Uma das orientações que mais martela nosso juízo, na escrita de um texto, trata-se evitar frases que já se tornaram clichês e usarmos a criatividade para dizer de maneiras diferentes os mesmos conteúdos. Não há como buscar atalhos para esquivar desse problema: qualquer das técnicas mais eficazes passará por muita leitura, diálogo, disposição para sentir e ouvir as descrições do mundo. É um esforço que buscamos cumprir com atenção genuína. No entanto, hoje, será uma regra que fazemos questão de quebrar.
Escolher uma frase que diz o óbvio também pode guardar significados profundos para que seja urgente revirá-la. Se “o lugar de mulher é onde ela quiser”, como fica seu querer quando as conjunturas apertam e, como lembra Simone de Beauvoir, em mais uma clássica, os direitos das mulheres são os primeiros a serem questionados?
A crise que se traduz em dados: o quanto as mulheres, e ainda mais especificamente as mulheres negras, foram as mais afetadas no desemprego, na perda da renda, no abandono escolar e na percepção do aumento da violência de renda. O estudo de caráter mundial foi publicado pela revista científica The Lancet.
Quando falamos do Brasil, o desemprego entre mulheres chegou a 17,9% e mesmo sua recuperação – ao longo de 2021 – não foi sentida na mesma velocidade. No segundo trimestre, foram 3,1 milhões de mulheres que desistiram de procurar emprego somando a cota de desalentadas. O desalento não significa, inclusive, ausência de trabalho – mas ausência de trabalho remunerado. Isso porque metade das mulheres passou a cuidar de uma outra pessoa durante o período de isolamento.
Se as condições colocaram algumas delas em situação de trabalho com cuidados integrais a idosos, crianças ou outros familiares, em outros casos, essa ocupação também se somava a diversos outros trabalhos formais ou informais, precarizados, trazendo à tona a exaustão de jornadas triplas. É assim que o dossiê do “trabalho invisível” especifica essa condição: 75% do trabalho de cuidado não remunerado é feito por mulheres e meninas. A pobreza que explodiu no país desde 2019 é o enfrentada mais diretamente principalmente pelas mulheres chefes de família, que no país hoje estão na maioria das configurações familiares.
Ao mesmo tempo, acompanhamos uma realidade de dependência econômica e de fatores sociais, culturais e emocionais que operam tantas outras dependências a indivíduos ou estruturas familiares violentas. O machismo explode em casos de violência doméstica e as saídas apresentadas são limitadas, a despeito de um esforço tremendo de grupos de mulheres, entre ativistas, servidoras públicas engajadas e inseridas nos lugares estratégicos. O recorte vai ainda mais extremo quando trazemos mais à tona a realidade das mulheres negras e trans.
Não é notícia nem novidade. Além do mais, esses dados e realidades muitas vezes são acompanhados de um clichê causador do caos: “A crise”. De repente, não é o patrão que age sobre assédio e exploração, não é o político que negligencia direitos ou constrói projetos de lei que agride diretamente as mulheres; não é o discurso midiático e de empresas que lucram reproduzindo padrões estéticos que agem diretamente contra a saúde das mulheres; não é, por fim, o marido, não é um companheiro ou homem que age sobre a violência. Sequer tem nome próprio quem endereça as mulheres a lugares tão pouco dignos.
É “a crise”, denominam, enquanto costuram mais alianças que enriquecem muito pessoalmente os 0,5% de brasileiros que concentram 45% do PIB. É a “crise” que não é para todos, tão sentida concretamente nas mulheres que compõem 70% de quem passa fome no mundo, e que afeta 74% de lares chefiados por mulheres no Brasil – maioria delas negra e de baixa escolaridade. É a “crise” que permite a manutenção das condições ou seu aumento, por ser muito pouco responsabilizada, enquanto protege com sua abstração quem causa, explora e se beneficia por ela.
É por isso que as faixas, bandeiras, cartazes e muralismos, que trazem à tona estas mesmas frases, seguem tão importantes enquanto persistem os problemas. O enfrentamento continua a partir de mulheres que hoje se articulam e vão às ruas nos dias de hoje, dando nome aos agentes causadores, de Brasília a Alagoas, enquanto constroem no cotidiano de suas comunidades, seja no campo ou na cidade.
Uma articulação de forças que busca as soluções, autodefesa, solidariedade, autonomia financeira e o ataque cirúrgico a quem promove e constrói a desigualdade brutal de gênero, raça e classe – de Brasília a Alagoas. Lugar de mulher é onde ela quiser. E, diante de um contexto tão perverso, importante demais que esse lugar seja as ruas.