Habemus esperança. Depois de um 2020 repleto de incertezas, desinformação e apreensão – no último domingo – a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) autorizou o uso emergencial das vacinas Coronavac e Astrazeneca/Oxford. Agora, finalmente, o processo de imunização começou – com muito atraso – no Brasil.
Em Alagoas, as primeiras pessoas começaram a ser vacinadas na terça-feira (19), em uma primeira fase que prioriza profissionais da saúde que estão na linha de frente, indígenas aldeados e idosos com mais de 75 anos e institucionalizados com mais de 60.
Mesmo com esse enorme motivo para celebrar, ainda há quem critique e desacredite na eficácia dos imunizantes. Quase sempre por questões ideológicas ou somente para não ter que dar o braço a torcer e sair de uma posição defendida desde o início da pandemia.
Nesse cenário, a bióloga e integrante do Observatório Covid-19, Flávia Ferrari, reiterou que devemos investir na conscientização para lutar contra o negacionismo. “Vimos que precisávamos fazer uma coisa conjunta de convencimento da população e a necessidade de estourar a bolha”, afirmou em entrevista ao El País Brasil.
Embora todas as evidências apontem que a população deva ser imunizada, o vereador de Maceió, Leonardo Dias (PSD), apresentou um Projeto de Lei (PL), que pretende “assegurar o direito” de que os cidadãos maceioenses possam decidir se serão vacinados ou não.
De acordo com ele, o intuito é garantir a liberdade individual das pessoas de escolherem se serão submetidas à vacina. Dias argumenta que ainda existe uma insegurança em relação aos imunizantes e que o povo tem o direito de esperar sem sofrer retaliações do Estado.
“Muito embora a disponibilização da vacina seja uma grande vitória, ainda restam dúvidas sobre possíveis efeitos colaterais conforme apontado pela Anvisa durante a autorização por uso emergencial. Por conta disso, entendo ser fundamental que cada cidadão decida por si próprio se deve ou não ser vacinado. O Projeto de Lei vem proteger aqueles que entendem ser necessário aguardar o momento da vacinação para uma oportunidade mais segura”, afirmou o vereador.
O vereador Leonardo Dias completou dizendo que é preciso garantir a liberdade individual de cada um. “O projeto de lei impede que o Executivo possa vir a tentar restringir que pessoas tenham seus direitos suprimidos, como a livre circulação em estabelecimentos ou ainda que não tenham acessos a serviços públicos e privados por terem decidido não se vacinar”, disse.
Para a cientista política, doutoranda pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e pesquisadora vinculada ao Observatório da Justiça Brasileira (OJB), Augusta Teixeira, o PL proposto pelo vereador é um desserviço diante do cenário que a Covid-19 trouxe, uma vez que endossa um discurso anti-ciência e contribui para a desinformação.
“Essa discussão sobre se vacinar ou não é descabida, além de inconstitucional, pois fere os direitos de Saúde Coletiva. Não faz sentido imunizar uma parcela da população enquanto alguns escolhem não se vacinar. Houve um investimento massivo, no mundo inteiro, para a produção de uma vacina, enquanto víamos campanhas para utilização de medicamentos que não tinham comprovação científica nenhuma”, afirma a pesquisadora.
O professor, coordenador de Pesquisa e Extensão da Sociedade de Ensino Universitário do Nordeste (Seune-AL) e especialista em Direito Constitucional, Claudemir Cardoso, reforça a inconstitucionalidade do projeto de lei, lembrando que a iniciativa gera uma ofensa direta ao direito coletivo à saúde.
“O que temos de mais grave é a ofensa ao direito à saúde, que é sim visto sob a perspectiva individual, mas precisa também ser observado sob a esfera coletiva. A questão da saúde pública ganhou proporções globais com a pandemia. Esse PL afeta diretamente a concessão e a consecução desse direito específico”, afirma Claudemir.
E conclui: “A campanha de vacinação não vai abranger inicialmente todo mundo. Se ainda existirem obstáculos para a imunização, haverá um grande prejuízo à saúde da maioria.”.
A cientista social Augusta Teixeira diz ainda que esse tipo de proposição somente endossa o discurso anti-ciência do Governo Federal.
“É um PL alinhado a um discurso ignorante, egoísta e com fins apenas de confirmar apoio ao presidente, que – durante toda a pandemia – teve posicionamentos irresponsáveis, com um discurso completamente retrógrado. Não há ganhos para a população diante dessa mesquinhez. Pelo contrário, isso compromete a eficácia da vacinação.”, frisa.
O especialista em Direito Constitucional segue a mesma linha. “Esse e outros projetos são formas bem claras de se utilizar da legislatura para tumultuar o ambiente. A ideia é criar um clima cada vez maior de incerteza na população, já que não há informação divulgada de maneira ampla e precisa pelo Ministério da Saúde. O objetivo é deixar as pessoas desinformadas.”
O professor Claudemir Cardoso refuta ainda o argumento de Leonardo Dias (PSD) sobre a liberdade individual de escolher ser vacinado. Segundo Cardoso, a liberdade individual existe, não será perdida e deve ser respeitada, porém ela tem limites e consequências.
“A principal preocupação – numa perspectiva maior – é prejudicar o direito à vida, uma vez que mais de 210 mil pessoas já morreram devido à Covid-19 e à conduta negacionista e desastrosa de setores públicos. Essa proposta é totalmente desnecessária, pois as pessoas não serão forçadas a se imunizar, mas, ao não se vacinarem, deverão estar conscientes de que podem sim sofrer consequências, que são plenamente legais, legítimas e constitucionais.”, explica.
Augusta Teixeira crê que esse tipo de discurso reforça a cisão social e agrava uma onda de ignorância vigente
“Não faz sentido ter investimento em ciência, tecnologia e informação quando, num momento em que temos comprovação de eficácia, o presidente e outros políticos que o apoiam trazem propostas contraproducentes como essa. Isso apenas gera negacionismo e polarização, que muitas vezes são reforçados com um baixo grau de instrução por parte da população.”
E finaliza ressaltando que a melhor forma de lidar com o negacionismo é expondo e refutando inverdades com argumentos científicos e pontua que o caminho para a anti-ciência está dentro da própria ciência: com maior investimento, melhorias tecnológicas, reconhecimento aos profissionais e o diálogo entre a comunidade científica e a sociedade.
“Não há como um argumento de senso comum ser mais valorizado que o conhecimento científico, que passa por tantas e tantas etapas para se comprovar e está constantemente à prova pelos pesquisadores. Agora, estamos percebendo a diferença que faz o investimento em ciência e tecnologia. Cabe a continuidade e a expansão desse investimento, principalmente através de políticas públicas. Quando as instituições e a sociedade prestam seu reforço à comunidade científica, todos saem ganhando.”
Atualmente, a câmara de vereadores de Maceió está de recesso e só retorna às atividades em fevereiro.