“Moça, é melhor você deixar pra lá”: militares são acusados de desencorajar vítima de agressão e noticiar BO junto a agressor

O suspeito de bater na mulher em via pública se identificou como um policial militar reformado

A despeito de grandes esforços de profissionais comprometidas e militantes para que as mulheres vítimas de violência tenham aquele mínimo necessário – um acolhimento institucional imediato – o relato a seguir traz um desenho bem exato da revitimização da mulher somada ao corporativismo militar, restando poucas saídas de emergência em Alagoas.

Vítima de agressão física em uma via pública, T. L.S. relata que foi desencorajada de prosseguir com a denúncia repetidamente por policiais militares. A história pode ser dividida em três etapas. Cada uma conta um tipo de violência. A primeira vem com a violência original, a segunda aparece com a tentativa de silenciamento. Finalmente, vem terceira, que concretiza em um papel oficial à revitimização: um BO que só possui relatos do agressor e do militar que o atendeu. Segundo o relato de T.L.S – acompanhado pela devida documentação e fotografias – não houve espaço para sua voz, que dirá para a sua denúncia.

Segue o relato que tem como base a palavra da vítima:

Parte 1: “Depois do primeiro soco na cabeça, coloquei o braço na frente”

T.L.S. caminhava próximo a sua residência, na rua Rosa Lins, no município de Rio Largo. Levou um susto ao ver um veículo avançando na contramão e subindo a calçada em que estava passando. Ela gritou. O motorista gritou de volta, iniciando a discussão verbal. Mas não parou por aí. T.L.S relata que o suspeito desceu do veículo e, apesar da tentativa da mulher que o acompanhava de impedir, ele avançou sobre a vítima, agredindo com socos na cabeça e nos braços.

“Depois do primeiro soco na cabeça, eu coloquei o braço na frente para proteger a cabeça e ele continuou batendo no braço. Quando ele parou, eu disse que iria chamar a polícia e ele disse que eu poderia chamar, pois ele morava naquela casa”.

Parte 2: “moça, é melhor deixar para lá”

T.L.M conta, então, que uma viatura da PM chegou e, de imediato, o acusado mostrou uma identificação de que tratava-se de um sargento reformado. “Foi aí que os policiais voltaram para mim e disseram: ‘Moça, é melhor deixar para lá. Sei que você está na razão mas ele é policial. Vai ser sua palavra contra a dele. Além do mais, você mora aqui perto e passa aqui diariamente”, rememora.

A viatura foi embora, mas T.L.M não quis deixar para lá. Dirigiu-se, então, para o 8º Batalhão da Polícia Militar (8º BPM). Foi orientada ali a ligar para o Centro de Operações Policiais (Compom): 1-9-0. Os militares de uma outra viatura chegaram e buscaram o acusado em um bar na Praça Padre Cícero.

“Ele estava bebendo, se identificou de novo para os policiais, pagou a conta. E então foi dirigindo no carro dele até a casa dele, mesmo dessa forma”. Na casa do agressor, os policiais declararam ter pego as imagens da câmera de segurança, e depois saíram com destino à Central de Flagrantes, em Maceió. “Ele foi dirigindo o tempo todo no carro dele, enquanto que eu fui dentro da viatura. Minha cunhada foi de moto com meu marido, mesmo com medo, porque disseram que não cabia todo mundo na viatura”, disse.

T.L.S conta que chegou a perguntar para um policial, ainda na viatura, o porquê de o acusado – mesmo sob efeito de álcool – poder seguir dirigindo em seu próprio veículo até a Central. “Então me responderam que não havia viatura o suficiente e que não iria acontecer nada, afinal eles estavam seguindo ele”.

– Parte 3: Na Central, do lado de fora

Machucada, enfrentando todas as desmotivações possíveis no trajeto, T. L.S conta que chegou na Central de Flagrantes e lhe informaram para ficar do lado de fora. “O policial entrou junto com ele e vinte minutos depois eles saíram e me entregaram esse BO. Sendo que eu nem tinha sido ouvida”.

O boletim deixa explícito e comprova: a vítima não “relatou” nada ali. Não afirmou, nem negou. A vítima não chegou a ser ouvida. O comunicante, identificado como Tenente Hélvis Correa de Barros, sequer deixou que ela entrasse no local.

Mas ainda assim, a vítima não desistiu. Nesta segunda-feira, 01 de fevereiro, T.L.S seguiu para a Secretária de Estado da Mulher e dos Direitos Humanos (Semudh) e foi acompanhada por uma de suas representantes até o Hospital da Mulher, onde foi efetuado o exame de corpo de delito. Acompanhada também pela coordenação do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST-AL), organização da qual é integrante, T.L.S conseguiu de fato realizar o primeiro relato. “Fiz o exame, mas disseram que o resultado só sairia de quinze a trinta dias e iria direto para a delegacia do bairro, e não vou ter acesso”.

Depois desse trajeto, o próximo lugar procurado foi a Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-AL). “Fiz o relato e me informaram que será encaminhado ao Ministério Público (MP), onde será apresentada a denúncia para adotar as devidas providências”, conta.

A PM e a Polícia Civil foram, ambas, procuradas pela Mídia Caeté, através da assessoria. Entretanto, não houve qualquer resposta sobre o caso.

Boletim de Ocorrência entregue para a vítima, que relata ter ficado do lado de fora enquanto agressor entrou com PMs para redigir documento. Imagem: cortesia.

As instituições como um novo agressor: quem vai bater perna por uma justiça?

É possível dar um nome conhecido para cada uma das práticas e negações a que T.L.S sofreu desde o momento em que foi agredida. A pesquisadora e professora de Criminologia e Gênero, Livya Sales, avalia a instituição como um novo agressor.

Nesse sentido, começa levantando as hipóteses da vítima de recorrer à Justiça. “De toda forma, ela poderia não ir direto para as instituições, mas acreditou que esse sistema legal é a forma mais justa. E o que ele fez? criou uma situação para que essa vítima não pudesse dar andamento”, relata.

Se não citamos o nome da vítima para não aumentar sua exposição à qualquer situação de retaliação, por outro lado, explicamos aqui que a Mídia Caeté também não pode citar o nome do agressor (ao menos neste momento), uma vez que ainda não foi publicizado e o caso ainda está sob investigação. O que podemos expor, no entanto, é que o agressor apontado por T.L.S trata-se de um sargento reformado da PM, morador de Rio Largo, inclusive próximo ao local de moradia da vítima.

“Há cifras e filtros quando se trata desse debate na criminologia”, conta Livya. Enquanto as cifras tratam dos números ocultos que impedem de visualizar o quadro geral da violência, os filtros da impunidade se seguem nessa trajetória, da política, da delegacia e do sistema judiciário.

“Isso vai fazendo que a denúncia vá perdendo força, A vítima busca o sistema de justiça, mas – quando ela põe na balança o inferno que vai passar – pensa logo ‘quem vai perder tempo indo bater perna por uma justiça? Do ponto de vista penal, ela só quer justiça, porque, se fosse em outras áreas, poderia pleitear uma indenização em um outro caso. Outra circunstância e outro tipo de processo. Mas a vítima o que quer? Que seja reconhecida alguém como sofreu um dano, uma lesão, uma violência. Então, vai até o sistema, onde se criam varias barreiras para que se dê crédito ao seu relato.”

A ausência de um lugar para atendimento imediato específico para as mulheres, como uma delegacia da mulher atendendo 24 horas, também se torna um entrave. “Além de ele (o agressor) ter todo o conhecimento, de despertar todo o medo, ainda teve essa historia de que algumas coisas que são extremamente importantes para a delegacia da mulher, mas que não são em uma delegacia não especializada. É uma situação totalmente marginal, nada importante. São muitas coisas”, relata. Atualmente, a Delegacia da Mulher em Alagoas funciona apenas em horário comercial.

“Ela caminhou da maneira correta e esperada. Chamou as instituições corretas. Na primeira vez, teve desestímulo e na segunda viveu uma série de absurdos, que a gente nem consegue dar nome. Principalmente numa situação de um boletim de ocorrência que já chegou com papel pronto. Ela está numa situação hipossuficiente, porque é cidadã que – embora teoricamente tivesse que ter aparato da justiça – está confrontando um negócio gigantesco, que é toda a instituição policial e todo o sistema de Justiça Penal”, detalha a pesquisadora. .

Entretanto, T.L.S conseguiu, com apoio do movimento social em que está inserido, ser orientada para realizar exame de corpo de delito e oficializar a denúncia em órgãos de defesa dos direitos humanos. O espaço segue aberto aos órgãos citados, para que forneçam respostas sobre as posturas e as denúncias – inclusive já solicitadas por esta reportagem anteriormente, via e-mail e telefone.

“É a questão da dominação, também, porque o sujeito tem poder na dominação que ele exerce no cargo. Tem questão de ela ser mulher e – nesse sentido – montaram toda uma situação para ela ser desestimulada. Você sente violência, desesperança e desamparo imenso, pois se o policial faz um negócio desses, depois a delegacia… você vai dar continuidade ao processo? Que tipo de sentimento é esse, tão íntegro de buscar justiça, que vai fazer com que a pessoa perca seu tempo, dia de trabalho e fique vigiada pra lidar com isso?”

T.L.S reforça sua motivação. “Quero proteção. Quero que não fique impune, e quero evitar mais pessoas sofram o que aconteceu comigo”, resume. Nesse intuito, foi até os lugares indicados oficialmente para buscar justiça. Mesmo com hematomas demonstrando a agressão, com imagens e testemunha, lhe foi negado o direito.

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