Indefinição sobre o Marco Temporal abre feridas históricas, mas não tropeça a luta dos povos indígenas

Após suspensão da votação pelo STF, movimentos indígenas devem intensificar as mobilizações
Caminhada até a Esplanada em Brasília. (Foto: Wanessa Oliveira)

Diante de mais uma suspensão da votação sobre o Marco Temporal, por parte do Supremo Tribunal Federal (STF), movimentos indígenas devem intensificar as mobilizações em Brasília, não pretendendo deixar o Acampamento até que a corte superior apresente uma definição contrária à tese. Enquanto o Supremo tem até 90 dias para decidir sobre a pauta – que já passa pelo oitavo adiamento – as ameaças contra os povos se intensificam, corroboradas pela aprovação na Câmara Federal do Projeto de Lei (PL 490) em regime de urgência, no último 30 de maio.

Para as lideranças indígenas, já era esperado que a decisão não acontecesse hoje. Assim, diversas estratégias já vem sendo mobilizadas para manter os atos durante os 90 dias, ou quantos mais forem necessários, seja em Brasília, seja nos territórios. “Inclusive, no Acampamento Terra Livre, que está em Brasília, tem uma turma de Alagoas e Sergipe, enquanto outra já se prepara para a semana que vem. Assim seguem as delegações em todo o país, porque foi pactuado pelo movimento indígena para o caso de algum ministro pedir vista”, relata o assessor político da Articulação dos Povos Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo (APOINME), Marcos Sabarú.

Segundo Sabarú, a preocupação é de que a demora na votação implique também nas mudanças de composição do Supremo, o que pode interferir na posição de maioria contrária ao Marco dentro do colegiado de ministros. “Hoje temos uma previsão de ter dois ou três votos contrários. Nossa preocupação é que demore mais e possa ficar ainda mais contra a gente”, explica.

Caminhada até a Esplanada em Brasília, em 30 de maio. (Foto: Wanessa Oliveira)

Desta vez, o pedido de vista partiu do ministro André Mendonça, indicado pelo ex-presidente Jair Bolsonaro, estendendo um prazo de mais 90 dias, segundo regulamento interno. A tese foi suspensa pela primeira vez ainda em 2021, quando Alexandre de Moraes pediu vista. Naquele momento, Edson Fachin – o relator do recurso extraordinário, com repercussão geral – já havia se posicionado contrário ao Marco, defendendo que os direitos originários de povos que sempre ocuparam estas terras não dependia de uma “delimitação” temporal. Já o ministro Nunes Marques abriu divergência do relator, justificando que a marcação temporal abriria uma “segurança jurídica” sobre as demarcações.

Após retorno da votação e do pedido de vista, Alexandre de Moraes desempatou a votação, ao fundamentar que a tese viola direitos fundamentais dos povos. O ministro chegou, inclusive, a propor uma tese sobre o assunto.

A tese de repercussão geral do Marco Temporal é enraizada pelo Recurso Extraordinário que trata-se de um pedido de reintegração de posse movido pelo Instituto do Meio Ambiental em Santa Catarina (IMA) contra o povo Xokleng e a FUNAI, sobre uma área reivindicada da Terra Indígena Ibirama-Laklanõ, cujo território vinha sendo reduzido ao longo do século passado, embora os Xokleng nunca tenham deixado de reivindicá-la.

Caminhada até a Esplanada em Brasília. (Foto: Wanessa Oliveira)

Atualmente, as análises sobre o Marco Temporal no Supremo apontam para a possibilidade de que a maioria dos ministros de fato confirmará sua inconstitucionalidade, o que derrubaria  iniciativa da Câmara Federal sobre o Projeto de Lei 490, que agora segue para o Senado enquanto PL 2903. É nesse sentido que reforça Sabarú:

“Já houve toda a iniciativa da Câmara de voto neste marco ilegal, mas no nosso entendimento o Supremo deve anular isso, mesmo por se tratar de uma cláusula pétrea, conforme a Constituição de 88. O Brasil teria cinco anos para demarcar os territórios indígenas e não o fez e agora não pode vir com esse subterfúgio de que só deve ser demarcada terra até outubro de 1988. Nossa expectativa é de ser favorável”.

Câmara Federal e a Máquina de Moer Histórias.

Enquanto o STF prolonga sua decisão sobre o tema, a Câmara Federal não teve grandes dificuldades em fazer passar o Projeto de Lei. Após votação que aprovou sua urgência, o PL foi logo inserido como pauta única pelo presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), e aprovado pela maioria, uma semana depois, na terça-feira, 30 de maio.

O PL 490 foi utilizado pela primeira vez em 2007 pela Advocacia Geral da União (AGU), no âmbito do conflito pela demarcação da reserva da Raposa-Serra do Sol, em Roraima. O Projeto prevê que povos indígenas só têm direito às terras que já estavam ocupadas até o ano de 1988, quando promulgada a última Constituição Federal. O texto foi logo abraçado pela bancada ruralista, uma vez que a autoria na Câmara foi assinada pelo então deputado e agropecuarista Homero Pereira (PSD- MT), que morreu em 2013 enfrentando um câncer.

Imagem: Portal da APIB

Sem movimentações desde 2021, quando aprovada pela Comissão de Constituição de Justiça e de Cidadania, o PL – cuja relatoria ficou a cargo de Arthur Oliveira Maia (União – BA), retornou para agenda a partir das movimentações de Arthur Lira no intuito de obter controle sobre a pauta e se antecipar à votação do Supremo, já programada para acontecer no dia 7 de junho.

Em sua posição no voto, Arthur Maia utilizou a mesma argumentação da segurança jurídica para proprietários rurais. O documento de Maia ainda preconiza que a política de defesa e soberania nacional deve estar acima do usufruto pelos povos indígenas, abrindo todo um leque de permissão para instalação de bases e intervenções militares, independentemente de consulta às comunidades indígenas envolvidas ou à Fundação Nacional do Índio (Funai). Além do mais, as comunidades também não precisariam ser sequer consultadas para casos de construção de rodovias, exploração de energia elétrica e ao resguardo das riquezas de cunho estratégico em suas terras.

Enquanto o interior do Plenário, as performances partiam de indução de fake news a discursos de ódio contra povos originários, nas rodovias federais do país, bloqueios iniciaram ainda durante a madrugada da terça-feira.

Com uma bancada ruralista consolidada e uma maioria anti-indigenista, a Câmara movimentando e sendo movimentada por iniciativas de ruralistas, mineradoras, e outros segmentos econômicos que comprometem gravemente os territórios, enquanto asseguram que – ainda que  Marco Temporal ainda esteja em vigência, já compromete na atualidade os processos demarcatórios, conforme alerta a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB).

Atos também ocorrem nos territórios. Mobilização na Terra Indígena do povo Tingui-Botó. Foto: Vivian Campos

Em seus meios, a Articulação reforça o quanto o Marco Temporal trata-se de uma Máquina de Moer Histórias, ao ignorar os ataques aos povos originários desde o século XVI, o que repercutiu na redução substancial dos territórios a partir da prática criminosa de invasores, entre colonizadores e posseiros que logo adquiriram “propriedade sobre a terra”. Os conflitos e buscas por retomadas e permanências, entretanto, nunca deixaram de acontecer.

Caminhada até a Esplanada em Brasília em 30 de maio. (Foto: Wanessa Oliveira)

Sabarú alerta como o comprometimento não só atinge comunidades indígenas, como extrapola como pauta para a humanidade. “Na verdade, a humanidade precisa que seja feita a demarcação desses territórios. Grandes cientistas disseram que a solução para a questão das mudanças climáticas é a preservação. Onde há Terra Indígena, Quilombo e Parque, tem fauna e flora, produção de oxigênio e água limpa. E a solução depende da demarcação. Não podemos ser reféns de bancadas ruralistas, evangélicos fanáticos, que põem risco toda a humanidade, porque não se trata de uma causa dos indígenas e sim da humanidade. Em terra indígena a gente tem o usufruto, mas é terra da União. E, sendo da União, é do Estado Brasileiro e de todos os brasileiros. E é também de todo o planeta. Vamos lutar fortemente. A maioria dos parentes vai estar acampada hoje. E semana que vem outras delegações estão indo também”.

Acampamento segue em Brasília com mobilização de povos indígenas em todo o país. Foto: Wanessa Oliveira

O assessor da APOINME ainda reitera a lógica de inversão construída pelo Marco. “Nós queremos que o mundo entenda que os povos indígenas não são bandeirantes ou invasores. Quem invadiu foi outro. Colonizador é outro. E a ideia que estão querendo criar agora é que o indígena é o invasor de terra e o invasor, colonizador, é o ‘proprietário’ que alega ser o dono da terra.”

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