Onde está a esquerda árabe-brasileira? Iniciando o debate.

Por: Bruno Beaklini (Bruno Lima Rocha Beaklini) e Rafael Costa (ilustrador, não é descendente, apoia a Causa Palestina)

 

Ilustração: Rafael Costa

Esse artigo inicia uma série trazendo um dilema e uma convocatória. Na verdade, um apelo. Mas antes de ousar chamar ao dever brimos e brimas, é necessário um debate, larga reflexão eu diria. A pergunta me atormenta há décadas e realmente é complexa. Eis a questão:

“Porque temos uma gigantesca colônia árabe-brasileira, incluindo o conjunto de árabes descendentes e não se organiza uma fração desta base social como apoiadora incondicional da libertação da Palestina?”

Quem somos e como chegamos

Isso porque, segundo alguns números apurados, seríamos mais de 11 milhões de pessoas no país, outros indicadores apontam um montante de cerca de 16 milhões no Brasil. Em boa parte das vezes se trata de famílias muitas vezes com forte trajetória na política profissional, carreiras em profissões consolidadas e ainda assim isso não reverte em envolvimento na Causa da Unidade Árabe e nem na Libertação da Palestina. Por quê?

Uma das “razões” alegadas poderia ser o sentido de pertencimento e posição na pirâmide social brasileira. Como somos socialmente brancos, no Brasil, a condição de árabe fica secundária diante da estrutura racista e de herança escravocrata da sociedade. Isso está até na gênese de nossa imigração. O Imperador Escravagista Dom Pedro II aprende a falar o idioma do profeta, vai ao Líbano encantado com uma população francófila, que se dizia fenícia e tinha como sistema de crenças ritos cristãos do Oriente Médio. Especificamente, a maior migração árabe para o Brasil vem de famílias libanesas de credo maronita (católicos maronitas) e que era uma parcela da população da então Grande Síria que, por sinal, era muito mal vista pelos governantes otomanos. O período histórico é complicado. Se dá antes do protetorado francês, etapa intermédia da libertação do jugo otomano decadente e de se livrar da opressão da França alcançando a independência formal, a maior leva de árabes chega ao Brasil.

Aqui chegando, nos anos derradeiros do Império e ainda na primeira fase da República Velha, nossos patrícios e patrícias se depararam com um ambiente muito hospitaleiro. Como a sociedade é racista, mas não é sectária – ou seja, permite o casamento inter-étnico, estavam dadas as condições ideais de assimilação e escalada de posições na pirâmide social. As famílias árabe-libanesas se viram em um país de dominação branca e católica, justamente o duplo papel social que nossos antepassados poderiam exercer. Enquanto isso no Oriente Médio, a Ummah de direção otomana chegava ao fim e a ascensão dos poderes europeus era visto como a chegada modernizadora e ofensiva dos novos cruzados. Era e continua sendo.

Entre o arabismo unificado e o amálgama na pirâmide social ascendente

A chegada dos e das imigrantes foi concomitante ao nascimento, a expansão do nacionalismo pan-arabista. No período histórico aproximado, começando em 1880 e tomando vulto nos cinquenta anos seguintes, a Nação Árabe projetava no arabismo o elemento unificador que poderia unificar todos os segmentos pré-islâmicos e das vertentes arabizadas, portadora do idioma árabe como língua franca e as massas islamizadas do Mundo Árabe. Por este prisma do nacionalismo pan-árabe, árabes somos – seríamos – todos, incluindo hebreus mizrahim, drusos, todas as vertentes cristãs do Oriente Médio, as formações culturais pré-islâmicas assim como as massas islamizadas, sunitas, xiitas e sufis, dentre outras linhas minoritárias. Também são “árabes” as populações do Magreb, primos e primas camitas, assim como o povo berbere, heroico na libertação contra a presença francesa na Argélia. De fora poderia haver unidade, usando um instrumento político do inimigo europeu, o nacionalismo moderno, como ferramenta de libertação contra a cobiça da corrida imperial pré e pós 1ª Guerra Mundial. Concomitantemente, se davam as bases da Nakba com o Mandato Britânico na Palestina.

Infelizmente, os grandes debates, os alinhamentos e porque não as tragédias históricas dos árabes, sendo a maior destas a perda da Palestina para invasores europeus, não chegaram a circular na maior parcela da segunda e terceira geração de árabes-brasileiros. Concomitantemente, a geração de mascates se assentava em municípios de mediana prosperidade e já juntavam suas economias de modo que a primeira geração nascida no país tivesse acesso ao ensino superior, fator fundamental para a mobilidade em uma sociedade altamente estratificada. Vale observar que como colônia, as famílias “turcas”, o odiado apelido que era dado pelos nacionais quando os patrícios chegaram com passaporte otomano, se mesclavam bastante.

Não é à toa que os elementos de origem árabe estão presentes nas zonas “proibidas” na 1ª República, nas periferias das Grandes Cidades, indo do bazar ao comércio varejista, e também passando por posições complicadas, como nas famílias do jogo do bicho. Por um lado, contribuímos e muito para a formação do Brasil. Como árabe-descendentes, somos muito, mas muito brasileiros, ao menos no viés mais popular na formação contemporânea de nosso país. Por outro, a ausência de uma etnia mais aguerrida do portão de casa para fora, nos diluiu de modo a conseguir reproduzir os papeis sociais com excelência, mesmo quando na excrescência como na atuação de pessoas muito controversas como Paulo Salim Maluf, Michel Miguel Elias Temer, Salim Mattar, Naji Nahas, Alberto Yousseff, Anísio Abrão David, Antônio Petrus Kalil, Romeu Tuma, Nabi Abi Chedid, Ali Kamel e a lista segue, para vergonha dos e das árabes e desespero da esquerda que ainda não existe. Não é exclusividade nossa, haja vista a presença execrável de personagens árabe-argentinos como Carlos Saul Menem e Alfredo Yabrán, dentre outros.

Nossas instituições culturais, onde estão?

Talvez a pista para sabermos onde estão nossas bases étnicas mais aguerridas deve ser na ausência de instituições culturais para além de algumas igrejas e clubes sociais. A capacidade de reprodução de valores, cultura estratégica e porque não, referentes da simbologia política definitivamente não se localizam nem em epopeias à altura de Simbad como o Campeonato Mundial de Basquete FIBA conquistado pelo Esporte Clube Sírio no ginásio do Ibirapuera em 06 de outubro de 1979 (com televisionamento ao vivo, veja o jogo completo aqui: https://www.youtube.com/watch?v=pkCilEH7rxY) com o vice-campeonato de 1981 (assista aqui: https://www.youtube.com/watch?v=g4Pf6sU72e4) e ambos antecedidos pelo segundo lugar no mesmo mundial FIBA em 1973, todos realizados em São Paulo e com mais de vinte mil pessoas gritando “Sírio, Sírio”, em plena Guerra do Yom Kippur! No título de 1979, com o Líbano já invadido e o conflito árabe-israelense no seu auge, dos treze jogadores eram três de origem árabe, incluindo o craque pivô da seleção Marquinhos Abdalla (Marcos Antônio Abdalla Leite). Faltou trabalhar a massificação dos signos transformando em simbologia política e elementos agregadores. Sírio, Súryia, Brasil. As condições simbólicas e afetivas estavam dadas, até a temporalidade política, com o famigerado Paulo Salim Maluf governador de São Paulo e apoiador das Forças Libanesas – em especial da direita cristã do Líbano – aliada histórica da França, dos EUA e dos invasores israelenses.

O caminho estava aberto, com a revolução palestina ainda peleada além dos rios, o Líbano como epicentro do Oriente Médio e Beirute vindo a ser a Stalingrado dos árabes. Seguiremos no tema e na mesma senda, defendendo incondicionalmente a Libertação da Palestina, a Independência e Autodeterminação do Líbano e o Confederalismo Democrático como única saída para o Oriente Médio. A versão original desse texto foi publicado primeiramente no Monitor do Oriente Médio (monitordooriente.com)

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