Crítica sobre o filme Entre Corpos, escrita por Laura Gomes.
Entre os fragmentos de desejo e a solidão de um ciclo que nunca se encerra, uma mulher cria arte a partir de corpos masculinos, em um ritual que mistura obsessão, poder e trauma. Sua busca, marcada por gestos calculados, transforma o que seria intimidade em um jogo de dominação, onde cada imagem colada reflete tanto sua dor quanto vontade de controle. É nesse mosaico perturbador que se constroi o universo de Entre Corpos.
Vânia é uma figura de contrastes profundos. Em sua aparência, carrega uma inocência performada: mochilas infantis, calcinhas com desenhos lúdicos e pulseiras de miçangas. Porém, em seus atos, revela uma força fria. Com seus clientes, não busca intimidade, mas controle – registra corpos, transforma momentos de vulnerabilidade em fragmentos de sua arte e os incorpora a um mural. O quarto onde esse ritual acontece é quase vazio, frio, um espelho de sua solidão e, ao mesmo tempo, um altar para sua criação.
A montagem do filme reflete o estado fragmentado da memória, com cortes rápidos e flashes que evocam o caos de um trauma mal processado. Vânia parece existir em pedaços, cada cena é uma janela estreita para sua mente, mas nenhuma com uma visão completa. Essa estética inquieta é tão poderosa quanto irritante, por manter o espectador à distância, como se tentássemos segurar água entre os dedos.
Há algo de profundamente poético – e perturbador – na forma como Vânia transita pelo mundo. Em um instante, é uma mulher vestindo ternos de seus clientes, encarnando a figura que ela mesma molda; no outro, é uma criança perdida, encontrando sua única companhia verdadeira na filha da vizinha, a quem mostra suas colagens com entusiasmo infantil. Entre esses polos, está o mistério de seu trauma: ela é uma vítima tentando tomar as rédeas de sua história, ou uma sádica mascarada de inocência?
O filme constroi sua força em ambiguidades. Vânia utiliza seu corpo como ferramenta, unindo o físico ao artístico em um gesto de criação e autodestruição. Durante suas colagens, ela utiliza fluidos corporais como cola, selando pedaços de papel que guardam fragmentos de homens anônimos. Esse processo, ao mesmo tempo visceral e simbólico, parece dar forma tangível ao que ela não pode expressar em palavras.
O final do filme é uma espécie de suspiro vazio: Vânia desfaz o mural, encarando a parede vazia, como se observasse uma versão de si mesma apagada. Vestindo um terno, inicia novamente seu ritual de colagem, sozinha, repetindo o gesto mecânico que mistura prazer, controle e melancolia. O ciclo recomeça, sugerindo que ela está aprisionada em uma dança eterna entre dor e domínio, arte e obsessão.
Entre Corpos é uma obra que provoca mais do que explica, fascina mais pelo silêncio do que pela palavra. Um retrato perturbador de uma mulher que, entre as sombras de um passado quebrado, cria algo belo e monstruoso – e talvez nem ela saiba exatamente o porquê.