Há quase dois anos com trabalhos informais e eventuais, o médico cubano Wilder Gonzalez Diaz depositou a confiança de retomar sua profissão no Brasil com a abertura de um edital de reincorporação dos profissionais do programa Mais Médicos. Lançado pelo Ministério da Saúde em março deste ano, o edital apareceu como uma medida para reforçar os atendimentos no combate à pandemia do Coronavírus, através da instituição de um novo programa: o Médicos pelo Brasil. O problema é que o documento apresentou também uma lista prévia de candidatos, impedindo que pelo menos 1200 profissionais realizassem a inscrição na internet– mesmo que respondessem a todos os requisitos.
Wilder Gonzalez, um dos profissionais que não conseguiu realizar a inscrição, chegou ao Brasil em dezembro de 2016. Começou a atuar de imediato em Chã Preta, um município em Alagoas com pouco mais de 7 mil habitantes. Em novembro de 2018, declarações de Jair Bolsonaro motivaram o governo de Cuba a romper com o acordo internacional do programa Mais Médicos. O país enviava profissionais de saúde para o Brasil desde 2013 para atuar em localidades do país em que médicos brasileiros não chegavam a ir, e se chegavam, não permaneciam por muito tempo.
Com a saída de Cuba após o fim do acordo, oito mil médicos – inclusive Wilder- tiveram o trabalho suspenso. Destes, cerca de 2,8 mil decidiram permanecer no país mesmo sem a licença para atuação, cuja isenção de registro era exclusiva para quem atuava dentro do programa. “Fiquei fazendo ‘bicos’. Fazia faxinas em casa, procurando a vida. Então como tinha família já conformada aqui no Brasil, casado com uma brasileira, então fiquei no Brasil com minha família”, relatou.
Além da situação familiar, a permanência de Wilder e de milhares de outros médicos cubanos era motivada por uma expectativa de melhores condições de trabalho no Brasil, alavancadas por discursos de Bolsonaro ainda durante sua campanha – de que acolheria e regulamentaria quem decidisse ficar no Brasil.
Aprovada em dezembro de 2019, a lei 13.958 instituiu o Programa Médicos Pelo Brasil e reincorporou ao projeto Mais Médicos pelo prazo de dois anos os profissionais intercambistas que permaneceram no Brasil até agosto de 2019, como naturalizado, residente ou com pedido de refúgio. Há ainda as condições de estarem no exercício das atividades até o dia 13 de novembro, e terem se desligado apenas em razão da ruptura de acordo com Cuba.
Com a lei sancionada, os médicos permaneciam na expectativa de retorno ao trabalho. A espera teria acabado agora, em meio à pandemia do Coronavírus, diante do edital do Ministério da Saúde interposto em março de 2020. Clique aqui para ler na íntegra.
“Tentamos fazer a inscrição, mas uma trava impedia que a gente colocasse o CPF porque não estava em uma lista em anexo. Procuramos o Ministério da Saúde, e eles disseram que a lista foi encaminhada pela Organização Pan-Americana de Saúde, a OPAS que mediava o acordo com Cuba durante o Mais Médicos. Quando procuramos a OPAS, eles disseram que não tinham encaminhado nenhuma lista”, relatou. A lista foi apresentada na página do edital, que você pode conferir clicando aqui.
Segundo Wilder, há cerca de 1200 médicos aptos à candidatura que foram excluídos pela lista. “Muitos entraram com ação coletiva, outros individual, Nós ganhamos a ação coletiva no dia 14 de março e tiveram que suspender o edital”.
A ação em questão foi uma liminar na Justiça Federal do Pará representada pela defensoria regional de direitos humanos do Amapá e do Pará (DRDH/AP-PA), que apontou a restrição ilegal. Ajuizado o pedido de tutela apresentava ainda um e-mail da OPAS relatando não ter encaminhado nenhuma lista, e um numero de cerca de 80 médicos na região Pará e Amapá potencialmente prejudicados. Segundo Wilder Gonzalez, em Alagoas há pelo menos 30 médicos nesta situação. A Justiça Federal determinou a reabertura das inscrições, com a retirada da trava digital que impedia a inscrição dos médicos que não estavam inclusos na lista.
Com edital suspenso, o Ministério da Saúde não cumpriu ainda com a determinação judicial – liberando as inscrições – e não manifesta nenhuma resposta. A Mídia Caeté buscou contatos com a OPAS e com o Programa Mais Médicos, e não obteve êxito. O mesmo ocorreu na busca por respostas junto ao Ministério da Saúde.
Entre a medicina social e a privatização da atenção primária
A pandemia do Coronavírus que atinge seu pico no país já começa a provocar sinais de colapso no sistema de saúde em diversos estados, extrapolando os limites da possibilidade de atendimento, por falta de unidades, equipamentos e déficit de profissional. O grupo de médicos cubanos apela para a Medida Provisória 926 de enfrentamento ao Covid-19, e afirma estar pronto para atuar, oferecendo seu arcabouço de experiências emergência epidemiológica.
Em carta encaminhada ao Ministério da Saúde, os médicos cubanos em Alagoas atentam para capacitação em setores como Urgências e Emergências, Terapia Intensiva, e em Saúde da Família, além de curso AVA SUS sobre “Vírus respiratórios emergentes, incluindo Covid-19”.
Além do reforço de pessoal e do acúmulo de experiências epidemiológicas, a oferta de serviços viabilizada pela inserção dos médicos cubanos traz a qualificadora de profissionais originados de um sistema médico comunitário extremamente distinto da medicina brasileira – elitizada e que frequentemente se recusa a atuar nos locais mais longínquos do país.
Caracterizando a excelência do complexo médico químico-farmacêutico cubano, o cientista político Bruno Lima Rocha retrata a profundidade da distinção entre a medicina produzida em Cuba em relação à medicina brasileira.
“Cuba tinha uma base de cooperação técnico-científica, e criou complexos, como médico-social e outro educacional-esportivo. Tem muitos profissionais liberais formados e muita gente da área da saúde”, relata. “Só que Cuba tem um bloqueio econômico e, para driblar, exportam recursos humanos através de convênios. Na área da saúde, chegou a encaminhar até 45 mil pessoas para a Venezuela, desde Chaves. O pagamento do estado venezuelano era feito em petróleo. Era um escambo de médico por petróleo”, relata.
No Brasil o acordo realizado em 2013, no governo de Dilma Roussef, instituía o programa Mais Médicos, através de um convênio mediado pela Organização Pan Americana de Saúde (OPAS). O acordo produziam, por um lado, a interiorização de uma medicina de base comunitária, preventiva.
Por outro lado, porém, quando os médicos cubanos chegaram ao Brasil, a comparação com o status da medicina brasileira associada às próprias condições de trabalho trouxeram impacto. Para Wilder Gonzalez, a parceria se traduziu em descontentamento. Sem querer falar muito sobre a relação atual com Cuba, limitou-se a apontar que “Todo o dinheiro que tínhamos que pegar ficavam com Lula e o governo de Cuba. Então nós fomos escravos dos dois governos”.
Lima Rocha destrincha essa relação acrescentando outros elementos: “A partir do intercâmbio do Mais Médicos intermediado pela OPAS, médicas e médicos cubanos recebem infinitamente menos do que os médicos brasileiros. Acrescentemos o fato de que o estado cubano não exige sequer condições de moradia subsidiada – como é o caso do padrão militar brasileiro. O estado cubano podia demandar dos países que o contratam esse tipo de situação: prover casa, vaga na escola – ainda que em escolas públicas – desde que houvesse uma vida subsidiada, e isso com certeza não foi feito”, acrescenta.
Com o rompimento do acordo com Cuba no Mais Médicos, Bolsonaro instrumentalizou a situação, resumindo e reforçando seu discurso dos ‘cubanos escravos’ enquanto prometia um tratamento distinto aos que decidissem romper com Cuba e ficar no país. O discurso não era abnegado. O Brasil começava a enfrentar sua baixa no número de profissionais nos locais onde os profissionais caribenhos tiveram trabalho suspenso.
“Eles pensaram que iriam poder trabalhar como médicos e ter um padrão de vida dos brasileiros, mas, pela lógica da medicina brasileira, não é tão fácil assim, porque é elitista, e não uma medicina comunitária e preventiva como em Cuba”, atentou o cientista político. “Além disso, Bolsonaro garantiu que eles poderiam ficar, com documento migratório da PF, mas não deu garantias em relação à atuação profissional. Eles têm que girar em cima de contratos emergenciais”.
O advento do Coronavírus impulsionou a necessidade de inserir os contratos emergenciais, mas desta vez os termos são outros. Mesmo a inserção dos médicos cubanos não vai impedir o cada vez maior distanciamento de um vislumbre de medicina social experimentado pelo país. “Esses 2500 ficariam aqui de qualquer maneira, e qualquer capacidade de trabalho estariam aceitando – do mesmo modo como aceitaram a convocatória de Bolsonaro e automaticamente se afastam da medicina social”, ponderou
Esse afastamento conflui com o caminho adotado pelo Brasil pela Medida Provisória que instituiu o programa Médicos pelo Brasil: o aprofundamento da privatização da atenção básica. Essa prática se deu a partir da criação, na mesma MP 890, a construção da Agência para o Desenvolvimento da Atenção Primária à Saúde (ADAPS), cuja finalidade passou a preocupar pesquisadores do país por seu caráter de Serviço Social Autônomo (SSA), uma figura jurídica de direito privado com representação empresarial.
Um destes estudos, publicado no caderno de saúde pública e assinado por Lígia Giovanella e outros autores, conclui que “Em síntese, a MP propõe ajustes duvidosos no provimento, uma agência privatizante e o abandono da agenda de regulação da formação de especialistas, de expansão da residência em medicina de família e comunidade e de reorientação da formação na graduação. Frente a essas e outras medidas 26 que ameaçam os princípios que estruturam o SUS constitucional – universalização, publicização, integralidade do cuidado e participação social – urge ampliar as bases de apoio na sociedade de modo que iniciativas que afetam esses princípios possam ser combatidas”. Leia o artigo completo aqui.
No país onde as bandeiras se levantam na defesa de um Sistema Único de Saúde como a mais importante arma para equilibrar a profunda desigualdade social, a inserção dos médicos nos locais remotos é uma preocupação que se estende também ao tipo de política de saúde em que serão inseridos. A elaboração de um programa que impulsiona a privatização da atenção primária se põe como mais um desafio enfrentado em meio à calamidade interposta pelo Coronavírus, e os demais problemas de saúde pública que não se esgotaram com a pandemia.