Desde que aprovado pela Câmara de Vereadores de Maceió, com escandalosos 22 votos e uma abstenção, o chamado “PL da Tortura” vem sendo confrontado diuturnamente por movimentos de mulheres, organizações vinculadas a direitos humanos e instituições do Estado.
A última movimentação partiu do Tribunal de Justiça de Alagoas (TJ/AL) que, em caráter liminar, suspendeu os efeitos da agora Lei municipal 7492/2023, que obriga unidades de saúde a exibir vídeos de aborto ou ouvir batimentos cardíacos fetais para crianças e mulheres que tiveram gestação proveniente de estupro, com gestação de risco ou com fetos anencéfalos e que desejam fazer o procedimento abortivo.
Desde que entrou em vigor, em 20 de dezembro de 2023, a Lei já não possuía um efeito prático compreensível, uma vez que sequer havia sido regulamentada a previsão de recursos ou de logística para a disposição de uma equipe destacada para efetuar esses novos “serviços” às mulheres, não previstos em qualquer protocolo de assistência ao aborto legal por parte do Ministério da Saúde.
A Mídia Caeté procurou a Prefeitura de Maceió após a publicação da Lei, e foi informada de que as unidades de saúde do município seguem cumprindo protocolo de atendimento preconizado pelo Ministério da Saúde – ou seja, pelo menos até o momento, sem sessões de dissuasão com vídeos torturantes para mulheres e meninas, de forma institucionalizada.
A lei ignora as constantes denúncias de violação de direitos reprodutivos das mulheres, que recorrem a aborto legal por serem vítimas de estupro, sofrerem riscos ou com gestações de fetos anencéfalos.
Imediatamente confrontada pelos movimentos feministas no Estado, a Lei passou a ser alvo de pressão também por órgãos públicos. Nesse sentido, o Ministério Público do Estado (MPE/AL) se manifestou contrária à lei, mas limitou sua atuação direcionando uma recomendação às secretarias de saúde de Alagoas e de Maceió, para que “não realizem procedimentos desnecessários e invasivos, que possam levar às vítimas a reviverem a situação de violência ou outras situações que gerem sofrimento e estigmatização”.
Na oportunidade, o promotor de Justiça Lucas Sachsdia se referiu diretamente à Lei Municipal, frisando o trecho: “O texto determina que a equipe de saúde submeta à criança ou adolescente vítima de estupro de vulnerável e gestante imagens de métodos cirúrgicos, como aspiração intrauteriuna, curetagem uterina e abortamento farmacológico durante o procedimento de efetivação do direito previsto no artigo 128 do Código Penal”.
A ação mais incisiva partiu, então, da Defensoria Pública do Estado de Alagoas, que ajuizou uma Ação Direta de Inconstitucionalidade, alegando vício formal e material, a partir do entendimento de que – ao legislar sobre temas de Direito Civil e Penal – a Lei extrapola a competência da Câmara, uma vez que o tema do aborto não é de interesse unicamente municipal.
Em resposta à ação movida pela Defensoria, nesta sexta-feira (19), o desembargador Fábio Ferrário acatou a liminar compreendendo esta inconstitucionalidade material e formal, e determinou apreciação da matéria como próxima pauta do pleno do Tribunal de Justiça de Alagoas (TJ/AL), de modo a alcançar um entendimento definitivo do órgão.
Além de considerar que a Lei burla o sistema constitucional de repartição das competências, o desembargador também atentou para o conteúdo. “A Lei Municipal nº 7.492/2023 desconsidera completamente a situação de fragilidade e vulnerabilidade em que se encontra uma mulher que está prestes a realizar um aborto. A decisão por realizar este ato, sem sombra de dúvidas, não é fácil, assim como é extremamente delicada a conjuntura vivenciada pela mulher que a permitem abortar de forma legal”, relatou o desembargador. Segundo o TJ/AL, a Câmara de Vereadores da Capital e o Município de Maceió devem prestar informações acerca da lei impugnada, no prazo de 30 dias.
Falar de risco ao aborto a quem já está em situação de risco é uma aberração cognitiva
Dados do Anuário da Segurança indicam que a maioria das vítimas de estupro são crianças e adolescentes de até 13 anos (61%), indicando uma realidade de vulnerabilidade extrema em que, em muitos casos, as violências cometidas de maneira recorrente e sob extrema dificuldade das vítimas buscarem socorro após a violência sexual – o que incluiria os atendimentos médicos e de prevenção à gravidez após terem sido vitimadas por estupro.
Assim, mesmo diante da perspectiva de que o colegiado do TJ/AL siga o entendimento do relator, não deixa de ser preocupante as ofensivas de legisladores e movimentos que violam direitos reprodutivos e revitimizam mulheres que já se encontram em condição de fragilidade, muitas vezes deformando ou utilizando seus lugares de poder para criar obstáculos tortuosos contra as vítimas, entre mulheres e meninas.
O caso emblemático ocorrido em Santa Catarina, no ano de 2022, demonstra o caráter tortuoso com que a própria institucionalidade revitimiza quem já possui direito ao procedimento legal. A mãe de uma garota de 10 anos descobriu que a filha estava grávida após ser vítima de estupro e, ao buscar os serviços de atendimento legal, não só teve o atendimento negado sob a justificativa de que a gestação já estava com 22 semanas, como a vítima ainda foi levada para uma abrigo – longe da família – pela justiça de Santa Catarina, para evitar que ela fizesse um aborto legal, ainda que a continuidade da gestação representasse risco de morte para a garota.
Além de ser submetida a esse isolamento, a garota ainda sofreu graves investidas da juíza para que a vítima mantivesse a gestação, lançando em audiências perguntas intimidadoras e termos como “seu bebezinho”.
Coordenadora do Núcleo de Pesquisa em Gênero, Saúde e Direitos Humanas e professora de pós-graduação em Antropologia Social da Universidade Federal de Alagoas, a docente Débora Allebrandt, relata como essa legislação cria mais obstáculos contra o atendimento ao aborto em casos previstos em lei. Ao se debruçar sobre o texto da legislação, a pesquisadora frisa a preocupação sobre as condições com que esse tipo de legislação rebaterá nas meninas.
“O texto da redação menciona sempre as famílias nessa decisão, na ajuda a essa decisão. Por que? obviamente se faz referência aos abortos necessários em casos de gravidez entre meninas que são vítimas de violência sexual, que é na maioria das vezes provocada no seio da família, por pessoas próximas à criança que se tornou gestante. É justamente quando você tem uma menina, uma criança grávida, que você tem a família interferindo nessa decisão, tomando essa decisão junto com a menina. Já nos outros casos, quem toma a decisão é a mulher. Ambos os casos previstos em lei para aborto legal envolvem violência sexual, ou risco para a gestante”.
É nesse sentido que a pesquisadora reitera o nível de violência direcionado às mulheres que seriam submetidas a esse atendimento. “Explicar o risco do aborto é quase uma aberração cognitiva porque você está falando para uma pessoa que já está em risco, nos casos em que o aborto é previsto em lei. Ou a pessoa já está em risco ou já sofreu uma violência que a colocou em todas essas situações instadas e deveriam ser explicitadas nessa legislação. Tentar convencer uma pessoa que está sofrendo uma gestação que coloca sua vida em risco é uma violência tremenda. E tentar convencer meninas e sua família a manter uma gestação resultante de violência é revitimizar as meninas e famílias, moralizar uma escolha prevista em lei, e dificultar o acesso ao aborto legal que é um direito fundamental à saúde das mulheres e das meninas”.
Para Allebrandt é preciso não perder de vista a violação ao direito à saúde incutido na lei. “É um ponto fundamental que essa nova legislação parece ter esquecido. O aborto legal é demanda de saúde publica. A demanda dos movimento feministas e sociais pela legalização do aborto é uma questão de saúde publica. Você criar quaisquer obstáculos para que o aborto legal não seja executado, como é o caso dessa legislação, é uma forma de violação dos direitos à saúda das mulheres e das meninas”.