A psiquiatra que revolucionou o tratamento de saúde mental no Brasil, expoente da terapia ocupacional e da luta antimanicomial, Nise da Silveira, teve sua vida e obra historicizadas em livros, filme premiado e documentário, além de pesquisas acadêmicas. Seu nome está na placa de diversas instituições e na bandeira de organizações e movimentos sociais em todo o país, sobretudo na área da saúde.
No entanto, vejam só, para o presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, não é possível “avaliar a envergadura dos feitos da médica e o impacto destes no desenvolvimento da nação”. Foi essa a justificativa que ele conseguiu trazer para vetar o projeto de lei que pretende incluir o nome de Nise no “Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria” além de acrescentar a “falta de interesse público”.
Apesar da incapacidade de avaliação do presidente, há uma riqueza de registros que demonstram – com ou sem livro – o lugar da médica na história do país. Antes de Nise, o tratamento psiquiátrico era conduzido quase que exclusivamente através de internamentos em hospício, a partir de práticas hoje consideradas como tortura, a exemplo da lobotomia, coma insulínico (tratamento repetido com dose exacerbada de insulina para indução de comas diários durante várias semanas) e do eletrochoque. Refutando qualquer uma destas “técnicas”, Nise colocou o ateliê dentro do campo da terapia ocupacional, reconhecendo as pessoas com transtorno mental em sua completude enquanto indivíduos, uma humanização engrandecedora que encontrou arte e artistas onde ninguém esperava.
Se a ideia de Jair era invisibilizar ou, no mínimo, pormenorizar o nome da psiquiatra alagoana, pode-se dizer que o intento não deu certo. Nise foi assunto nos principais portais de notícia do país e também nos de Alagoas. Desde as notícias mais prolongadas às mais apressadas, todas deram conta de incluir de alguma forma a contribuição de Nise ao país. O assunto esteve entre os 16 mais pesquisados no Google na última quarta-feira, 26. Por fim, o posicionamento refutando o veto do presidente foi visto nas redes sociais de diversas figuras públicas, incluindo políticos com perspectiva ideológica oposta à da psiquiatra.
Aliás, cabe ressaltar ainda que Nise da Silveira não está “para além” das ideologias. São as ideologias que compunham toda a contribuição com a qual alicerçou suas revoluções no país, incluindo a perspectiva da assistência humanizada. Formada em 1931 na Faculdade de Medicina da Bahia, a alagoana foi a única mulher entre 158 estudantes na turma. Atuou em clínicas e hospitais no Rio de Janeiro, até ter sido denunciada por uma enfermeira durante a ditadura de Getúlio Vargas, por integrar o então Partido Comunista Brasileiro, e presa durante 18 meses.
André Bernarth, em um artigo para a Veja Saúde, resgata um trecho do próprio Graciliano Ramos em sua obra “Memórias do Cárcere”, quando fala sobre Nise: “Lamentei ver a minha conterrânea fora do mundo, longe da profissão, do hospital, dos seus queridos loucos. Sabia-se culta e boa. Rachel de Queiroz me afirmara a grandeza moral daquela pessoinha tímida, sempre a esquivar-se, a reduzir-se, como a escusar-se a tomar espaço.”
Em 1944, Nise deixava a clandestinidade e começava a trabalhar em um hospital psiquiátrico no Rio de Janeiro. Foi lá que Nise confrontou os tratamentos psiquiátricos existentes, entregando a pacientes telas e pincéis. As obras, entre pinturas e modelagens produzidas de 1946 a 1952, estão ancoradas até hoje no Museu de Imagens do Inconsciente. Em 56, também, Nise construiu a primeira clínica psiquiátrica em regime de externato, a Casa das Palmeiras. Finalmente também publicou as obras Imagens do Inconsciente (1982) e O Mundo das Imagens (1992).
Se depender de repercussão pública, a pauta que – já havia sido aprovada em Senado e Câmara-, agora retorna ao Senado derrubando o veto de Bolsonaro, e dando a Nise o que é de Nise: seu lugar de heroína também neste registro perpétuo. Se ainda assim não vingar, não faltarão homenagens e reconhecimentos que perdurarão e já demarcam seu nome na história do país no que diz respeito à saúde mental. E, afinal de contas, ter sido renegada por um sujeito que homenageia torturadores pode ser considerado também, à memória de uma heroína, um grande elogio.