Resumo
Diante da proximidade das quadras chuvosas, entidades e movimentos sociais começam a se mobilizar em campanhas por agasalho, roupas e alimentos para as pessoas em situação de rua. Tratam-se de ações emergenciais que, embora bem-vindas também no escopo das políticas públicas em casos de crises, terminam por evidenciar ainda mais as limitações causadas pela violação aos direitos e pela ausência de proteção social- ao longo de todo o ano.
Aliás, nem mesmo as ações imediatas têm sido satisfeitas à população em situação de rua, que já começa a enfrentar dificuldades ainda maiores em meio à mudança climática.
“Na verdade, são mais ações por parte da sociedade civil organizada, de grupos voluntários, que fazem oferta de alimentação, agasalhos e roupas. Neste momento, também temos a sensibilidade do Ministério Público e de entidades que fazem essas campanhas, assim como o próprio Movimento”, relata a coordenadora do Movimento Nacional da População em Situação de Rua, Rafaelly Machado.
Segundo a representante do MNPR, o silêncio ainda vem predominando por parte do executivo municipal e estadual. “Nem por parte da Defesa Civil do Estado, nem por parte da Defesa Civil do Município foi apresentado um plano de ação para essa quadra chuvosa para a população em situação de rua. Eles só falam das famílias atingidas pela barragem, que têm suas casas invadidas por água, mas não falam das pessoas que estão nas calçadas e marquises”, relata.
Rafaelly acrescenta ser necessário pensar em abrigos especializados temporariamente, alertando que as vagas atuais são insuficientes. “Principalmente para as pessoas que têm a saúde comprometida, pessoas que convivem com HIV na rua, pessoas que têm tuberculose. Então é importante que a Defesa Civil pense estratégia para o acolhimento e amparo a essas pessoas em dia de chuva”.
Políticas para além das crises
No lançamento do Plano Ruas Visíveis, em 2023, o Governo Federal atesta que o país vive um dos períodos mais propícios para efetivação da Política Nacional para a População em Situação de Rua (PNPSR), que havia sido instituída em 2009, pelo Decreto 7053.
“O momento atual de convergência entre a vontade política por parte de um novo ciclo governamental, a mobilização da sociedade civil, o engajamento do Poder Judiciário e o compromisso do Congresso Nacional favorece a articulação entre diversos atores para a efetivação da PNPSR, a fim de garantir, por meio de uma abordagem intersetorial e participativa, a realização dos direitos humanos daqueles que, em meio a adversidades tão significativas, habitam as ruas das cidades brasileiras”.
A Política Nacional surgiu com o objetivo de assegurar o acesso a políticas públicas de saúde, educação, previdência, assistência social, moradia, segurança, cultura, esporte, lazer, trabalho e renda à população em situação de rua, por meio de serviços e programas transversais, intersetoriais e intergovernamentais.
Porém, sem o Plano de Monitoramento, não havia como fiscalizar se houve avanços – dificultando ainda mais as cobranças. Para se ter ideia, de acordo com o próprio Governo Federal, em 2023 – quase 15 anos após a PNPSR – apenas 18 municípios, seis estados e o Distrito Federal tinham aderido. Alagoas e Maceió não estavam incluídos.
Em um artigo publicado na Mídia Caeté, o presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB Alagoas, advogado Arthur Lira, chegou a reiterar a cobrança pelo plano, ao afirmar que: “apesar do cenário de graves violações enfrentadas por este segmento populacional, observa-se inércia dos poderes executivos. Na esfera municipal, apresentei pessoalmente as informações necessárias para adesão ao Plano durante reunião com representantes da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social, porém, não houve desdobramentos. No plano estadual, apesar do esforço hercúleo do Comitê Pop Rua JUD em pautar a proposta, o Governo de Alagoas parece não querer implementar políticas públicas efetivas para PSR.”.
Diante da ausência do Plano, o presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB argumenta que a população em situação de rua segue prejudicada no estado, “sofrendo as consequências nefastas da mais extensa e profunda aversão que é a rejeição ao pobre, fenômeno atualmente chamado de aporofobia, em razão da ausência de políticas públicas efetivas devido ao descompromisso dos poderes públicos estaduais e municipal em não aderir ao Plano Ruas Visíveis. Talvez seja por este motivo que o poeta alagoano Lêdo Ivo afirmava que nesta terra de ódios, só Deus perdoa.”
Pouco tempo depois, o Governo do Estado assinou o Plano Ruas Visíveis, mas, segundo o advogado Arthur Lira, não passou do papel passado. “O Estado de Alagoas aderiu, assinou, entretanto, numa adesão muito pro forma, porque até o presente momento não apresentou nenhum plano, não discutiu esse programa Ruas Visíveis no Comitê da População em Situação de Rua Estadual. enfim, permanece inédito. Foi uma mera assinatura”.
Já a Prefeitura de Maceió sequer assinou o Programa. Algumas ações voltadas a trabalho e renda chegaram a ser recentemente efetuadas pelo Município, a exemplo do programa promovido pela Secretaria de Trabalho, Emprego e Economia Solidária de Maceió, que pretende capacitar 100 pessoas para realizar zeladoria nas praças da capital alagoana, tendo como prioridade as pessoas em situação de rua. O problema é que mesmo esta política tem limitações importantes apresentadas pelo Movimento.
Ocorre que a seleção para o curso de zeladoria faz requisição de uma série de documentos que são de difícil acesso à população em situação de rua, como comprovante de residência, declaração de ausência de antecedentes criminais, Carteira de trabalho,título de eleitor, além de declaração da instituição para pessoas que vivem em abrigo.
“A gente vê que o edital às vezes não corresponde muito às necessidades da população de situação de rua. Primeiro que pensam em projetos, querem criar projetos e editais, sem sequer dialogar com a população em situação de rua, por isso dizemos tanto ‘nada para nós sem nós’.
Política pública como alternativa
Ainda que limitadas a suas atribuições, políticas intersetoriais e transversais terminaram sendo modeladas por órgãos vinculados ao sistema de justiça, que ofertam ações de cidadania, ou mobilizam algumas cobranças ao longo do ano. É o caso dos comitês Pop Rua Jud e Pop Rua Jus, cujas construções foram orientadas a partir de resolução do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
Coordenador do Comitê Pop Rua Jud em Alagoas, o juiz federal Antônio José Araújo explica que um dos grandes desafios hoje de efetivar políticas públicas voltadas à população em situação está na ausência — ou na fragilidade — do diálogo interinstitucional entre os diversos órgãos que compõem a rede de proteção social.
“A realidade vivida nas ruas exige respostas que envolvem múltiplas competências institucionais e, por isso, torna-se imprescindível um modelo de cooperação interinstitucional estruturada, que articule de forma eficiente os serviços públicos das esferas federal, estadual e municipal”, declara.
Um dos exemplos apresentados pelo magistrado é a dificuldade de acesso a alguns direitos, como o benefício assistencial como o BPC/LOAS, para enfrenta particularidades como a PopRua.
“A pessoa precisa de um conjunto mínimo de documentos. Isso exige ações integradas que envolvem o Instituto de Identificação, que é vinculado ao governo estadual, os cartórios, o INSS, que é autarquia federal responsável pela análise dos benefícios e, muitas vezes, o ajuizamento da ação pela Defensoria Pública da União. Todas essas etapas demandam sincronia e disposição institucional para construir fluxos eficazes de atendimento”, cita.
O coordenador do Pop Rua Jud acrescenta, ainda, a falta de capacitação técnica e humana dos profissionais do serviço público para lidar com a complexidade social e subjetiva que envolve a vivência nas ruas. “Ainda são comuns os preconceitos, estigmas e a ausência de empatia, o que dificulta a prestação de um serviço público acessível e respeitoso. Por isso, é essencial que os trabalhadores e servidores públicos recebam formações continuadas que permitam enxergar a partir da perspectiva de quem vive nas ruas, aproximando-se de uma abordagem mais justa, sensível e transformadora.”
Apesar disso, acredita que há um amadurecimento significativo quanto às ações e atendimento à Poprua, ao menos entre os órgãos do sistema de justiça – o que pode ser visualizado, segundo o juiz, através da realização da segunda edição do Mutirão Pop Rua Jud.
Para o titular da Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão em Alagoas, Procurador da República Bruno Lamenha, os desafios envolvem barreiras estruturais e simbólicas.
“Na prática, a efetivação dessas políticas requer romper com preconceitos e estigmas que recaem sobre a população em situação de rua, muitas vezes vistos apenas como problema de segurança ou de saúde, e não como sujeitos de direitos. Além disso, é preciso lidar com as dificuldades de acesso a serviços básicos — saúde, educação, documentação, habitação — que são agravadas pela situação de extrema vulnerabilidade, ausência de vínculos familiares, dependência química e problemas de saúde mental. Outro ponto crucial é garantir a continuidade das políticas, evitando ações pontuais e desarticuladas que não conseguem gerar impactos sustentáveis”, enumera.
O Procurador ressalta que o Estado, apesar de possuir uma Política Estadual de Atenção Específica para a População em Situação de Rua, há muito o que se avançar: seja na carência de formação, no atendimento integrado e humanizado, ou na insuficiência de recursos e estruturas adequadas.
“Em Alagoas, assim como em muitas outras regiões, é necessário avançar no fortalecimento de redes intersetoriais, além de investir em sensibilização e capacitação permanente dos profissionais que atuam na ponta, como equipes de saúde, assistência social e segurança pública. Inclusive, a precariedade no atendimento em Maceió às pessoas em situação de rua levou o MPF, em conjunto com MP/AL e DPU, ingressarem com uma ação civil pública na Justiça Federal para que sejam implantadas melhorias nos Centros Pop de Maceió e medidas imediatas para garantir acesso à alimentação, higiene e saúde. “
Já 0ara o defensor público Isaac Souto, além da fragmentação das políticas, manifesta pela ausência de um diálogo efetivo entre diferentes pastas, há ainda um desconhecimento profundo que culmina com o preconceito contra as pessoas que convivem nas ruas.
“A realidade é marcada pela ausência de vínculos familiares, histórico de violência institucional, desemprego, racismo, sofrimento psíquico, além das pessoas em situação de rua serem vítimas de muitas dificuldades e obstáculos no acesso regular a serviços públicos, ante os estigmas e preconceitos (aporofobia) existentes, o que ainda reforça as diversas violações de direitos humanos sofridas”, relata.
“As ações da Defensoria Pública tentam minimizar essas barreiras, mas os desafios são diários e enormes. O preconceito estrutural, a criminalização da pobreza e a falta de investimento em políticas de moradia digna como prioridade, além do acolhimento temporário adequado são agravantes da exclusão”.
O defensor público também destaca que, a despeito de avanços pontuais com atuação da Defensoria, Ministério Público, Judiciário, Comitês, Conselhos e Movimentos Sociais, falta política robusta que alcance estas particularidades da POP RUA. “Faltam profissionais capacitados, orçamento adequado e uma mudança de paradigma. Ainda impera, em muitos setores do Estado, uma lógica higienista que trata a presença das pessoas em situação de rua como problema urbano e de segurança pública, e não como questão de direitos humanos”, diz.
De manhã reunião, de noite agressão
O que também se qualifica como prática imediatista é tentar remover a população em situação de rua a partir de estratégias como a internação compulsória, como vem sendo a proposta do vereador Thiago Prado – já documentada em um Projeto de Lei na Câmara Municipal de Maceió. Mais do que superficial, porém, a ação é violadora de direitos, de políticas mais sistêmicas, e da própria resolução do CNJ, conforme atestam os defensores de DH.
Esse tipo de prática não vem distoando de um modus operandi repressivo contra o segmento, o que, segundo a coordenação do MNPR, ocorre com frequência e é ainda mais acentuado quando da ocorrência de reuniões em órgãos públicos.
“Pelo dia estamos em reunião no tribunal de justiça ou outro órgão, para debater políticas. A noite, na praça, vem forças da guarda ou da polícia para nos agredir”, denunciam constantemente integrantes do MNPR durante audiências e reuniões nos comitês.
A reclamação de violência já é conhecida também por órgãos de proteção de direitos ou fiscalização.
Ao apontar a inconstitucionalidade formal – por ser matéria federal – e material do PL, o presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB, Arthur Lira, relata:
“Deviam ter essa mesma agilidade aos crimes contra o patrimônio para cobrar a apuração das mortes de pessoas em situação de rua. Segundo a própria Delegacia de Homicídios, em apenas cerca de 30% desses casos, o inquérito é concluído. Ou seja, 70% desses crimes contra a população em situação de rua, não são sequer concluídos em casos policiais.”
Nesse sentido, o defensor público do Estado de Alagoas e Secretário-executivo do Comitê POP RUA JUS, Isaac Vinicius Costa Souto, relata que a Defensoria Pública tem recebido denúncias como: abordagens violentas, remoções forçadas, destruição e retirada de pertences pessoais, além de agressões verbais e físicas por parte da polícia ou da guarda municipal.
Ao receber as denúncias, o órgão age de diversas formas. “Orientando as vítimas sobre seus direitos, provocando os órgãos de controle e monitoramento para a apuração dos fatos, acionando a Delegacia de crimes contra vulneráveis, a Promotoria de Controle Externo da atividade policial e o Judiciário para garantir a responsabilização do Estado”, cita o defensor.
“Além disso, temos cobrado conjuntamente a construção de protocolos de abordagem humanizada e a instalação de câmeras corporais nas forças de segurança pública, que respeitem as orientações da ADPF 976 do STF, que veda ações higienistas e remoções forçadas sem oferta de alternativa digna”, atenta.
Para efetivar esse tipo de política, o defensor público afirma ser primordial conhecer o segmento.
“Estamos falando de pessoas com histórias, com traumas, com direitos e garantias não garantidos”, declara, lembrando a ausência de adesão pelo município de Maceió do Plano Ruas Visíveis, mesmo após diversos expedientes.
Estado de coisas inconstitucional
Diante de tantos descumprimentos, incompreensões e perguntas com pouca ou nenhuma resposta, resta ao coordenador de Direitos Humanos do Tribunal de Justiça de Alagoas, Pedro Montenegro, classificar que as condições das políticas públicas em Alagoas “insere-se no contexto do ‘estado de coisas inconstitucional concernente às condições desumanas de vida da população em situação de rua no Brasil, patenteado na decisão do STF ao julgar a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, a ADPF 976 MC / DF”. Trata-se de um quadro de reiteradas omissões estruturais por parte dos Poderes constituídos, gerando sistemáticas violações dos direitos humanos das pessoas em situação de rua, consagrados na Constituição Federal”.

Montenegro menciona, na sequência, as violações ao direito social à saúde e à moradia; o direito fundamental à vida, à igualdade; o fundamento da República Federativa de dignidade da pessoa humana; e o o objetivo fundamental da República Federativa de construir uma sociedade justa e solidária.
Para o coordenador de Direitos Humanos do TJ, os desafios dessa implementação de políticas públicas são complexos.
“Utilizo o verbete ‘complexo’, não em seu sentido usual, geralmente empregado como “recurso curinga” para legitimar a inapetência das políticas públicas para as pessoas em situação de rua. Utilizo no sentido original do latim “complexus”, que significa o que é tecido junto”, relata. “A realidade das pessoas em situação de rua apresenta elementos constitutivos da sua condição de vulnerabilidade que estão intrinsecamente ligados, e, a complexidade surge da interação e dependência desses elementos”.
Pedro Montenegro acrescenta, ainda, as vulnerabilidades da Poprua, a histórica estigmatização, “que os apartam, os excluem da condição de sujeitos de direitos, a patologia social da aversão aos pobres, a aporofobia, entranhada secular na sociedade brasileira, tão bem explicada pela filósofa espanhola Adela Cortina”, diz.
“Se não é a incidência desses fatores, o que explicaria a invisibilidades das pessoas em situação de rua, ao ponto de sequer haver dados estatísticos oficiais sobre esse grupo social? E os recorrentes relatos de violência policial? A despeito da ADPF 976, que trata da implementação da Política Nacional para a População em Situação de Rua, determinando, dentre outras medidas concretas, a vedação do uso abusivo de violência ou força nas abordagens policiais às Pessoas em Situação de Rua”.
O coordenador de Direitos Humanos conclui que “é nesse sentido que a consigna: “NADA PARA NÓS, SEM NÓS” do Movimento Nacional Movimento Nacional da População de Rua, passa a ser uma chave para a superação dos estigmas, da aporofobia e da invisibilidade das pessoas em situação de rua, a partir do momento em que exige dos Poderes Públicos uma capacidade, raramente desenvolvida, para escuta acolhedora dessa população. Portanto, é imprescindível no desenho das políticas públicas para as pessoas em situação de rua, dar conta dessa complexidade, garantindo espaços de escuta, observando as suas interseccionalidades, superando os reducionismos, as simplificações e a fragmentação, tão em voga nos dias atuais, como por exemplo, na proposta miraculosa da internação compulsória”.
SÉRIE ESPECIAL: POLÍTICA DE RUA
Quem está às margens das políticas públicas para a população em situação de rua? O próprio segmento, que enfrenta as graves violações e negligências, enquanto cobra seus direitos? Ou políticos que esquivam-se de debruçar sobre a complexidade dessas políticas e optam por desviar suas atribuições para criar atalhos de higienismo e repressão?
A Mídia Caeté produziu uma série de reportagens sobre o tema, ouvindo poder público e Poprua. Esta foi a segunda reportagem.