Lei de Cotas completa uma década democratizando oportunidades e reparando minimamente a história

Implementada em 2012, lei é uma ação afirmativa fundamental para diminuir a desigualdade, democratizar o Ensino Superior e eliminar uma série de tabus

“O Brasil é um dos países mais desiguais do mundo”. A afirmação foi feita pelo Laboratório das Desigualdades Mundiais (World Inequality Lab) em um relatório – o segundo desde 2018 – lançado no mês de dezembro. A entidade integra a Escola de Economia de Paris e conta com a colaboração de centenas de pesquisadores.

Por mais triste e revoltante que essa constatação seja, ela serve de alerta para a atual realidade econômica e social do país: “Entre os mais de 100 países analisados no relatório, o Brasil é um dos mais desiguais. Após a África do Sul, é o segundo com maiores desigualdades entre os membros do G20”, relatou Lucas Chancel, um dos autores do relatório e codiretor do Laboratório, à BBC News Brasil.

Lei de Cotas foi implementada no ano de 2012. | FOTO: divulgação.

Infelizmente, a realidade brasileira mostra que é impossível não relacionar o cenário descrito com a discriminação racial, evidenciando a vulnerabilidade socioeconômica vivida por negros, pardos e indígenas. De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 75% das pessoas que vivem em situação de pobreza no país são negras (pretos e pardos). 

Ainda segundo o instituto, esse grupo compreende 54,9% da população nacional e 64% dos desempregados. Outro dado assustador diz que as mulheres negras recebem, em média, menos da metade do salário de um homem branco, mesmo exercendo funções semelhantes.

LEI DE COTAS E AÇÕES AFIRMATIVAS COMO AGENTES DE MUDANÇA

Diante desse contexto, as ações afirmativas se consolidaram como alternativas para modificar o contexto vigente. Elas são políticas públicas cujo objetivo é corrigir desigualdades raciais existentes, que estão acumuladas ao longo de vários anos. 

Dentro dessas políticas, está a Lei de Cotas (12.711), que entrou em vigor no ano de 2012 e, portanto, completa uma década em 2022. A legislação passou a determinar que as universidades federais deveriam destinar 50% das matrículas para estudantes autodeclarados negros, pardos e indígenas, de baixa renda e que tivessem cursado integralmente o Ensino Médio em escolas públicas.   

O projeto visa reparar a estrutura racial consolidada no Brasil, promover a igualdade de oportunidades e combater o preconceito e o racismo, nas mais variadas instâncias. É o que crê a historiadora e secretária de Combate ao Racismo do Partido dos Trabalhadores (PT-AL) e militante do Movimento Negro Unificado (MNU), Sandra Sena.

“As cotas raciais foram pautadas pelo Movimento Negro como forma de reparar a estrutura racial na qual o Brasil foi consolidado ao longo de sua história, pós-invasão europeia. Elas têm o propósito não só de fazer pessoas negras alcançarem o ingresso no nível superior de ensino, mas – sobretudo – a profissionalização e a qualificação da vida das pessoas negras, que, por sua vez, representam a maior parcela da população brasileira. Nesse sentido, elas são de extrema importância”, diz Sandra Sena.

Historiadora Sandra Sena é secretária de Combate ao Racismo do PT-AL e militante do MNU. | FOTO: arquivo pessoal.

O coordenador do Núcleo de Estudos Afro-brasileiros e Indígenas (Neabi), vinculado à Universidade Federal de Alagoas (Ufal), Danilo Marques, afirma que a experiência desses 10 anos de Lei de Cotas foi relevante, principalmente por ter garantido a entrada de negros, negras e indígenas no Ensino Superior.

“Sem sombra de dúvidas, podemos dizer que a experiência desses 10 anos da Lei de Cotas nas universidades foi benéfica, porque garantiu a entrada de estudantes negros, negras e indígenas, que tinham uma entrada bem inferior anteriormente. Com a ampliação desse acesso, tivemos um aumento do alcance das universidades em populações rurais, quilombolas e indígenas, além do ingresso dos estudantes advindos de escolas públicas”, pontua Danilo.

Ele lembra também que universidades como a UNB e a Ufal já possuíam um programa de ações afirmativas nesse sentido desde 2004 e ressalta a importância do aumento da porcentagem de vagas destinadas, com a atualização da política em 2012.

“Vale ressaltar que universidades como a UNB e a Ufal já aderiram ao programa de ações afirmativas, desde 2004. Então, quando veio a lei – que inicialmente garantiu 20% das vagas e depois ampliou para 50% – a gente presenciou um avanço significativo nas entradas desses estudantes, principalmente em cursos bastante elitistas. Se formos observar as fotos de formaturas de cursos de Direito, Medicina e Engenharia, por exemplo, majoritariamente a presença era de alunos brancos, tínhamos uma presença de estudantes negros basicamente nas licenciaturas. A Lei de Cotas conseguiu tornar o acesso maior, mas temos ainda percalços para melhorar”.

REPARAÇÃO HISTÓRICA E O ACESSO A OPORTUNIDADES

A historiadora Sandra Sena reforça que, embora as cotas não encerrem o racismo em sua totalidade, elas contribuem diretamente para qualificação profissional e intelectual das pessoas contempladas.

“[A Lei de Cotas] nos dá chances de ocupar espaços que antes dificilmente alcançaríamos. Tais iniciativas representam um conjunto de fatores possíveis para diminuir as desigualdades sociais. Mas é importante pensar que a estrutura política do nosso país ainda favorece especialmente as pessoas brancas, tanto que – mesmo sem serem beneficiadas com as políticas de reparação – ainda estão à frente nas estruturas de poder do nosso país”, comenta.

Para Danilo Marques, as cotas raciais desempenham um papel primordial, pois possibilitam reparar historicamente desigualdades e quebrar alguns tabus fincados na sociedade, como o pensamento comum de que há uma limitação de carreiras para um homem negro e para uma mulher negra.

“O homem negro via como um caminho de ascensão social ser jogador de futebol, ser músico ou seguir uma carreira militar. A mulher negra era marcada pelo estigma do trabalho doméstico e pelo estereótipo da mulata. Agora, eles podem vislumbrar uma outra profissão, como Medicina ou Direito, e desejar ter um emprego que, até pouco tempo, seus avós ou seu pais não teriam oportunidade. Temos negros e negras transitando em espaços sociais, em espaços públicos que outrora não eram permitidos”, pontua o coordenador do Neabi.

Danilo é coordenador do Núcleo de Estudos Afro-brasileiros e Indígenas (Neabi), da Ufal. | FOTO: arquivo pessoal.

Sandra Sena complementa ressaltando a necessidade de se ampliar os espaços de debate e conhecimento e que essa interação é crucial para a ampliação das oportunidades.

“É preciso ampliar ainda mais os espaços de conhecimento. As universidades brasileiras não deveriam ser para ‘poucos’, mas sim, espaços de debates, trocas e experiências distintas e múltiplas. O aumento significativo das universidades públicas nos governos anteriores foram substanciais para a transformação de parte da vida das pessoas negras de nosso país. Hoje, temos advogados, médicos, professores. Nós podemos dizer que também fazemos ciência e esse fazer científico transformou a vida de centenas de comunidades negras no Brasil”.

DESINFORMAÇÃO E PRECONCEITO COMO BARREIRAS

A desinformação tem trazido prejuízos severos à percepção que se tem sobre a política de cotas, mas não é somente isso. É o que Sandra acredita.

“A desinformação pode ser o primeiro elemento que leva uma pessoa a discordar das cotas raciais no Brasil. Mas penso que essa falta de informação, o preconceito, a discriminação racial são resultados de uma política muito bem elaborada por mais de 300 anos de inferiorização e de massacre (físico e psicológico) de pessoas negras. E por isso falamos que o racismo é estrutural. É um sistema que nega oportunidades, criminaliza corpos negros e destrói qualquer esperança de uma vida sem desigualdades. É estrutural porque está presente em todas esferas de nossa vida, seja política, econômica, trabalhista, cultural, religiosa e social”, explica a historiadora.

Danilo Marques pensa que as pessoas contrárias às cotas separam-se em dois grupos distintos: aqueles que estão presos no caminho da desinformação e os que precisam ser observados sob a perspectiva do racismo.

“Eu acredito que as pessoas que ainda são contrárias estão em dois caminhos. Muitos ainda não sabem a importância, não compreendem como funciona, quem são os sujeitos de direito e não percebem que a chegada de jovens vindos de camadas populares torna a instituição mais democrática, permitindo a participação do povo. Já os outros, eu entendo pela ótica do racismo, eles são contrários porque tem uma visão racista do mundo e são perpetuadores do racismo estrutural”, afirma.

E finaliza:

“Ainda tem parcelas da população brasileira que querem permanecer nos seus privilégios, não entendem que todos são cidadãos e que as políticas de cotas possibilitam uma democratização do acesso a uma vida melhor. Os que são contrários estão dentro de uma visão racista da sociedade brasileira e reproduzem estereótipos e ações racistas em seu cotidiano”.

Núcleo da Ufal irá avaliar os 10 anos da lei de cotas. | IMAGEM: divulgação.

LEI DE COTAS NA UFAL E POSSÍVEIS MELHORIAS

Sobre a aplicação da política na Ufal, o coordenador Danilo Marques lembra que já são 18 anos com um programa de ações afirmativas, que trouxe um número significativo de estudantes negros, indígenas e de escolas públicas: mais de 20 mil.

“Em 2004, aprovamos o nosso Programas de Ações Afirmativas (PAAF), onde – além de garantir os 20% para estudantes negros e negras advindos das escolas públicas, com recorte de gênero (60% para mulheres) – focamos esforços no acesso a conhecimento voltado para o debate étnico-racial. Além disso, tivemos a implementação de disciplinas de história da cultura afro-brasileira e indígena, algo fundamental para ampliar o debate na universidade”.

Danilo recorda ainda que a instituição está presente em Delmiro Gouveia, Arapiraca, Palmeira dos Índios, Penedo e mais outros pólos espalhados pelo Estado.

“No interior, temos uma população afro-indígena, assim podemos pensar em AL dentro de uma continuidade. Ainda é recente a presença da Ufal nessas regiões, portanto pensar nessa política é pensar que temos gerações para adentrar no Ensino Superior. Isso consolidou uma primeira leva de cotistas doutores, que já estão pleiteando cargos como docentes, por exemplo. A Ufal está preparando um relatório completo desses últimos 10 anos para apresentar em números todo esse movimento”.

SAIBA MAIS: Ufal vai realizar Censo das Ações Afirmativas e avaliar os 10 anos da Lei de Cotas.

Nesse contexto, a historiadora Sandra Sena imagina que a Lei de Cotas pode reforçar ações que visem, cada vez mais, a transformação social e a valorização de todas as formas de existência.

“É preciso uma política que priorize a transformação de valores e oportunidades para pessoas negras, uma política que incentive o ingresso de pessoas negras no mercado de trabalho e a valorize de suas formas de existência. E, sobretudo, uma política que estabeleça o fim da violência contra corpos negros. O mesmo vale para a população indígena, que é massacrada cotidianamente”.

Do ponto de vista da melhoria e da continuidade, Danilo Marques entende ser essencial a manutenção e a consolidação das comissões de heteroidentificação, que analisam se o candidato possui um conjunto de características fenotípicas para se autodeclarar de determinada raça – evitando assim fraudes.

Danilo também julga essencial que haja políticas de permanência e assistência estudantil que contemplem os estudantes, bem como a criação de um conselho nacional que monitore e acompanhe todos os resultados.

“A Lei de Cotas garante o acesso à universidade, mas temos que ter políticas que garantam a permanência desses estudantes e isso é tratado na assistência estudantil. Permitir que os estudantes indígenas e quilombolas tenham as bolsas, que foram cortadas recentemente pelo Governo Federal, e permitir que eles desenvolvam pesquisa e extensão, além de haver um auxílio para que eles continuem as suas atividades. Tal política deve ser voltada para moradia e alimentação. Eles precisam comer e dormir bem, e também de um espaço onde possam estudar e ter condições mínimas para concluir o curso”.

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