Para entender a queda da taxa de fertilidade no Brasil e discutir o atual modelo de planejamento familiar, é preciso antes contextualizar fatos políticos, econômicos, históricos e até religiosos que explicam esse fenômeno.
O ano era 1960, quando o país deu início a um descontrolado êxodo rural que durou até a década de 1990. Foi também em 1960 que os anticoncepcionais chegaram ao mercado brasileiro, enquanto, entre 1964 e 1985, o Brasil viveu o período da ditadura militar. Esses são os principais fatores que determinam a mudança de comportamento na formação das famílias brasileiras nos últimos anos, mas não os únicos. Ideologias culturais, político-partidárias, questões étnicas e até o cristianismo interferiram e interferem até os dias atuais na composição dos lares brasileiros. Quase sempre a violação de direitos básicos, como saúde, educação e o direito pelo próprio corpo, impõe às mulheres, sobretudo às negras e pobres, uma ditadura da “família adequada”.
É bem verdade que o processo de lares menos populosos é uma tendência mundial. Entretanto, a desaceleração no Brasil se deu de forma muito rápida em comparação com o resto do mundo. Os institutos de pesquisa registram uma queda vertiginosa no país em apenas 30 anos. Antes do êxodo, a falta de escolaridade, a necessidade de mão-de-obra nas zonas rurais e o elevado índice de mortalidade infantil justificavam as grandes famílias. Na década de 1950, brasileiras em idade fértil tinham em média 6,2 filhos, nos anos 70 essa média já era de 4,7, atualmente esse número é menor que 1,7, número inferior à média na América Latina que é de 2, e também menor que a média mundial, que é de 2,5 filhos por família.
FATORES SÓCIO-ECONÔMICOS
A urbanização levou muitas mulheres à escola e ao mercado de trabalho. Com acesso a mais informação e de olho em carreiras promissoras, as mulheres (sobretudo mulheres brancas e de classe média/alta) têm engravidado cada vez menos. Os números só diferem quando assunto é gravidez na adolescência. Segundo dados divulgados pela Organização Mundial da Saúde (OMS), o Brasil tem 68,4 bebês nascidos de mães adolescentes a cada mil adolescentes entre 15 e 19 anos. O número entre meninas de 10 a 14 anos também registra crescimento, mas via de regra as famílias são cada vez menores.
As mulheres são as mais afetadas. Como engravidam, recai sobre elas a responsabilidade de evitar a gravidez. Também aumentou o índice de mulheres que optam por carreiras de sucesso e que priorizam o trabalho, colocando a família – ou pelo menos o momento de ter filhos – como algo secundário. Também motivados pelo desejo de uma independência financeira ou pela ideia de dar aos filhos um futuro melhor do que os seus próprios, os pais optam por ter cada vez menos filhos. No Brasil, os custos de um filho podem variar no Brasil de R$ 53.700 a mais de R$ 2 milhões. Os dados são de uma pesquisa realizada pelo Instituto Nacional de Vendas e Trade Marketing (Invent) que simula os custos desde o pré-natal até os 23 anos e leva em conta quesitos como moradia, educação, lazer, vestuário, entre outros.
Outro fator é a queda na taxa de mortalidade infantil, que teve redução abrupta após políticas públicas implementadas pelos governos do ex-presidentes Lula e Dilma. Antes, as mães tinham filhos para ajudar no trabalho da roça, nas atividades de casa, para cuidar dos idosos da família ou em substituição aos filhos que, eventualmente, faleceriam logo mais.
ESCOLA
O acesso à educação também freia o aumento das famílias. Além dos esclarecimentos sobre os riscos e consequências da gravidez na adolescência, dos meios contraceptivos e das Infecções Sexualmente Transmissíveis (ISTs) – acessados através da educação sexual – na escola os jovens também ganham novas perspectivas e fazem planos para uma vida acadêmica e profissional, esses novos sonhos acabam adiando o desejo de formar famílias.
Veja compilação de dados:
Gastos Classe A Classe B Classe C Classe D
Moradia R$ 345 mil R$ 298.200 R$ 61.400 R$ 28.800
Educação R$ 703.644 R$ 365.900 R$ 185.100 Nulo
Lazer R$ 421.024 R$ 94.800 R$ 38.800 R$ 4.800
Outros R$ 616.934 R$ 189.200 R$ 121.800 R$ 20.100
TOTAL R$ 2,086 mi R$ 948.100 R$ 407.140 R$ 53.700
FATORES CULTURAIS E RELIGIOSOS
Católico e conservador, a Brasil também tem seus lares afetados por questões de fé. Contrária a temas de interesse de saúde pública e não de religião, a igreja e seu posicionamentos conservadores induzem seus fiéis ao não uso de métodos contraceptivos (como pílulas e camisinhas), é contrária ao aborto, ao divórcio e outras questões fundamentais que interferem diretamente na quantidade de filhos das famílias no país. A igreja também debate temas como a adoção de casais homoafetivos, defendem o celibato para padres e uma série de outras medidas que transformam as famílias brasileiras em maiores ou menores, a depender das ‘crenças’ católicas. Os evangélicos também contribuem e enquanto as igrejas decidem o que é melhor para os casais, as famílias seguem desordenadas.
A Mídia Caeté procurou uma especialista para tratar do assunto. Doutora em Direito Civil pela Universidade de Coimbra e pela Universidade de São Paulo, mestre em Ciências Jurídicas pela Universidade de Lisboa, assessora jurídica e professora da Faculdade de Direito da Universidade Nacional Timor Lorosa e presidente da Comissão de Biodireito e Bioética do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), Marianna Chaves é a nossa entrevistada:
Mídia Caeté – De que forma as políticas públicas podem inibir ou estimular os índices de fecundidade nos lares brasileiros?
Marianna Chaves – A fecundidade (conceito análogo à fertilidade) é a capacidade de reprodução de maneira natural. Pode-se dizer que as políticas públicas podem, sim, influenciar no aumento ou na diminuição da fertilidade, ainda que de maneira indireta. Alguns dos fatores que causam infertilidade estão ligados visceralmente a políticas públicas. Um sistema de saúde precário, que não atenda satisfatoriamente os cidadãos, mormente no que diz respeito a doenças venéreas, vai influenciar negativamente nas taxas de fertilidade. Um meio ambiente poluído, falta de saneamento básico, tudo isso influencia na saúde reprodutiva das pessoas. As políticas públicas também influenciam na taxa de natalidade. É possível que mulheres tenham uma capacidade de reprodução considerada normal, mas não consigam levar a gravidez até o final em razão de abortos espontâneos causados por problemas de saúde não tratados ou mesmo falta de atendimento pré-natal. Assim, a falta de atenção ou uma atenção precária na saúde pública pode influenciar diretamente nas taxas de natalidade.
MC – É possível afirmar que, ao longo dos anos, essas mesmas políticas públicas determinaram o conceito e a formação das chamadas ‘famílias adequadas’ no Brasil?
Marianna Chaves – Penso que os atuais óbices ao planejamento familiar, principalmente no que diz respeito ao direito reprodutivo em sentido negativo terminam por talhar um conceito de família – moralmente e eticamente contestável – que se baseia exclusivamente na ideia bíblica do “crescei e multiplicai-vos”. Por outro lado, tentou-se a todo custo evitar que as pessoas e casais que não se encaixassem nesse conceito de família pudessem exercer a parentalidade, fosse pela adoção, fosse pelo acesso à reprodução assistida, mormente os homossexuais. Nesse último caso, a questão está ultrapassada, já que hoje o Brasil equiparou as famílias homoafetivas às famílias heteroafetivas, reconhecendo-lhes o direito ao casamento, à união estável, à adoção e ao acesso às técnicas de reprodução assistida.
MC – Além de questões de gestão pública, que outros fatores podem influenciar o planejamento familiar no Brasil?
Marianna Chaves – Certamente, a educação sexual. Além das políticas públicas voltadas à saúde sexual e reprodutiva das pessoas, a existência de educação sexual da população pode influir no planejamento familiar. Por incrível que pareça, ainda há pessoas que desconhecem a que possuem um direito reprodutivo negativo, ou seja, um direito à contracepção, por métodos de barreira (preservativos), hormonais (orais, injetáveis, implantes, etc.), mecânicos (DIU), definitivos (cirurgias de esterilização). De igual maneira, boa parte da população desconhece a possibilidade de se poder recorrer à medicina reprodutiva e às técnicas de reprodução assistida nos casos de dificuldade ou impossibilidade de procriação. Portanto, a educação dos nossos cidadãos neste contexto é fundamental para que possam exercer o seu direito ao planejamento familiar.
MC – Mesmo inseridas em uma política econômica cujo custo médio de um filho é cada vez mais alto, como explicar que as famílias pobres, sobretudo as formadas por negros e pardos, seguem sendo as mais numerosas no país?
Marianna Chaves – Falta de acesso aos métodos de contracepção que já comentei. Essa questão é tratada em profundidade em um parecer do Instituto Brasileiro de Direito de Família (elaborado por mim, pelo Rodrigo da Cunha Pereira e pela Maria Berenice Dias, Presidente e Vice-Presidente do IBDFAM) que foi juntado à Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 5911, proposta pelo PSB junto ao Supremo Tribunal Federal, que contesta alguns artigos da Lei de Planejamento Familiar. Um dos artigos prevê que uma pessoa só pode recorrer à esterilização voluntária se tiver pelo menos dois filhos ou 25 anos. Critério etário, a fixação de prazos e a imposição de um “desencorajamento” à esterilização voluntária violam frontalmente a letra do art. 226, §7º da Constituição, que estabelece que o planejamento familiar é “livre decisão do casal”, devendo ser “vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas”. Como dissemos no parecer que eu mencionei, essas previsões inconstitucionais configuram “uma espécie de aliciamento pró-natalidade, que pode ter como resultado maternidades/paternidades indesejadas, existentes tão-somente pela coação – explícita ou velada – por parte dos agentes públicos”. Não raras vezes, as mulheres chegam nos postos de saúde ou nas unidades de saúde da família e não há contraceptivos. Há uma distribuição em massa de preservativos no Carnaval, mas e depois? Há relatos de mulheres que procuram o SUS e lhes é negado o direito da esterilização voluntária com base na Lei de Planejamento Familiar ou, muitas vezes, em alegações absurdas como a de que mulher solteira não pode ser esterilizada porque não tem um marido para consentir ou que mulher que teve parto normal ou parto por cesariana não pode fazer laqueadura. Com todos esses problemas, as pessoas economicamente vulneráveis só conseguem efetivamente evitar a gravidez com um celibato compulsório, o que não irá acontecer.
MC – Existe, no Brasil, algum centro de fertilização com preços acessíveis ou gratuitos para mulheres de baixa renda que queiram engravidar?
Marianna Chaves – Há uns poucos centros de saúde e hospitais que atendem pelo SUS. A maioria dos Estados não possui um único serviço e as filas de espera são imensas. Em clínicas privadas, os preços definitivamente não são acessíveis à população de baixa renda. Infelizmente, o sistema público de saúde brasileiro não vem se mexendo no sentido de baratear os custos para que uma parcela maior da população possa ter acesso à reprodução assistida. Há pesquisas feitas em diversos países em desenvolvimento (que indiquei no livro Aspectos Jurídicos da Reprodução Assistida, escrito em coautoria com o Professor Eduardo Dantas) que trazem uma série de protocolos de baixo custo que não comprometem a qualidade dos procedimentos.
MC – Apesar da taxa de natalidade ter diminuído no Brasil, essa mesma taxa entre meninas de 10 aos 14 anos e adolescentes de 15 a 19 aumentou. A que se deve esse fenômeno?
Marianna Chaves – À falta de educação sexual nas escolas e nas famílias.
MC – Na atualidade, setores conservadores da sociedade trouxeram à baila discussão a nível nacional sobre o fim da educação sexual nas escolas. Qual a sua opinião sobre o assunto e de que modo isso pode afetar as próximas gerações?
Marianna Chaves – A falta de educação sexual nas escolas e no seio familiar termina por tornar o sexo um tabu e não um fato natural da vida das pessoas. Isso faz com que as crianças e jovens tenham pouca ou nenhuma informação sobre gravidez e doenças sexualmente transmissíveis. Essa negligência leva ao crescimento das taxas de gravidezes que você mencionou na pergunta anterior e também ao aumento do contágio por DSTs e pelo vírus HIV.
MC – A que tipo de amparo legal famílias de baixa renda, sobretudo as mulheres, podem recorrer para garantir direitos básicos que lhe permitam um planejamento familiar adequado? Ainda sobre as leis no Brasil, elas são caducas ou apenas não são cumpridas?
Marianna Chaves – As pessoas de baixa renda podem sempre recorrer ao judiciário através da Defensoria Pública. Entretanto, a nossa Justiça ainda é bastante conservadora no que diz respeito aos direitos reprodutivos. Relativamente às leis, temos os dois cenários. Como mencionei, a Lei de Planejamento Familiar possui dispositivos ancorados em séculos passados e até mesmo inconstitucionais, e ainda assim, há quem desrespeite o que já lá está.
MC – Que medidas emergenciais o Brasil deve adotar para diminuir a disparidade do planejamento familiar entre as famílias mais pobres e as mais ricas?
Marianna Chaves – A primeira e mais concreta é rever a Lei de Planejamento Familiar. Tenho esperança de que vários dispositivos, como já referi, sejam considerados inconstitucionais pelo STF. Mas esse julgamento pode demorar e, até lá, as famílias em situação econômica desfavorável ficam vulneráveis. Essa era uma agenda que deveria ser prioridade no nosso Parlamento, mas dificilmente essa questão seria tratada de uma maneira harmonizada com os direitos humanos reprodutivos, tendo em vista o conservadorismo atual do nosso Congresso. Fica, portanto, a esperança da declaração de inconstitucionalidade pelo STF. Até lá, de forma individual, os juízes poderiam, caso a caso, reconhecerem que não se deve tolher os direitos reprodutivos daqueles que se encontram em hipossuficiência. Só assim um cenário de justiça reprodutiva, onde o direito à saúde de todos é respeitado, será alcançado.
Na contramão do direito, da liberdade sexual, da ciência e até da lógica, a ministra dos Direitos Humanos, da Família e das Mulheres, Damares Alves, anunciou, durante o Dia Internacional da Juventude, em cerimônia realizada no Palácio do Planalto, que em fevereiro será lançada, em parceria com o Ministério da Saúde, uma campanha pela abstinência sexual. Embora a campanha seja direcionada para público com idade entre 10 e 18 anos, essa foi a única medida conhecida pelo atual governo federal nos último 12 meses, para conter a gravidez na adolescência. Ainda segundo a ministra, o outro objetivo da campanha seria expor ao público jovem as vantagens de prorrogar o começo da vida sexual. Em fala concedida ao jornal O Globo, o secretário nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, Maurício Cunha, relatou que a campanha “não é pautada em elementos religiosos e sim em estudos científicos”.
Enquanto a União trata o tema com esse grau de seriedade, as famílias brasileiras seguem à deriva.