Resumo
Não é estranho visualizar que a Associação Brasileira de Odontologia (ABO-AL) experimenta um pesadelo três anos após a eleição da chapa “ABO – Sonho do Recomeço” em Alagoas. Na última quarta-feira (27), um grupo de 67 odontólogos protocolou uma ação na justiça alagoana para anular a permuta da sede da entidade, localizada no bairro de Mangabeiras, por dois imóveis no Farol, além de uma quantia de R$ 4,3 milhões.
O imóvel onde a ABO-AL está instalada é fruto de uma doação do Município de Maceió. Como costuma ocorrer nesses casos, quem recebe o imóvel precisa cumprir uma função de interesse público. Além disso, o poder público impõe condições mais rígidas para uma futura negociação do bem, resguardando a coisa pública e a própria sociedade.
O caminho para bem dispor do imóvel recebido não costuma, portanto, ser fácil. No caso da ABO-AL, a Câmara Municipal de Maceió aprovou a Lei 5.348, em 2003, complementando doação da área do terreno que não havia sido contemplada na primeira oportunidade, em 1978. Em 2004, quando a nova doação foi registrada em cartório, uma cláusula de inalienabilidade passou a constar na escritura, ou seja, as condições estabelecidas na legislação da doação precisariam ser cumpridas para uma posterior retirada da cláusula e negociação do imóvel. De acordo com os autores da ação, não bastava a construção de 12 consultórios para atendimento ao público.
“Essa área foi doada ao município por meio de uma lei, e ela tem alguns encargos e obrigações que a ABO teria de cumprir por ter recebido de graça esse terreno. Uma das obrigações a que ela está sujeita é de atender pessoas carentes, fazer um trabalho de cunho social. O que a gente questionou nessa ação foi o seguinte: se tivesse qualquer tentativa de venda, seria obrigação da ABO comprovar que nenhum tipo de trabalho como esse seria comprometido”, pontuou o advogado Fábio Lima, representante dos 67 odontólogos na ação.
Esse não foi o entendimento do município de Maceió. Em outubro de 2020, o presidente da ABO-AL, Thiago Muritiba, ingressou com um processo administrativo informando o desejo de venda da atual sede para aquisição de uma nova. Para isso, precisava que a prefeitura retirasse a cláusula de inalienabilidade sobre o imóvel, que estava impedindo qualquer negociação. A Procuradoria Geral do Município entendeu que o movimento seria possível, solicitando que a associação comprovasse apenas a construção dos 12 consultórios. Após a prestação de informações, o prefeito Rui Palmeira cancelou a cláusula que recaía sobre o imóvel. A autorização do prefeito foi publicada no Diário Oficial em 01 de dezembro.
Assembleia para negociação do imóvel sob suspeita
Livre do encargo que impedia a negociação da sede, o presidente Thiago Muritiba poderia, enfim, seguir com os trâmites internos. De acordo com o Estatuto da ABO-AL, o caminho para tomar qualquer decisão acerca de uma mudança de imóvel exige um quórum de 2/3 dos associados em assembleia extraordinária. Além disso, a convocação precisaria ser feita em um jornal de grande circulação.
Cumpridas as formalidades, a assembleia da ABO-AL foi realizada no dia 10/11/2020. O problema é que diversos membros da diretoria não foram comunicados da assembleia, segundo o advogado Fábio Lima.
“Ele fez as publicações, as formalidades, ocorre que, hoje em dia, essa publicação de jornal é totalmente anacrônica, ninguém para para ler essas publicações em jornal impresso. Esse edital de convocação passou batido. O presidente não avisou a nenhum dos integrantes da diretoria que não eram ligados a ele: a vice não soube, o secretário-geral [não soube], o diretor de patrimônio [não soube]. Essa criação da assembleia foi feita na surdina. Ele sequer circulou essa assembleia nas redes sociais da ABO. Não publicou em Instagram, não publicou no Facebook, nos grupos de Whatsapp. Só cumpriu com a legalidade do estatuto de publicação do edital e imagino que ficou torcendo para as pessoas não tomarem conhecimento”, afirmou o advogado.
O diretor de patrimônio da ABO-AL, Marcílio Moreira, revelou que em nenhum momento foi comunicado da assembleia e que no ano de 2020, nas poucas reuniões realizadas, todas envolveram somente temas voltados ao funcionamento dos cursos realizados pela associação. Ele conta ainda que, nos últimos tempos, foram solicitadas prestações de contas ao presidente.
“Nesses dois anos, várias vezes foram solicitadas prestações de contas. Ele não prestou. Pegou uma instituição com R$ 150 mil em positivo e disse agora em reunião que está com R$ 500 em negativo. Não foi feita a prestação”, queixou-se Marcílio.
A publicidade dada à assembleia não seria o maior dos problemas. Existe a alegação de que somente 23 pessoas participaram do encontro, quantidade distante do que seria exigido pelo estatuto. O advogado Fábio Lima acrescenta que boa parte dos presentes sequer souberam da negociação da sede na reunião. Assim, também teria ocorrido um crime.
“O que ele fez? Pegou a assinatura de 23 pessoas e anexou também uma lista de 33 adimplentes. Fazendo a interpretação com o artigo da assembleia geral, somou as duas listas para chegar aos 2/3 O que acontece? Essa que é a grande fraude e que está o cometimento do crime. Quando recebemos a ata, a gente viu que os odontólogos conheciam pessoas que estavam na ata. Dessas 23 pessoas, tenho a declaração de nove delas, com firma reconhecida em cartório, que elas não votaram favoravelmente à venda nem tomaram conhecimento do negócio que tinha sido praticado com a construtora, que é justamente o contrário do que diz a ata. Então aí a gente está diante de um crime de cometimento de falsidade ideológica. De posse dessa documentação, fomos até a delegacia na quinta-feira informando do cometimento desse crime”, pontuou Fábio.
A ata da assembleia informava da troca da sede atual da ABO-AL por dois imóveis localizados no bairro do Farol e R$ 4,3 milhões pagos em prestações. A permuta seria realizada com a Construtora RPontes. O advogado Fábio Lima se reuniu com representantes da construtora e disse não ter vislumbrado má-fé, razão pela qual a RPontes não figura entre os réus.
A Mídia Caeté entrou em contato com o advogado da RPontes, Marcos Loureiro. Ele assegurou que a construtora mantém uma posição de neutralidade e aguarda os desdobramentos. Além disso, reiterou que não houve qualquer interferência nas decisões internas da ABO-AL.
“A construtora agiu em total boa-fé. Ela foi procurada por um corretor, com ele dizendo que a sede estava à venda. Eles [ABO e corretor] discutiram entre eles o valor e aí foi feita a proposta, e ela estava condicionada à venda ser aprovada na assembleia. Ele [corretor] passou para a gente depois que a assembleia tinha sido realizada e aprovada. Antes, inclusive, de a gente dar qualquer passo de titulação e transferência a gente foi surpreendido por isso que aconteceu. A gente está aguardando para ver como isso vai continuar. Para a construtora, ela estava adquirindo um bem como qualquer outro. A construtora tem 30 anos de mercado e reputação completamente ilibada”, afirmou Marcos.
Juiz suspende qualquer negociação envolvendo o imóvel
Atualmente, o processo judicial promovido pelos odontólogos e membros da ABO-AL tramita na Vara da Fazenda Municipal (14ª Vara), tendo como réus a própria ABO-AL e o Município de Maceió. Na última sexta-feira (29), o juiz responsável pelo caso, Antônio Emanuel Dória Ferreira, decidiu em liminar que qualquer negociação sobre o bem seria precipitada no momento, determinando a suspensão até que o processo chegue ao fim.
Com base nas informações apresentadas na petição inicial, o magistrado entendeu também que a quantidade de 23 presentes não seria suficiente para alcançar os 2/3 necessários para deliberar sobre a negociação da sede. Achou curiosa a declaração de pessoas que estavam na assembleia e disseram não ter tomado conhecimento de nenhuma negociação sobre o bem. Sustentou que não foi observada a prestação contínua de serviços no momento de retirada da cláusula de inalienabilidade, apenas a construção dos 12 consultórios. Por fim, cobrou esclarecimentos do Município de Maceió sobre as alterações nos termos da doação não terem sido realizadas também por lei, mas por ato do prefeito Rui Palmeira.
Agora, o Município de Maceió e a ABO-AL terão a oportunidade de falar e se manifestar no processo. Depois, os autos serão encaminhados para parecer do Ministério Público, tendo em vista a existência de interesse social na controvérsia.
O outro lado
A Caeté entrou em contato, por telefone, com o presidente da ABO-AL, Thiago Muritiba. Sobre a alegação de que não bastava a construção dos 12 consultórios para a retirada da cláusula de inalienabilidade, ele entende que todo o rito administrativo foi seguido.
“Não houve desvio de finalidade. O ato jurídico em si foi perfeito, segundo a assessoria jurídica”, afirmou Muritiba.
Em relação ao quórum necessário para a deliberação sobre mudanças na sede, Thiago afirmou que “houve quórum e todos os requisitos que constam no Estatuto da ABO-AL foram mantidos”.
A respeito da alegação de que nove pessoas presentes na assembleia não teriam sido informadas da negociação da sede, Muritiba sustentou a versão descrita na ata da assembleia.
“Eu não tenho conhecimento do desconhecimento deles. Eles estavam presentes e assinaram a frequência”, pontuou.
Por fim, Muritiba explicou que diversos eventos têm atrapalhado a ausência de prestação de contas.
“A gente está em vias de trâmites. Houve duas substituições de contadores, a pandemia também atrapalhou porque passamos quase oito meses sem ninguém frequentando a associação e isso atrapalhou os trabalhos. Isso está sendo providenciado para o conselho fiscal avaliar”, explicou.
A versão da Prefeitura de Maceió
A reportagem procurou a Prefeitura de Maceió para um posicionamento, mas, até o momento, não houve retorno. O espaço segue aberto.