Uma extensa área de vegetação foi desmatada no alto do Morro Nossa Senhora da Piedade, próximo ao conhecido Farol, da cidade de Porto de Pedras. A devastação da mata no topo do morro, o que configura uma Área de Preservação Permanente, horrorizou moradores da comunidade, que também relatam não se conformar com as constantes procuras sem resposta ao Instituto do Meio Ambiente (IMA).
A Mídia Caeté buscou o IMA, por meio de assessoria, mas após comunicarmos sobre a pauta, não houve mais respostas. Não foi respondido se foram ou serão feitas diligências no local ou se houve ou haverá responsabilização sobre a degradação. Já o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), que é responsável pelo monitoramento desta região – situada dentro de Área de Proteção Ambiental Costa dos Corais – foi procurado pelo Portal, mas em nenhum canal houve atendimento.
As imagens produzidas em vídeo, por um morador da região, mostram as condições deixadas na área. “Olha para isso. Olha o descampado. Acabaram com tudo”. Trechos do vídeo foram recortados pela Mídia Caeté e a voz foi alterada, ambas as edições efetuadas de modo a preservar a identidade das pessoas, em razão do medo de retaliação.
As cidades do litoral norte – que integram o que o mercado turístico denominou como “Rota Ecológica” – vêm configurando uma realidade de “canteiro de obras” nas localidades, impondo um paradoxo de desmatamento em prol da construção de empreendimentos com fetiches ecológicos. Passar pela rota é visualizar, de imediato, diversas áreas desmatadas ao longo de toda a região, incluindo morros, representando ainda uma situação de risco para as comunidades locais – as maiores atingidas.
De acordo com integrantes da comunidade, em oportunidades anteriores em que o IMA foi acionado, a relação de dois pesos e duas medidas ficou evidente. “Se fosse um agricultor para plantar uma roça, né? Um pedacinho de terra para plantar mandioca, macaxeira, e que nem iria desmatar, eles baixariam aqui. Não duvide disso. Para o ribeirinho, para o pescador, para o bugueiro, para o cara que tem uma palhoça na beira da praia, não pode. Mas chega os caras de fora, às vezes, muita gente até fora do país vem, faz o que quer aqui, desmata e não dá em nada. E depois ainda o IMA ainda coloca uma placa autorizando dizendo que a obra é regular”.
Para os povos das águas que vivem na região, as especulações giram em torno de mais um “grande empreendimento”, muito embora não consigam identificar quem detém a propriedade da área ou é responsável pela destruição da vegetação. “Com certeza, vai ser construído uma pousada ou um hotel de luxo, um resort”, relata.
A Mídia Caeté buscou a identidade do proprietário do terreno, confirmando que, de fato, o dono em questão se trata do empresário e um dos sócios da Incorporadora BE de empreendimentos imobiliários, Henrique Vital. A incorporadora, que demarca o discurso ecológico em seu marketing, vem propagando uma série de construções nas regiões do Litoral Norte, seja em Porto de Pedras, Tatuamunha, e áreas da Rota Ecológica.
Procurado pelo portal Mídia Caeté, Henrique Vital alegou possuir já autorização por parte do IMA, embora não tenha mostrado.
“Se tem algo que faço questão é de já garantir a autorização do IMA, deixar tudo certo. Ali se trata de uma área de 75 hectares, e pretendo construir empreendimento em apenas 35 deles. Inclusive uma outra parte estou cedendo para a Prefeitura, e precisei até mudar meu projeto original” relatou.
O prefeito de Porto de Pedras, Henrique Vilela, também falou à reportagem que uma parte da área da Prefeitura seria destinado a uma estação de tratamento de água.
Henrique Vital também defendeu que a região não se trata de uma Área de Preservação. “Limpei aquela área porque não era vegetação nativa, era mato pequeno. Então, não é Área de Proteção. Seria se fosse nativa. Na verdade, eu faço isso periodicamente, limpar a área. E, se você observar, em vários morros estão sendo construídos empreendimentos em toda a rota ecológica, não sou só eu. Então, não é Área de Proteção”, diz.
No entanto, os moradores da comunidade refutam a informação e afirmam que se tratava de uma mata densa. “Isso aqui foi minha infância. Era mata fechada e ninguém chegava aqui com essa facilidade. Poucos tinham esse acesso aqui. Cresci, nasci aqui e era tudo mato fechado”, contou um morador. “Parou de ser vegetação quando ele fez a limpeza pela primeira vez. Ligaram para o IMA e eles não fizeram nada. Então, o que nasceu foi ainda um mato pequeno. Outra coisa, como é que, ao redor tudo é mata, e só essa parte não é?”, rebateu.
O fato é que é a Área de Preservação Permanente independe se, no topo do morro, possui ou não vegetação nativa. Nesse sentido, a Mídia Caeté buscou o professor doutor em Recursos Hídricos e Saneamento Ambiental, Vladimir Caramori, para sanar a dúvida. “Topo de morro é uma Área de Preservação Permanente, independentemente da existência de Vegetação Nativa. É uma área que deve ser protegida e, se foi desmatada, precisa ser reconstituída. Mesmo um lago artificial não pode ser construído em APP. Bata visualizar o Código de Proteção Florestal”, explica.
Topo de Morro, Área de Proteção Ambiental e Área de Preservação Permanente
Os topos dos morros estão situados no que o Código Florestal Brasileiro define como Área de Preservação Permanente (APP), que trata-se de área “protegida, coberta ou não por vegetação nativa, com a função ambiental de preservar os recursos hídricos, a paisagem, a estabilidade geológica e a biodiversidade, facilitar o fluxo gênico de fauna e flora, proteger o solo e assegurar o bem-estar das populações humanas”. Sua definição e proteção se insere na Lei 12.651, de 25 de maio de 2012, que estabelece as normas de proteção de vegetação nativa. A regulamentação ficou a cargo de uma resolução CONAMA 303/2002, que estabelece que “o terço superior de morros e montanhas, cuja elevação ultrapasse 50 m e declividade seja superior a 30% , devem ser protegidos”. Mais informações podem ser visualizadas nesta página do Portal da Embrapa.
O problema é que, diante da ausência dos órgãos fiscalizadores – ainda que não sejam ausência física, uma vez que há prédio do ICMBio instalado, e veículos do IMA frequentemente circulando no local – as comunidades terminam por enfrentar uma condição desigual na tentativa de preservação, frequentemente com receio de avançar na exposição das denúncias, por temer represálias de políticos ou empresários que se instalam no local.
Para o arquiteto urbanista e ativista ambiental, Airton Omena, o impacto é sentido nas comunidades de forma ainda mais drástica ao culminar em situações de alagamento. “Essa denúncia ocorre em Porto de Pedras é preocupante, visto que foi removida a vegetação do topo do tabuleiro, que já apresentava problemas em tempos chuvosos para conter a água das chuvas”, relata. “É sabido que solo coberto com vegetação nativa tem mais permeabilidade e consegue reter mais água de forma mais eficiente do que solo movimentado/aterrado ou escavado”.
Uma das situações mais graves ocorreu em 2020 e foi amplamente circulada pela mídia alagoana, diante das fortes chuvas no mês de junho. Sem escoamento da água, os alagamentos deixaram pelo menos dez famílias desalojadas. Já as barreiras, sem a sustentação das raízes, desceram interditando a pista.
Ainda segundo Omena, o problema se agrava ainda mais durante os períodos chuvosos. “Nessas fases, o caminho das águas que naturalmente desceria dos terrenos mais altos e se acumulariam pela restinga – até alcançar os rios e mar -, fica represado, tanto pelas casas que se alinham na base do morro, como pelas vias construídas paralelamente à faixa de praia. Isso interrompe o caminho natural do relevo, causando alagamentos e inundação nesses edifícios que se encontram na rota das águas. Eles ficam inundados e se tornam caminhos de passagem para o excedente de água das áreas mais elevadas, seja no alto do tabuleiro ou nas encostas, que não conseguem absorver água que se acumula na planície costeira, faixa de restinga”, explica.
Para além das situações de alagamento, as falas também demonstram o sofrimento de populações ribeirinhas e tradicionais, cujas vidas são vinculadas diretamente com a natureza. “Aqui, tinham as árvores frutíferas, tinha ouricuri. As mulheres vinham para cá para raspar palha e fazer chapéu e outras coisas mais. E agora não tem mais. Enfim, minha infância era aqui. Olha o que eles fizeram. Para você ter ideia de que eu não estou mentindo que era mata fechada. Era mata igual ali. Isso ali são bibocas, ali são a gente chama barroca de boi. Tem umas falésia ali pra dentro de areia colorida. Acabaram com tudo. E toda essa mata eles jogaram ali pra dentro. Enfim, olha aí o desmatamento”.
Ele acrescenta ainda que o desmatamento só aconteceu na área menos visível de quem está do lado de fora, de modo que a paisagem para quem passa por baixo faz passar despercebido a devastação atrás. “É a área da Barroca do Boi, Rego do Giz, como é conhecido. Ali, tinha Pé de Massaranduba. Ainda dá pra ver alguns por lá. Era mata, árvore grande. É… Jogaram tudo aqui dentro da Barroca do Boi, por trás. Na frente, é só uma fachadazinha. Como dá para ver, o Farol lá, aí eles não invadiram. Mas aqui, sim: olha a estrada que eles abriram. Passaram por dentro da Mata Atlântica sem respeitar, sem nada.”