Sustentar o fato está cada vez mais difícil em meio à existência de uma verdadeira indústria da desinformação. A dificuldade reside no fato de que, ao contrário da informação bem apurada, a desinformação é simples e barata, o que permite que fake news sejam transformadas em memes, gifs ou vídeos compartilhados nas redes sociais de forma incontrolável.
Porém, o que realmente dificulta o combate à desinformação é o que Morin (1998) classifica como imprinting cultural que marca os humanos com o selo da cultura, primeiro familiar e depois escolar, prosseguindo na universidade ou na profissão, que age como um poder imperativo criador das crenças não contestadas e verdades absolutas.
Ambientada no imprinting cultural, a sociedade acredita com mais facilidade nas notícias que reafirmam suas crenças e suas verdades estabelecidas mesmo que as informações contidas nelas sejam comprovadamente falsas. É o chamado “viés da confirmação”. “As notícias falsas só existem porque as pessoas precisam de notícias, verdadeiras ou não, para alimentar as próprias certezas” (FERRARI, 2018, p. 62).
Morin afirma ainda que o imprinting cultural “determina a desatenção seletiva, que nos faz desconsiderar tudo aquilo que não concorde com as nossas crenças, e o recalque eliminatório, que nos faz recusar toda informação inadequada às nossas convicções, ou toda objeção vinda de fonte considerada má” (MORIN,1998, p. 35). Isso pode ser semelhante ao que acontece com a checagem jornalística na política que tem dificuldade de penetração em ambientes com pensamentos extremistas direitistas ou esquerdistas. Ou seja, as pessoas que estão ambientadas no imprinting não aceitam com facilidade as checagens que revelam informações contrárias à sua crença.
Em seu livro Como conversar com um fascista: reflexões sobre o cotidiano autoritário brasileiro (2017), Márcia Tiburi (2017, p. 24) classifica como fascista alguém que não se dispõe a escutar, que não fala para dialogar, mas apenas para mandar e dominar.
O fascista não consegue relacionar-se com outras dimensões que ultrapassem as verdades absolutas nas quais ele firmou seu modo de ser. Sua falta de abertura, fácil de reconhecer no dia a dia, corresponde a um ponto de vista fixo que lhe serve de certeza contra pessoas que não correspondem à sua visão de mundo preestabelecida.
Para a autora, o país vivencia um autoritarismo na vida cotidiana em que é inviável a abertura até a uma simples conversa. “Os indivíduos estão fechados em seus pequenos universos previamente formados e informados de tudo o que supõem saber” (TIBURI, 2017, p. 27). Tiburi (2017, p. 37) aposta no diálogo como uma prática que deveria ser a base de uma ética do dia a dia:
O diálogo é mais ainda [complicado] porque não nos ocupamos em prestar atenção no que pode ser um diálogo, ele mesmo um modo de conversar cheio de potências e que facilmente se cancela se não insistimos nele. Não o experimentamos [o diálogo] na microfísica do cotidiano onde tanto poderia nos ser dito acerca de uma potência de transformação em termos macrofísicos. O diálogo entre o singular e o geral – entre o que somos (ou queremos ser) e o que nos rodeia – nos faria bem. Precisaríamos pensar mais, isso é certo, mas vivemos no vazio do pensamento, ao qual podemos acrescentar o vazio da ação e o vazio do sentimento. O vazio é o estranho ethos de nossa época.
O diálogo também é apontado por Morin quando afirma que há falhas no aparentemente implacável determinismo do imprinting. Ele aponta para três possibilidades desse enfraquecimento: a existência de vida cultural e intelectual dialógica; o calor cultural e a possibilidade de expressão de desvios ou brechas. O autor afirma que a pluralidade e a diversidade dos pontos de vista são condições para a dialógica cultural:
São, justamente, essas diversidades de ponto de vista que o imprinting inibe e a normalização reprime. […] Essas condições aparecem nas sociedades que permitem o encontro, a comunicação e o debate de ideias. […] O intercâmbio das idéias produz o enfraquecimento dos dogmatismos e intolerâncias, o que resulta no seu próprio crescimento. (MORIN, 1998, p. 38-39).
Morin ressalta ainda a necessidade do encontro de ideias antagônicas para a criação de uma zona de turbulência que abre uma brecha no determinismo cultural. Assim, as ideias contrárias podem estimular entre indivíduos e grupos interrogações, insatisfações, dúvidas, reticências e busca. Morin (1998, p. 40) afirma ainda que a dialógica cultural favorece o calor cultural e juntos criam condições de autonomia de espírito:
Assim como o calor se tornou uma noção fundamental no devir físico, é preciso dar-lhe um lugar de destaque no devir social e cultural, o que nos leva a considerar, onde há “calor cultural”, não há um determinismo rígido, mas condições instáveis e movediças. Do mesmo modo que o calor físico significa intensidade\multiplicidade na agitação e nos encontros entre partículas, o “calor cultural” pode significar intensidade\multiplicidade de trocas, confrontos, polêmicas entre opiniões, idéias, concepções. E, se o frio físico significa rigidez, imobilidade, invariância, vê-se então bem que o abrandamento da rigidez e das invariâncias cognitivas só pode ser introduzido pelo “calor cultural”.
As condições ditas acima por Morin favorecem o surgimento dos desvios ou brechas e transformações nos determinismos que pesam sobre o conhecimento. “Basta por vezes uma pequena brecha no determinismo, permitindo a emergência de um desvio inovador ou provocado por um abcesso de crise, para criar as condições iniciais de uma transformação que pode eventualmente tornar-se profunda” (1998, p. 44).
A complexidade permite, como afirma Morin (2003, p. 100), um caráter multidimensional de qualquer realidade. Diferentemente da visão simplista e bipolar comum ao jornalismo, como afirma Nelson Traquina (TRAQUINA, 2013, p. 45):
A maneira de ver dos membros da tribo jornalística privilegia uma visão bipolar – o mundo é estruturado em polos opostos: o bem e o mal, o pró e o contra etc. As regras de objetividade, bem como a vontade de simplificar e\ou estruturar o acontecimento de forma dramática, explicam esta visão bipolar.
Ainda segundo Morin, a complexidade estaria não apenas nos desenvolvimentos científicos como é comum de se pensar, mas estaria presente também no cotidiano e foi captada muito bem pela narrativa literária.
Esta complexidade [do cotidiano] foi apreendida e descrita pelo romance do século XIX e do início do século XX. Quando nessa mesma época a ciência tenta eliminar o que é individual e singular, para só reter leis gerais e identidades simples e fechadas, quando afasta mesmo o tempo da sua visão do mundo, o romance, pelo contrário (Balzac em França e Dickens na Inglaterra), mostra-nos seres singulares nos seus contextos e no seu tempo. Mostra que a vida mais quotidiana é, de facto, uma vida onde cada um representa vários papéis sociais, segundo o que é na sua casa, no seu trabalho, com amigos e desconhecidos. Vê-se que cada ser tem uma multiplicidade de identidades, uma multiplicidade de personalidades nele próprio, um mundo de fantasmas e de sonhos que acompanha a sua vida. […] tudo indica que não é simplesmente a sociedade que é complexa, mas cada átomo do mundo humano. (MORIN, 2003, p. 83-84. Grifo meu).
A complexidade está também na checagem. Até porque, segundo a teórica Pollyana Ferrari, a checagem está relacionada com a complexidade da vida. “Checar fatos, sair das bolhas e ir contra padrões enlatados podem nos salvar, pois a vida é bem mais rugosa […] A vida é mais rizomática do que cartesiana” (2018, p. 164).
Desta forma, pode-se afirmar que a complexidade é bem-vinda no jornalismo principalmente em uma sociedade polarizada (dualista) porque ela abre caminho para o diálogo. A partir da construção de narrativas complexas, o jornalismo poderá combater a desinformação e restabelecer o diálogo tão caro à democracia.