A Justiça alagoana decidiu absolver o pastor que anunciou, em redes sociais, estar orando pela morte do ator Paulo Gustavo, em meio à pandemia do Covid-19. A decisão judicial em favor de José Olímpio da Silva Filho foi publicada no último 7 de maio, em resposta ao recurso impetrado pela defesa do pastor. No texto decisório, o juiz entendeu que houve falta de “prova plena” de que a declaração do religioso tinha sentido LGBTfóbico ou de que teria se dirigido a um agrupamento – assim configurando crime de racismo. Paulo Gustavo morreu em 4 de maio de 2022 por complicações do Coronavírus.
De acordo com o relator designado, o juiz Alberto Jorge Correia de Barros Lima, a defesa do pastor declarou haver ofensa ao princípio da legalidade, pois “porque equiparar o delito de racismo à homofobia, a qual não está prevista em lei como crime rigorosamente, representou analogia in mallam partem”. Também apontou a crítica sobre uma das provas limitar-se a um print produzido nas redes sociais e sobre o fato de ter considerado ignoradas as testemunhas em defesa do pastor.
Em sua decisão, o magistrado descreve: “verifica-se que a conduta do agente resume-se a uma publicação, em rede social (Instagram), com uma foto de um ator (Paulo Gustavo) retirada de um filme, em que ele se encontra no interior de uma igreja, como acréscimo da seguinte frase: “esse é o ator Paulo Gustavo que alguns estão pedindo oração e reza. E você vai orar ou rezar? Eu oro para que o dono dele o leve para junto de si”.
Na sequência, interpõe uma série de questionamentos, a exemplo de se a publicação, por si e de forma congelada, configuraria o racismo ou o desejo de morte em razão da LGBTFobia, ou se seria só um desejo de ‘alívio de sofrimento’. Também afirma não ter confirmação de que o discurso seria direcionado a todo um agrupamento ou exclusivamente ao ator.
“Pode se inferir, então, incitação a segregação, intolerância, maleficência, repulsão, aversão, ódio ou/e ojeriza ao ator por sua orientação sexual e com isso a toda a comunidade LGBTQIA+? Pode se extrair que a expressão ‘dono dele’ se reporta à ‘lúcifer’, ao ‘demônio’ ou qualquer entidade do mal? Pode se conjecturar que, como pastor e, portanto, uma liderança religiosa, haveria um desejo de morte do ator Paulo Gustavo e, para além, de todo o grupamento? Ou, ao revés, como quer a Defesa, tão só, um desejo de alívio do sofrimento do ator que estava com Covid, para que Deus, uma entidade benigna, o confortasse?”
Mais adiante, e após proferir mais uma série de questionamentos, o juiz conclui que houve falta de prova plena de que a alegação do pastor teria de fato o sentido de racismo.
“Percebe-se que para caracterização da tipicidade é necessário prova plena, nunca conjecturas ou ilações. Desconfiança e suposições não podem, por desdobramento interpretativo, colmatar a tipicidade penal. Prova plena é aquela que traduz certeza, a única, portanto, capaz de levar a um juízo condenatório.” E acrescenta: “Note-se, assim, que para fins de direito penal, notadamente em virtude da tipicidade fechada, corolário do princípio constitucional da legalidade penal, não se pode extrair, só e somente só, com essas publicações, que o apelante tenha praticado, induzido ou/e instigado preconceito ou discriminação ao reportado autor ou/e por desdobramento a comunidade LGBTQIA+ por sua ‘orientação sexual’. Não há prova plena da denominada ‘homotransfobia'”.
Leia a decisão, na íntegra, aqui: Integra_Acordao
Procurado pela Mídia Caeté, o coordenador do Grupo Gay de Alagoas (GGAL), lamentou a decisão.
“É lamentável que ainda exista jurista nesse país, que mesmo com todas evidências de que o pastor se dirigiu a Paulo Gustavo, ao ponto de rogar a morte dele, mesmo assim afirme que não há evidências”, declarou. “Infelizmente não adianta tanta luta por leis , decretos e resoluções em prol do combate a Lgbtfobia, se infelizmente a mesma ainda está entre os juristas, que na grande maioria das vezes, agem a favor do agressor”.
Outro ativista e jurista, que preferiu não se identificar , destacou os efeitos da decisão e questionam o quanto podem comprometer a proteção do Estado a ataques contra a população LGBTQIAP+.
“A pergunta que fica, então, é de que modo o Estado poderá dissuadir a intolerância e a incitação ao preconceito e à discriminação contra a comunidade LGBTQIA+? É possível concluir que declarações como a do pastor são impuníveis, uma vez que o direito penal não pode tutelar valores morais ou ideológicos? O direito penal não pode tutelar o valor da tolerância perante a comunidade LGBTQIA+? Quem ou o que poderá proteger essas pessoas de incitações à violência a pretexto de exercício da liberdade de religião?”, questiona.
O jurista também pontua as contradições apresentadas.
“A questão central analisada pelo relator – Desembargador substituto e professor de Direito Penal da UFAL, Alberto Jorge Correia de Barros Lima – fora se a manifestação do pastor esteve acobertada pela liberdade constitucional de religião e de livre manifestação do pensamento ou se extrapolou esses limites para configurar um fato punível. De um lado, ele assevera que “não se pode invocar o direito de religião para praticar violência ou expor as pessoas à violência”. De outro, pontifica que “a intervenção penal não pode prosperar para impor padrões morais de condutas”, uma vez que “não está ele [o direito penal] legitimado, tampouco é adequado, para a educação moral dos cidadãos
Desse modo, o Desembargador conclui que as meras suposições extraídas dos autos não se afiguram suficientes para impor uma condenação, pois geram dúvida acerca do enquadramento da conduta do réu no tipo penal enfocado, bem como acerca de sua intenção (dolo) de incitação do preconceito contra a comunidade LGBTQIA+. Para além disso, conclui que “não é possível a utilização do Direito Penal por conta da repercussão dos
fatos, por questões emocionais, identitárias, ou puramente ideológicas.
O que chama a atenção é que, embora o magistrado sustente que o direito à religião não pode ser pretexto para a “prática comprovada de hostilidades graves e intoleráveis relacionadas a maleficência, a repulsão, a aversão, a ojeriza por razões de raça, cor, etnia, religião, procedência nacional, orientação sexual, gênero etc”, sustenta também, de modo aparentemente contraditório, que “Valores puramente morais, religiosos ou ideológicos não podem ser acobertados pela tutela penal, “cuja punição redundaria numa intromissão
indevida na liberdade de consciência individual”.
“Desculpas, desculpas, desculpas”
A postagem que motivou a condenação – e a absolvição em segunda instância – foi produzida em meio à pandemia do coronavírus, quando o ator e humorista Paulo Gustavo foi internado em razão da doença, vindo a falecer no dia 4 de maio de 2022. Ao perceber a repercussão, o religioso apagou a publicação e emitiu uma nota. Em sua defesa, atesta que:
“Mediante esta, quero apresentar-me ao público com uma nota dupla: primeiro, para pedir desculpas, pois o pedido de desculpa deve ocorrer quando se cometer um ato falho sem a intenção de ofender ao atingido. Por isto, em primeiro lugar peço desculpas, pois, quem me conhece, sabe que do meu íntimo jamais eu ofenderia propositalmente alguém, estou dessa idade e por onde passei foi construindo amigos e servindo a quem precisa com o que estar ao meu alcance. Para saber quem é a pessoa deve-se buscar a começar na família, na vizinhança onde se criou e viveu e na igreja onde é membro. Se forem procurar falhas e imperfeições em mim, vão encontrar muitas, mas, malignas intenções, creio que não encontrarão.
Diante da declaração original, o Ministério Público Estadual (MP) provocou uma ação judicial, que foi apreciada pelo juiz Ygor Figueiredo, da 14ª Vara Criminal. Na decisão por condenar José Olímpio, o magistrado relatou que “Pronunciamentos de índole religiosa que extrapolem os limites da livre manifestação de ideias, constituindo-se em insultos, ofensas ou em estímulo à intolerância e ao ódio público contra os integrantes da comunidade LGBT, não merecem proteção constitucional e não podem ser considerados liberdade de expressão, configurando crime”. O pastor foi condenado ao pagamento de 30 salários mínimos, teve a pena de dois anos e nove meses substituída por serviços comunitários.
À parte o processo judicial, entidades de todo o país reuniram suas manifestações de repúdio à fala de José Olímpio, inclusive de forma conjunta:
“CARTA DE REPÚDIO E REVOLTA AS AGRESSÕES PROFERIDAS PELO LÍDER RELIGIOSO DA ASSEMBLEIA DE DEUS EM ALAGOAS – PR. JOSÉ OLÍMPIO
Instituições LGBTQIA + e outras defensoras de direitos humanos de todo o país, vem a público manifestar seu repúdio as agressões motivada por homofobia, escarrada pelo líder religioso da Assembleia de Deus em Alagoas – pastor José Olímpio, na última quinta-feira, 15/04 , na página oficial do Instagram do pastor.
O ato criminoso de violência, praticado por este líder religioso, contra o ator Paulo Gustavo, que se encontra internado em virtude de problemas de saúde causadas pelo COVID-19, problema sério de saúde pública e sanitária mundial, fere severamente não só Paulo, mas todas as vítimas da doença, a comunidade LGBTQIA+, classe artística e a todos os cidadãos de bem que tenham bom senso e sintam empatia por seu próximo.
A intolerância e o conservadorismo, observados não apenas em crimes de ódio como este, mas também em discursos e práticas preconceituosas, presentes em diversas instâncias do cotidiano brasileiro atual, causam sérios problemas à ordem pública democrática deste país e entristece-nos saber que este não é um caso isolado, mas apenas um dos tantos casos de crimes motivados por LGBTfobia no Brasil, como foi o atentado de 15 de abril de 2021, a honra de Paulo Gustavo e todos os cidadãos decentes e de caráter libido deste país.
Fora o tratamento jurídico específico para tais crimes, reconhecendo sua especificidade, compreendemos ainda que apenas através da educação é que poderemos construir um país mais tolerante à diversidade sexual, de gênero, religiosa, política, étnica, social e cultural, tambem de pensamento político e religioso mas não de intolerância criminosa e libertinagem.
Por fim, manifestamos nosso apoio e solidariedade ao ator Paulo Gustavo e a todos que se sentiram feridos e magoados com a fala criminosa do pastor, ao mesmo tempo comunicamos oficialmente que medidas judiciais serão tomadas contra o pastor José Olímpio – líder religioso da Assembleia de Deus em Alagoas, ao mesmo tempo também nos solidarizamos com todos os religiosos que se sentiram agredidos e triste por este ato criminoso e intolerante.
Maceió, 17 de abril de 2021.
Assinam esta carta:
GGAL- Nildo Correia ,; CAERR – Kamila Emanuele ; Givanildo Lima – ARTGAY/AL, Aliança Nacional LGBT – Toni Reis ; Rede Gay Brasil – Fábio de Jesus ; GGM – Messias Mendonça ; INCVF/AL – Rosaly Damião) – INCVF ; Movimento dos Povos das Lagoas – Isadora Padilha ; Ticiane Simões – Ateliê Ambrosina ; CAVIDA – Wilza Rosa ; Marcelo Nascimento – Fundador do Movimento LGBTQIA+ em Alagoas ; Associação Cultural Joana Cajuru – Waneska Pimentel, Annabella Andrade – Coletivo ” O Direito Achado na Rua”, REBRACA – Indianarae Siqueira, GGB – Marcelo Cerqueira, Quibamda Dudu – Otávio Reis, Associação As Musa de Castro Alves do Recôncavo – ASMUSADECAR – Gilvan Dias Medeiros ; Movimento Nacional da População em Situação de Rua de Alagoas MNPR/AL e Fórum Nacional dos Usuários do Sistema Único de Assistência Social de Alagoas FEUSUAS/AL – Rafael Machado ; GLAD Delmiro – Anna Moura ; Luiz Mott – Fundador do Movimento LGBTQI+ na Bahia ; Coletivo LGBTIA+ Flutua (UFAL) – Fernando I. Rodrigues de Farias; Associação LGBTQI+ e Candomblé GRUPO IGUAIS DE CORURIPE – Sophia Braz ; Arco Íris LGBT de Paripueira – Darlan Kadosh ; Instituto Feminista Jarede Viana – Ana Pereira ; Núcleo de Estudo e Pesquisa das Expresssões Dramáticas ; Cia Cultural Vixe Maria ; PesComPasso Artes Cênicas ; Paty Maionese Produções e Eventos – Paty Maionese ; Coletivo Popfuzz – Nina Magalhães ; Cia Orquídeas de Fogo ; AMIREBO – Lafon Pires”