Bolsonaro não se garantiu neste primeiro turno, mas precisamos falar dos 43%.
Com a experiência de uma “virada” apertada no meio do processo de apuração, a disputa para presidência do Brasil já deixava à mostra a necessidade do segundo turno desde o começo das leituras das urnas. O indiscutível cenário de polarização do país se materializou nos números, e agora Lula (PT) – que saiu à frente com 48,41% neste primeiro turno – disputa o resultado final no segundo turno contra o atual presidente Jair Bolsonaro (PL), que reuniu, por sua vez, 43,21 % dos votos. Em Alagoas, Lula saiu com desempenho de 56,50% dos votos, enquanto Bolsonaro ficou em 36,05%.
O resultado chocou diante dos números revelados previamente nos institutos de pesquisa, que não retiravam Bolsonaro da casa dos trinta e pouco porcento. Qual a razão de um número tão distinto da margem de erro? Falha na análise?
Entre as várias hipóteses especuladas, o pragmatismo antipetista em cima da hora é a que mais perdura. Se não há outro candidato com chance contra Lula, que venha Bolsonaro logo. Das pesquisas aos simples gesto de olhar para o lado, não é possível deixar de verificar que o Brasil vai encerrando 2022 em um cenário de terra arrasada, com desmantelamento e até deslegitimação de direitos mais básicos, com mais pessoas em situação de rua e com insegurança alimentar gravee. Há ainda um desemprego que só não é maior porque desmembrado em diversas outras condições de trabalho ultraprecarizado, e muitas pessoas que morreram precocemente de Covid-19, em razão das condutas do Governo Federal frente à pandemia: o dólar por vacina, a cloroquina e o tratamento preventivo.
Não há garantias pelo andar de cima, e não há onde se segurar aqui embaixo. Ainda assim, 43% escolheram Bolsonaro.
Por outro lado, não é que surpreenda a contrariedade ao PT. A questão é que, se antes as críticas ao projeto do Partido dos Trabalhadores (PT) se consolidassem em razão de uma série de escolhas políticas de ilusória conciliação entre classes, ou o embate fosse contra a permissividade petista a segmentos econômicos que torna seu próprio projeto incoerente, dentro de um modelo desenvolvimentista duvidoso e arriscado, vá lá. O grande problema é que o antipetismo que entrou nos 43% de Bolsonaro tratou-se muito mais de um enraizamento do projeto da direita mais mesquinha e voraz, que se utilizou de ferramentas marqueteiras de desinformação – quase sem nenhum impedimento institucional. Com Bolsonaro, eles conseguiram o que o PT estabeleceu certo limite. Não iriam abrir mão agora.
O empréstimo de quantias exacerbadas de recursos públicos com juros subsidiados através do BNDES é uma das condições com as quais os grandes empresários não querem abrir mão e tiveram a garantia de que, com Bolsonaro no poder, não precisariam sofrer o risco. A lista é longa. Em Alagoas, Fernando Collor é um dos beneficiados pelo perdão do BNDES no processo de Recuperação Judicial das Gazetas, com o qual vem envidado todos os esforços para não pagar as centenas de trabalhadores demitidos, sem um real de verbas rescisória até agora. Eu estava lá e vi. Aliás, o ex-presidente em questão tentou o pleito para o Governo do Estado, perdendo com irrisórios 15%.
Outros políticos beneficiados pelas benesses financeiras com os recursos do povo foram recentemente revelados no último “escândalo do WhatsApp” em que discutiam proposta de golpe. São eles: como Luciano Hang, o véio da Havan, Afrânio Barreira, do Coco Bambu; José Isaac Peres, da rede Multiplan; Ivan Wrobel, da construtora W3 Engenharia, entre outros.
Assim, recursos que deveriam ser distribuídos para as políticas públicas geradoras de melhores condições econômicas para o povo brasileiro são direcionados para a garantia destes defensores verde-e-amarelo do Estado Mínimo. Mínimo para quem? Sabemos bem – ainda que nem tudo seja revelado, já que sigilo de 100 anos, orçamento secreto e outras surdinas institucionais agora são praxe.
A bancada do boi também foi privilegiada e, aliada com Bolsonaro, lhe garantiu mais votos nos municípios, enquanto foi assegurada a relação de troca. Está liberado aprofundar ainda mais a violência contra os povos indígenas, forçar a aprovação do marco temporal, e a já consolidada liberação de agrotóxicos Somos os maiores consumidores do mundo das substâncias barradas no exterior, e quando a conta vem na saúde – que sempre vem – é cada vez mais limitada. Afinal, Teto de Gastos.
A abertura para o parlamentarismo que colocou mais recursos nas mãos do Legislativo – consequentemente, mais poder coronelista nos respectivos municípios e capacidade de barganha em Brasília – também assegurou mais aliados a Bolsonaro. Não à toa, grandes detentores e distribuidores de verbas parlamentares garantiram sua vaga no Congresso Nacional nestas eleições, como Arthur Lira (PP), Marx Beltrão (PP) e Isnaldo Bulhões Jr (MDB) – os três eleitos e garantidores de quociente partidário.
E se, mais uma vez, vale a máxima de que, “na dúvida, siga o dinheiro”, não há dúvidas de que aqui também. O dinheiro abre canal para pressionar narrativas, tem capacidade aglutinadora e estratégica para disseminar o que se quer: constrói certezas e forma opiniões – por vezes das mais conservadoras – em quem antes estava indeciso. Noutras ocasiões, aglutina os preconceitos dos que já os tinham, mas não viam terreno fértil para deixar crescer.
E o que tem sido construído, com todo esse dinheiro rodando, no imaginário de grande parte dos 43% é brutal. Em entrevista à Fiocruz, o sociólogo Jessé Souza – que estuda o comportamento da classe média arregimentada pelas elites no Brasil – avaliava que “reproduzimos sob máscaras modernas o mesmo ódio e desprezo às classes populares que antes era devotado ao escravo [sic]. Retirava-se do escravo[sic] toda resistência e confiança, exatamente como fazemos hoje com as classes populares”. A entrevista completa de Jessé à jornalista Luiza Medeiros pode ser visualizada aqui.
Quando Jessé de Souza escrevia a Elite do Atraso, à época motivado a dar uma resposta crítica a Sérgio Buarque e suas “Raízes do Brasil”, já alertava sobre como foi se legitimando a dominação oligárquica a partir de três fatores. Ele citava: o apagamento da escravidão – e de como esta sociabilidade se impõe ainda hoje de forma violenta e perversa; das alianças e preconceitos enraizados pela herança de classe social, e aqui ele interpõe todo arcabouço cultural que nos afasta do reconhecimento das nossas condições, impondo um “brasileiro genérico”; e, por fim, as tralhas de um diagnóstico mal acurado da realidade nos posicionando em uma visão de mundo falsamente crítica, mas imbuída de racismo cultural.
Não nos faltam exemplos no jantar de natal. Se há crítica sobre criminalidade, o foco moral é gigantesco quando se trata de uma pessoa em situação de rua que eventualmente jogou fora um alimento recolhido, ou furtou cigarro. O foco não é o mesmo para aquele que comprou 51 imóveis com dinheiro público, em espécie. A lupa se coloca nas saídas cotidianas, nas fugas questionáveis das classes mais vulnerabilizadas; normalizando, quase que de forma conformada, o desvio devastador de recursos públicos para empresários, o roubo, a milícia, e diversas outras permissividades de crimes escancarados. A contradição sequer é percebida e ainda vem recheada com a pá de valores fundamentalistas, igualmente patrocinados por igrejas-partidos.
O mesmo vale para o conjunto violento que engloba e potencializa o racismo, a LGBTfobia, a aporofobia, e uma série de preconceitos mais ou menos enraizados contra as grandes maiorias já não mais – felizmente – tão silenciadas.
Trata-se de uma forma de olhar a realidade e da força política e econômica que se tem para impô-la. Nenhum olhar da realidade vem de forma espontânea, sem estímulos anteriores. E assim Jessé Souza prossegue na entrevista que “esse acordo entre as classes do privilégio é de uma elite do dinheiro, que reproduz o capital econômico, e uma classe média, precarizada em alguma medida. Nessa dinâmica, a elite reproduz capital econômico, enquanto a classe média reproduz capital cultural”.
O conjunto de valores violentos, cordializados ou não, não vem isolado de outras questões. O brasileiro genérico não herda capital econômico, mas se coloca nesta defesa. Como o sociólogo Jessé Souza analisa: “O ‘imbecil perfeito’ é criado quando ele, o cidadão espoliado, passa a apoiar a venda subfaturada desses recursos a agentes privados imaginando que assim evita a corrupção estatal. Como se a maior corrupção – no sentido de enganar os outros para auferir vantagens ilícitas – não fosse precisamente permitir que uma meia dúzia de super-ricos ponha no bolso a riqueza de todos, deixando o resto na miséria”. E um pouco à frente, prossegue: “Por conta disso, temos que examinar de que modo “a interpretação dominante” do país ajudou e pavimentou o trabalho sujo da mídia de distorção sistemática da realidade”.
Tentar nos colocar neste exercício não é possível sem, contudo, reconhecer o quanto as dores materiais são reais, e o quão visceral é o anseio em reduzir os estragos provocados pelas condições mais precarizadas e inseguras de vida. O cansaço encaminha a busca por respostas mais rápidas – deixando o terreno mais livre para as desinformações, com suas tentadoras frases curtas. O cansaço também induz a posicionar o debate crítico como algo que mais causa desesperança do que resolutividade. Dentro do jogo eleitoral, o cansaço e a garantia de sobrevivência são as ferramentas fundamentais a colocar o povo mais suscetível à figura do cabo eleitoral, que não só promete como cumpre necessidades de maior urgência, e cujo pragmatismo não pode ser afastado em nome dos ideais das “propostas e projetos políticos”.
Então, quando 43,44% escolhe um projeto político que beneficia exclusiva e comprovadamente uma elite, é preciso compreender este universo de pessoas e motivações. Compreender e confrontar esse conjunto de anseios e valores é tarefa para ontem e que não se resolverá nos próximos 27 dias, até o segundo turno, ou mesmo com a saída de Jair Bolsonaro, uma vez que há várias de suas crias e aliados, os fisiologistas e os liberais da direita na coligação petista, têm cadeira já garantida nos parlamentos e estados.
A urgência de adentrar os 43%, sair de casa, às vezes dialogar ou às vezes confrontar; colocar alternativas de esperança possível e concreta a partir do poder criativo que vem do povo, se justifica mais na necessidade de não deixar mais que estas condições perdurem. É preciso atenção para os resultados dos derrotados também. Ou, como diz Torquato Neto, “não interessa derrubar o príncipe e deixar que sobrevivam os princípios”.