O silenciamento sobre temas inquietantes e a tentativa de apagar da história fatos relevantes são a combinação “perfeita” para não problematizar o contexto histórico-social de um Estado e, assim, “naturalizar” situações de injustiça, principalmente as que envolvem preconceito (de todos os tipos). Um exemplo disso é a pouca amplitude do debate acerca do episódio ocorrido há 112 anos, em Alagoas, conhecido como “Quebra de Xangô”, que consistiu uma série de violências cometidas contra os praticantes de religiões de matriz afro; ao todo, mais de 150 terreiros foram destruídos no episódio.
Uma matéria produzida e divulgada no portal de notícias da Universidade Federal de Alagoas (Ufal) sobre o tema, ainda no ano de 2014, explica de forma breve, mas coesa o que foi o Quebra: “foi na noite de 1º de fevereiro de 1912 que o terror se espalhou pelos terreiros de cultos afro-brasileiros em Alagoas. O quebra-quebra foi liderado pela Liga dos Republicanos Combatentes, agremiação política que fazia oposição ao governador da época, Euclides Malta. As invasões, espancamentos e prisões aos praticantes de candomblé, umbanda e outros cultos durou até a madrugada de 2 de fevereiro, quando os praticantes homenageiam as entidades de Oxum e Iemanjá”, explica um trecho do texto.
Uma das figuras mais representativas do evento do “Quebra” foi Tia Marcelina, que – em pesquisas acadêmicas publicadas no repositório da Universidade Federal da Bahia (Ufba) – é descrita como “ africana que teve seu terreiro invadido por um grupo miliciano, foi espancada em 1º de fevereiro de 1912. Além da dor, sua imagem resiste para não ser apagada e preservar o que ficou conhecido como o Quebra de Xangô”.
No meio acadêmico, não é incomum encontrar pesquisas sobre a fatídica noite/madrugada: em uma busca rápida na ferramenta google acadêmico, por exemplo – feita para a elaboração desta matéria – foram encontrados 4860 resultados e apresentados alguns artigos com as seguintes titulações: “O Quebra de Xangô de 1912, uma reflexão histórica”, “Tia Marcelina, a negra da costa, e as memórias do Quebra de Xangô de Alagoas”, entre outros documentos em pdf que podem ser acessados gratuitamente pelo link https://scholar.google.com.br/scholar?hl=pt-BR&as_sdt=0%2C5&q=quebra+de+xang%C3%B4&btnG=.
Assim, dizer que o tema não é pesquisado seria inverídico, no entanto, apesar disso, para os dois pesquisadores entrevistados nessa reportagem, o antropólogo e professor universitário da Ufal, Siloé Amorim, e o professor de história, Célio Rodrigues (mais conhecido como Pai Célio), ainda falta uma maior conscientização sobre as consequências do evento para a sociedade alagoana e a popularização deste debate para além da academia.
O passado que ainda se reflete no presente: em 2023, AL registrou a abertura de 9 inquéritos para apurar crime de intolerância religiosa
A Delegacia Especial dos Crimes contra Vulneráveis, chamada “Yalorixá Tia Marcelina”, foi inaugurada em Alagoas no dia 24 de agosto de 2022 e é comandada pela delegada Rebecca Cordeiro, que trata de crimes cometidos contra dosos, pessoas com deficiência, quilombolas, comunidade LGBTQIA+, adeptos de religiões de matriz africana, indígenas, entre outros; ela explica que no ano de 2023, foram registrados 9 inquéritos para investigar possíveis crimes de intolerância religiosa: “as denúncias podem ser feitas pelo 181 ou disque 100, mas terão mais efetividade se registradas em Boletim de Ocorrência, porque esses vem direto para a Delegacia”.
Para combater ests tipo de preconceito, em território nacional, algumas medidas vêm sendo tomadas ao longo dos anos, como a criação da Lei Federal nº 11.635, de 2007, que institui o Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa. Além disso, no próprio Código Penal Brasileiro – de 1940 – é lido no artigo 208 que “escarnecer de alguém publicamente, por motivo de crença ou função religiosa; impedir ou perturbar cerimônia ou prática de culto religioso; vilipendiar publicamente ato ou objeto de culto religioso” culmina em pena de “detenção, de um mês a um ano, ou multa. Parágrafo único. Se há emprego de violência, a pena é aumentada de um terço, sem prejuízo da correspondente à violência”.
Apesar disso, não é tarefa difícil encontrar entre os praticantes de religiões de matriz afro quem já tenha experimentado a violência em decorrência da prática de sua fé; muitas vezes, como é possível visualizar nos depoimentos dos entrevistados para esta reportagem, o preconceito é velado, mas ainda assim doloroso e notório.
Praticantes de religiões de matriz afro refletem sobre suas trajetórias na fé e narram situações em que foram vítimas de intolerância religiosa
O adestrador de cães Henrique Camilo conta que desde a infância está inserido na Umbanda. “Desde que eu me entendo por gente que eu já frequento a umbanda, porque eu era muito pequeno e os meus pais já frequentavam. Na época, a gente morava no Rio de Janeiro e frequentava o Centro Espirita Tenda Mirim, então, eu já ia pra lá, eu e meu irmão, só que no centro tinha uma área onde ficavam as crianças separadas e eu e meu irmão com frequência dávamos um ‘balão’ nesta pessoa para ir ficar olhando a gira. Como eu era pequeno, não tinha noção de preconceito nem nada e, às vezes, em conversa com amiguinhos, os pais deles ouviam e de vez em quando davam uma cortada quando eu falava que era filho de algum orixá, diziam ‘isso não existe, você é filho de Jesus’; já crescido, as pessoas passaram a perguntar se eu pegava espírito ou se eu tinha pacto com o diabo”, disse
Também em entrevista para a Mídia Caeté, Pai Célio – que ainda é professor de história – fez questão de não apenas compartilhar suas vivências na religião, mas de rememorar que Alagoas já passou por “muitos quebras”. “Eu posso afirmar pra você que o Quebra de Xangô não foi um episódio isolado, eu tenho defendido que AL teve vários ‘quebras’, cito, por exemplo, o ano de 1695, no qual tivemos a extinção do Quilombo dos Palmares; 1817, que resultou na separação de Alagoas e Pernambuco; 1912 – no em que de fato ocorreu o episódio do Quebra, depois o período ditatorial de Getúlio Vargas o outro o período de militares; então, esses foram os quebras institucionais. Isso vai forçar e reforçar a discriminação racial e contra as religiões de matriz afro”, explicou.
Nascido e criado dentro de um terreiro (a casa de Iemanjá), Pai Célio defende que o Candomblé é muito mais que uma religião; para ele, o Candomblé é uma tradição: “eu nasci e me criei dentro deste terreiro, que pertencia à minha avó, que veio de Garanhuns; na década de 30, ela monta o terreiro dela aqui, eu sou o segundo neto dela, mas o primeiro pela parte do meu pai. Quando eu atinjo 10, 12 anos, ela lavou minha cabeça na Jurema, daí começam a vir a entidades de Jurema”, diz ele, explicando que a Jurema é um culto à parte, “Jurema não tem nada a ver com candomblé, Jurema é o culto da ancestralidade indígena, não é? Então, a Jurema ela nasce com os espíritos das pessoas que passaram pela terra e que tiveram vida aqui na Terra. Enquanto o candomblé é a energia da natureza, a Jurema está ligada à espiritualidade, então, a base da Jurema é o caboclo, a Jurema é dividida em três seguimentos: o caboclo de Hungria – que é os caboclos de pena, os caboclos antigos, nativos da terra, os caboclos de minas – que foi aqueles que chegaram, os minas da terra e os minas da água; os minas da terra: quem são? São os boiadeiros, os mineiros; os responsáveis pelo alargamento do território brasileiro os minas da água são os marujos, os náufragos, então, todas pessoas que passaram por aqui, o terceiro momento da Jurema , são os caboclos do azeite, que este está dividido entre os mestres e as mestras, os ciganos e etc. Estes foram os degredados, que vieram da Europa para povoar o Brasil, em dois, temos os pretos velhos…Eles tem esse culto estruturado em Alandra, que é uma cidade que fica na divisa entre Pernambuco e Paraíba. Por que Jurema? Porque como era uma cidade pequena, um distrito, cada pessoa que morria era enterrada ali e para marcar, plantavam um pé de Jurema”, explicou.
Pai Célio conta que vivencia diariamente episódios desconfortáveis e vexatórios em decorrência do exercício de sua fé. “Todo dia a gente sofre preconceito. Sempre que saio com roupa de axé, noto que há pessoas que não querem sentar perto de mim no ônibus, por exemplo, ou se entro e uma loja, com as vestimentas observo que os vendedores evitam me atender”, pontuou.
Dentro das instituições governamentais, não é diferente: “uma vez fui a uma Secretaria daqui e eu me apresentei à recepcionista como Pai Célio, daí vi quando ela pegou o telefone e ligou par o superior e disse ‘tem um Célio querendo falar aqui com você”, narrou, demonstrando, logicamente, a indignação com o momento. As histórias que envolvem o preconceito são muitas e, mesmo que anos passem, continuam “frescas” na memória de Baba Omitology (nome pelo qual é conhecido dentro do candomblé).
Para aprender mais sobre o “Quebra de Xangô”: um compilado de obras literárias, músicas e audiovisuais que abordam o tema
Ao buscar sobre o tema “Quebra de Xangô” na internet, uma das primeiras fontes a serem encontradas é o documentário “Quebra de Xangô”, de 2007, idealizado e produzido pelo antropólogo e professor universitário Siloé Amorim. O documentário (disponível gratuitamente nas redes sociais) conta com 54 minutos e traz depoimentos importantes de pesquisadores do tema.
Em entrevista à Mídia Caeté, Siloé afirma ter encontrado dificuldades em gravar com pessoa ligadas a figuras importantes da época, como os familiares do ex-governador Euclides Malta. “Eu estava no doutorado e parei o doutorado um ano para fazer esse filme, foi um trabalho de buscar pais e mães de santo que tinham um contato com o Quebra e a Tia Marcelina. Ainda eram informações muito veladas”, disse ele.
“Foi muito difícil. A elite alagoana não tem um interesse de se aproximar do tema. A partir das gravações, os depoimentos, que envolviam falas de pessoas relacionadas a Fernandes Lima, Euclides Malta não queriam se pronunciar”, contou Siloé.
À época do Quebra de Xangô, Euclides Malta era o então governador de Alagoas e tinha como oposição a Liga dos Republicanos, cujo um dos principais representantes era José Fernandes de Baros Lima – mais conhecido como Fernandes Lima – que é apontado como um dos principais responsáveis pela violência aos terreiros de candomblé.
Outra fonte de informação valiosa sobre o episódio, é o livro Xangô Rezado Baixo: Religião e Política na Primeira República – escrito por Ulisses Neves Rafael, no ano de 2013.
Já na música, é possível contemplar canções sobre o tema do grupo Tequila Bomb em um feat com o Treme Terra.