Resumo
A concentração começou às 9 horas na Praça Centenário. Batuques, bandeiras, faixas e camisas. E outros adereços nada comuns se comparado aos atos realizados há quase dois anos: álcool em gel, máscaras, cautela nas aproximações. Mal os pés foram colocados na pista da Fernandes Lima, dando início ao ato, e as falas no trio elétrico já partiam para as orientações sobre “manter distanciamento e uso de máscara”. A cartilha era conhecida, mas não deixou de ser repetida ao longo do trajeto.
Foi o primeiro grande ato nacional unificado convocado por movimentos da esquerda, de várias vertentes, desde que a pandemia do Coronavírus foi instaurada no país. Ganhou adesão popular surpreendente. De acordo com levantamento efetuado pela central de mídias da Frente Povo sem Medo, pelo menos 213 cidades no país tiveram atos, além de outras 14 no exterior, e mais de 420 mil pessoas participando. Se em todo o país, o ato supriu e superou expectativas, o volume não deixa de impressionar também no ato ocorrido na capital alagoana.
Acontece que a esquerda que tanto falava “Fique em Casa” desta vez convocou uma aglomeração gigantesca. E também desta vez, foi a direita – que, durante todo este tempo, deu gás às constantes mobilizações, aglomerações de deboche e de adoração ao presidente e seus asseclas, protestos antidemocráticos, reivindicação de abertura de bares e restaurantes – quem acusou os participantes de ato de cometerem uma contradição.
O senador Fernando Collor – que há duas semanas esteve junto a Jair Bolsonaro promovendo aglomeração sem máscara no aeroporto, em Alagoas– foi uma das figuras públicas que apareceu para fazer a crítica.
Contradição percebida
Há grupos e vertentes que apostam nas ruas como o supremo lugar de transformação da realidade. Outros a colocam como uma das estratégias, e alguns ainda como ‘último caso’. Em meio às matizes e moderações, no entanto, é possível dizer que existe, sim, um consenso histórico de que as ruas são no mínimo um lugar importante de pressionar por direitos – sobretudo quando a demora sufoca, as instituições falham, as articulações políticas questionáveis e a burocracia são postas como ferramenta de adiamento para necessárias respostas sociais.
Com o país enfrentando uma crise pandêmica associada a uma série de escolhas políticas e posturas públicas do maior chefe do Executivo, a motivação para as ruas pelos que o denunciam foi se tornando ainda mais latentes.
Ainda assim, poucos atos provocados pela esquerda foram vistos nas ruas ao longo dos últimos 18 meses, a partir de avaliações de que seria melhor buscar outras alternativas em razão das condições em que os estados se encontram sobre a pandemia. Alagoas, por exemplo, segue há semanas de volta à fase vermelha – embora o grau de flexibilidade decidido pelo Governo Estadual venha se mantido grande até esta semana – com leito de UTI se aproximando da lotação e um aumento na celeridade de novos casos e mortes.
Buscando alternativas sem aglomeração, entidades de organização civil e movimentos sociais vinham chegando aos mais diversos lugares com ações de solidariedade, entre distribuição de alimentos, máscaras e produtos de higiene. Também foram desenvolvidas atividades de propaganda pelo cuidado nas comunidades, com orientações como: usar máscara, álcool em gel ou água com sabão, e – claro – ficar em casa se puder. Onde houve falta de políticas públicas, movimentos sociais cumpriram com brechas mais urgentes, enquanto denunciavam – da forma que encontraram – a voracidade da retirada de direitos provocada pelo presidente Jair Bolsonaro, sua equipe e apoiadores. Confira reportagem da Mídia Caeté sobre as ações de solidariedade.
O problema é que mesmo as mais esforçadas ações não dariam conta da voracidade das perdas. A pandemia não passa e o desalento é grande quanto à perspectiva de solução. O empobrecimento só aumentou junto ao aumento do desemprego e de formas cada vez mais precárias de trabalho. O encarecimento da cesta básica, dos produtos mais necessários, e a falta de renda e de auxílio emergencial, colocaram a fome como uma pauta presente nas famílias.
As medidas e decisões vêm sendo avaliadas pelos grupos diretamente interessados como um verdadeiro desmentelo de direitos. Seja contra povos indígenas e contra o meio ambiente, contra o SUS e contra a Ciência, contra as condições de existência mais basilares e, cada vez mais comprovadamente via CPI da Covid, contra o acesso do povo à única forma de conter as mortes e casos de Coronavírus: as vacinas.
A CPI da Covid vem comprovando que o grau de pandemia vivido pelo país, que até agora levou embora cruelmente mais de 490 mil mortes – se dão neste nível e neste ritmo, em decorrência de decisões políticas de Jair Bolsonaro e sua equipe.
As evidências sobre as ações e inações do Governo Federal, a consternação de só observar piora e os debates nas redes sociais serem insuficientes, colocaram as ruas de volta como uma pauta central sob uma das mais comuns afirmações para cada militante que esteve ontem no ato: não havia outra escolha.
Através das faixas, das falas, dos textos e convocações, os movimentos sociais então se reuniram e decidiram que a postura de ir às ruas enquanto permanecem defendendo os cuidados diante da pandemia é uma ação contraditória, porém coerente com o fim que almejam. Mais do que isso, através dos gritos sob as máscaras, reforçaram na pedagogia das ruas cada uma destas razões. “Disseram o óbvio”, como diz Brecht, sem cair nas armadilhas de jogos falaciosos que reclamam das contradições.
Ruas e defesa da vida
Integrante do Fórum em Defesa do SUS, a professora de Serviço Social da Universidade Federal de Alagoas, Valéria Correia, explica:
“Só haverá controle sobre a pandemia se esse governo for destituído. Ele tem que ser reconhecido internacionalmente como o inimigo número 1 do combate à Covid. As novas cepas já estão surgindo no país e outras que podem surgir é pelo descontrole da pandemia no país. A responsabilidade é do Bolsonaro, é do Mourão, é do Governo Federal. Por isso a importância de ir às ruas hoje. É pela vida das brasileiras e brasileiros. É importante manter o distanciamento com máscara, com uso de álcool em gel, com todos os protocolos e cuidados necessários – mas o combate ao vírus e ao maior vírus desse país tem que ser feito nas ruas. Vamos à luta. Fora Bolsonaro e Mourão. A vida acima dos lucros”, defendeu.
Militante do Movimento Sem Terra, Miquézio Max veio de União dos Palmares, do acampamento Che, para também reforçar a soma ao ato. “‘Ele não’, primeiramente, vacina no braço e comida no prato. Estamos cansados da situação que está acontecendo no Brasil, então a militância se reuniu para justamente dizer ‘Ele não’ e pelo impeachment de Jair Bolsonaro”, disse.
“Quando saímos para as ruas justamente nessa pandemia é para corrermos atrás do que a gente precisa nesse momento, que é o impeachment e conseguir nossas vacinas e comida na mesa, principalmente dos que mais precisam. Então quantas vezes forem preciso estaremos aqui e vamos nos aglomerar, sim, mas com precaução, máscaras de álcool em gel e todos os cuidados necessários”, reforçou.
Os professor Luciano Amorim, que integra o cursinho comunitário Quebrando a Banca, também se posicionou: “A rua é um espaço legítimo nosso. A Pandemia e a política de descaso com a vida dos de baixo empurra a gente para a rua no intuito de conter o genocídi. Porque a rua revela muita fúria quando necessário. Ir às ruas nesse momento é evidenciar que não estamos parados (nunca estivemos) mas que não deixaremos mais dos nossos sucumbir. Se é só através dela que eles nos enxergam, que assim o façamos”, reforça.
Amorim também acrescenta as distinções entre as mobilizações ocorridas pela direita e o ato do dia 29. “Diferente dos atos contra as políticas de saúde e Lockdown feitos por determinados setores capitaneados pela direta no país, nós dos movimentos populares, que lutamos pela vida, temos um ato com afastamento necessário, utilização de máscara obrigatória, alas organizadas e comunicação visual com o povo. A solidariedade entre os movimentos também conta com arrecadação de alimentos, distribuição de máscaras e álcool aos que se fizerem presentes”.
O educador também reforça que o enfrentamento deve ir além do “Fora do Bolsonaro”. “Nosso grito de revolta não se resume ao Bolsonaro. Ele deve atingir a toda corja miliciana e negacionista que criou um ambiente mais que propício para o genocídio acontecer. É contra Mourão, Queiroga, Guedes, as bancadas banqueiras e destruidoras da vida que nos dispomos à luta”, afirma.
A jornalista, pedagoga e servidora da UFAL, Lenilda Luna, organizou outra mobilização na Praça dos Martírios, no centro de Maceió, junto à Unidade Popular, e reforça que movimentos sociais não perderam de vista a necessidade de cuidado diante da pandemia, e hoje veem a rua como parte desse cuidado.
“São justamente os movimentos sociais e movimentos populares da esquerda que estão, desde o início, colocando que a pandemia é grave, que precisa de medidas fortes e centralizadas. E fomos nós de movimentos sociais quem combatemos o negacionismo de quem chamava a Covid de ‘gripezinha’, usava remédios ineficazes, e a panacéia que foi divulgada e muitas pessoas acreditaram, o retardo em comprar vacina. Tudo isso faz com que o governo seja cúmplice responsável por essa mortandade”.
Lenilda também associa a necessidade da mobilização para que haja mudança do cenário atual.
“Nós tivemos todos os cuidados. Sabemos como é sério sair nas ruas nesse momento, mas não podemos abandonar o povo que está morrendo. Hoje, de cada dez famílias, seis padecem de insegurança alimentar. Isso significa que, na nossa vizinhança, tem pessoas que não estão conseguindo mais fazer refeições diárias. Temos 14 milhões de desempregados e a carestia está atingindo a todos os trabalhadores e trabalhadoras. Diante de uma situação dessa, para enfrentar pandemia e crise econômica, temos que ir às ruas gritas o impeachment de Bolsonaro. Com Bolsonaro na presidência, isso não muda. Só piora”.
Avaliação de riscos
O médico da Família e da Comunidade, Rafael Morais, também esteve presente no ato e propõe que se pense as possibilidades de risco a partir de uma reflexão sobre o que representa o governo de Bolsonaro no país e seus impactos para a população.
A primeira delas é estendida a segmentos empresariais e políticos que reivindicam abertura das atividades em confronto à saúde. “São as decisões em torno da gestão da pandemia, onde as decisões políticas tomadas pela extrema-direta estão em contraste à necessidade de controle da transmissão do vírus usando como justificativa a manutenção das atividades econômicas, criando uma falsa dicotomia entre a proteção da vida e as atividades produtivas. Se deixarmos a responsabilidade da gestão para esse grupo vamos continuar observando passivamente decisões que propagam e potencializam os riscos do doença do Coronavirus e minimizam a morte de milhares de trabalhadoras e trabalhadores”.
O segundo aspecto, para o médico, trata-se das reformas que precarizam e dificultam as condições de vida. “Nesse sentido, além dos impactos de uma crise sanitária precisamos nos contrapor aos impactos de uma crise econômica que vêm sendo depositados sob nossas costas com a reforma da previdência, administrativa e tributária. Além do apoio aos grileiros, garimpeiros e ruralistas que ameaçam nossa vida com exércitos particulares nos campos e florestas”.