre comunidade escolar. Reforçamos também que sobre esta possível implantação, nada será feito de forma impositiva, tudo será feito baseado no diálogo democrático. A Semed reforça que nada será feito sem a consulta à comunidade escolar, aos gestores escolares e aos conselhos escolares. E as últimas reuniões foram justamente pra ouvir todos os envolvidos”.

A Mídia Caeté questionou à Semed sobre como será feita a consulta pública entre comunidade escolar, mas a Secretaria não emitiu nenhuma resposta. No centro de tantas dúvidas e discordâncias já vem caminhando o projeto para duas escolas serem inseridas neste formato. Uma delas se trata escola municipal Antídio Vieira. No início de março, a Câmara Municipal de Maceió também indicou a aprovação da construção de uma nova escola neste formato, também com projeto impulsionado pelo vereador Leonardo Dias (PSD).

Em uma nota anterior enviada à imprensa, a Semed chegou a informar que a adesão efetuada em janeiro deste ano é preliminar e não vincula diretamente sua implantação na rede municipal, uma vez que ainda serão efetuados estudos, análises e preparação das escolas, além de diálogo entre professores, pais e alunos. Também segundo a Secretaria, ainda não existe uma comissão para implantação e reforça que “nada será feito de forma impositiva, tudo será feito baseado no diálogo democrático”.

Para a diretora do sindicato, as incertezas terminam por dificultar ainda mais a situação. “Existe fala da Semed de que não vai finalizar a adesão sem amplo debate, que queremos participar também. O secretário Elder Maia afirmou que nenhuma posição de efetivação vai ser tomada sem consulta com a comunidade e é o que a gente espera. Mas o que temos recebido das escolas é que não aceitam, que foram pegas de surpresa, e que, portanto, essa decisão não é democrática. Com isso, tem criado um certo pavor dentro da comunidade escolar. A incerteza não ajuda, principalmente diante desse período de pandemia. E aí surge mais um estado de tensão permanente sem necessidade”.

Escola de Ensino Fundamental Professor Antídio Vieira é uma das instituições indicadas para adesão de modelo Cívico-Militar pela Semed. Imagem: Google

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