Resumo
SÉRIE ESPECIAL: POLÍTICA DE RUA
Quem está às margens das políticas públicas para a população em situação de rua? O próprio segmento, que enfrenta as graves violações e negligências, enquanto cobra seus direitos? Ou políticos que esquivam-se de debruçar sobre a complexidade dessas políticas e optam por desviar suas atribuições para criar atalhos de higienismo e repressão?
A Mídia Caeté produziu uma série de reportagens sobre o tema, ouvindo poder público e Poprua. Esta é a primeira reportagem:
A analogia da “Cracolândia Maceioense” pegou tão rápido quanto um meme sórdido para seduzir o senso comum sobre algo pouco compreendido. Aliás, nada tão repetitivo quanto resumir problemas complexos a palavras de efeito; ou se esquivar da proposição de políticas públicas, substituindo-as por “fórmulas prontas” – custe a violação de direitos que custar.
Nas últimas semanas, dois parlamentares – o deputado estadual Leonam, da Assembleia Legislativa de Alagoas; e o vereador Thiago Prado, da Câmara Municipal de Maceió – passaram a capilarizar o discurso da “Cracolândia maceioense” para se referir à violência urbana e a algumas das expressões mais evidentes de problemas sociais exaustivamente conhecidos: o aumento no número das pessoas em situação de rua, que circulam, convivem e dormem nas vias públicas.
Alagoas tem mais de 5 mil pessoas em situação de rua, de acordo com o Movimento Nacional da População em Situação de Rua, estimativa que extrapola números oficiais, que estavam próximos aos 3 mil em 2023, segundo dados levantados pelo CadÚnico e expostos num relatório do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania.
Repetindo o erro, sem aprender
Agora Maceió também tem “cracolândias”, dizem os delegados legisladores do município e do Estado. Leonam, em vídeo que circula em suas redes sociais, cita dois casos que, para ele, ilustram sua tese: o roubo de uma loja no bairro da Ponta Verde, e o episódio onde uma atleta quase foi atingida por um paralelepípedo, arremessado por um pessoa que, segundo ele, era “morador” de rua.
A partir destas duas ocorrências, o deputado conclui: “O que essas histórias têm em comum? Ambos os crimes foram praticados por

moradores de rua, usuários de entorpecentes, que, tenho certeza, não praticaram só esses crimes, mas muitos outros, além de outros que irão praticar, se um freio não for dado”, diz. Mais adiante, acrescenta: “Essas pessoas não podem estar nas ruas, seja porque tem que estar presas, seja porque o Estado não pode achar normal moradores de rua estarem aterrorizando pessoas de bem”.
Mais institucionalizado, o vereador Thiago Prado decidiu adotar alguma providências. Convocou uma audiência pública voltada a debater sobre internação compulsória a dependentes químicos.
Polêmica, a atividade excluiu da mesa de honra o convite às pessoas em situação de rua, dificultou o acesso ao púlpito às pessoas contrárias à internação compulsória, e provocou a saída do Movimento Nacional de Pessoas em Situação de Rua (MNPR) em protesto às violações que encontraram no espaço – inclusive perseguição de guardas municipais e seguranças do vereador, conforme denúncia da coordenadora do Movimento, Rafaelly Machado.
Prado, durante a audiência tumultuada, alegou não ter convidado a representação da Poprua para a mesa de honra porque a pauta não era direcionada ao segmento. Entretanto, esqueceu de mencionar na oportunidade que o projeto de lei de sua autoria – que pauta exatamente este tema, deixa bastante explícito o público-alvo:
O PL prevê, ainda, a apreensão de material de pessoas em situação de rua, como colchões, camas, inclusive com possibilidade de descartar o material se considerado “inservível”. Além do mais, estabelece aos guardas municipais o direito de fazerem revista pessoal contra essas pessoas caso “fundada suspeita” de que estejam portando objeto que ponha em risco integridade de outras pessoas.

Segundo o parlamentar, a medida proposta de internação compulsória é restrita a situações “extremas”. “Simplesmente porque muitos que estão na dependência química não têm o necessário discernimento para entender que eles estão vivendo à margem da sociedade como escravo das drogas e que precisa de uma internação”.
Prado afirma que foi às ruas, encontrando sete pontos de “cracolândias”: o viaduto da PRF, mercado da produção e entorno, feira livre do Benedito Bentes, Pajuçara próximo ao Posto Jangadeiros “porém isso já migrou para as proximidades da futura roda gigante de Maceió. Olha aí o problema para o nosso turismo”, alerta.
Mais à frente, vincula a criminalidade e cita casos de assassinato, fazendo questão de dividir os grupos entre “os de rua” ou “os de bem”:
“É inaceitável manter o estado que se encontra a nossa cidade, porque pessoas estão perdendo vidas, sejam dependentes químicos, moradores de rua, ou não, sejam, pessoas de bem da nossa sociedade”.
Procurado pela Mídia Caeté, Thiago Prado afirma que “A audiência pública foi extremamente produtiva, pois proporcionou um espaço democrático para ouvirmos opiniões técnicas de especialistas na área, relatos de dependentes químicos e de seus familiares, além de contribuições de representantes de órgãos públicos que atuam, direta ou indiretamente, com essa temática”.
Ele também defende a legalidade da medida. “A internação involuntária é uma medida já prevista na legislação federal, conforme estabelece a Lei nº 11.343/2006. Nosso objetivo é regulamentar essa previsão legal no âmbito do Município de Maceió, de forma a viabilizar sua aplicação de maneira segura e eficaz.”
Acrescenta, finalmente, que há exemplos de experiências exitosas no Sul do país, o que segundo ele, servem “como referência para a construção de políticas públicas mais efetivas em nossa realidade local”.
O vereador não citou que exemplos são esses.
A Mídia Caeté procurou o delegado Leonam, por meio de assessoria, mas até o momento da finalização desta reportagem, o parlamentar não emitiu qualquer resposta às perguntas que chegaram a ser enviadas à sua assessoria.
Política x Higienismo
Por outro lado, políticas públicas elaboradas à população em situação de rua têm sido elaboradas por instituições do sistema de justiça e frequentemente cobradas pelo próprio segmento, organizado através do Movimento Nacional da População em Situação de Rua.
Em Alagoas, a coordenadora do MNPR Rafaelly Machado relata como os debates e o projeto de lei do vereador Thiago Prado distoam das cobranças pela efetivação das políticas nacionais, e das resoluções do próprio Supremo Tribunal Federal.
“Esse Projeto de Lei nem deve ser pautado e não passa porque é inconstitucional. A ADPF 976, a decisão do ministro do STF, Alexandre de Moraes, proíbe esse tipo de prática. Várias câmaras de vereadores, em várias capitais do Brasil, tentaram colocar esse lei para frente e ela não passa”, afirma Rafaelly Machado.
A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental em questão determina a obrigatoriedade da observância da Política Nacional para a População em Situação de Rua pelos Estados, Distrito Federal e Municípios. Para a coordenadora do MNPR, o debate do PL termina por esquivar de enfrentar as demandas reais da Poprua.
“Ao invés de estarem pensando em internação compulsória, deveriam estar pensando em discutir as políticas públicas. Conhecer realmente como é o financiamento, pensar em estratégias de expansão dos serviços e não ficar pensando numa situação que é inconstitucional”, diz.
Rafaelly rebate que a própria audiência, em si, já foi violadora de direitos. “Assim que chegamos, já queriam nos intimidar com várias viaturas e guardas municipais. Outro ponto é que não se constrói nada para a população de rua sem a população em situação de rua. Não tivemos representação na mesa, uma vez que o projeto de lei de internação compulsória para a população em situação de rua. Então é uma audiência que, além de ser inconstitucional, violou muitos direitos, principalmente pelos assessores dele. Seguindo a população de rua até o banheiro, filmando, mostrando arma. É inaceitável”, relata.
A coordenadora do MNPR debate o PL como uma esquiva de enfrentar as demandas reais das pessoas que convivem nas ruas. “Ao invés de estarem pensando em internação compulsória, deveriam estar pensando em discutir as políticas públicas. Conhecer realmente como é o financiamento, pensar em estratégias de expansão dos serviços e não ficar pensando numa situação que é inconstitucional”, rebate.
Rafaelly rebate que a própria audiência, em si, já foi violadora de direitos. “Assim que chegamos, já queriam nos intimidar com várias viaturas e guardas municipais. Outro ponto é que não se constrói nada para a população de rua sem a população em situação de rua. Não tivemos representação na mesa, uma vez que o projeto de lei de internação compulsória para a população em situação de rua. Então é uma audiência que, além de ser inconstitucional, violou muitos direitos, principalmente pelos assessores dele. Seguindo a população de rua até o banheiro, filmando, mostrando arma. É inaceitável”, relata.
Presente naquela ocasião, o defensor público e secretário executivo do Comitê Pop Rua Jus, Isaac Vinicius Costa Souto, rememora: “A audiência pública foi marcada por grande preocupação e atitudes antidemocráticas, resultando na saída do Movimento Nacional da População de Rua (MNPR/AL), e na negativa de falas de muitos dos presentes. Inclusive, mesmo chegando cedo na sessão, tive negado o direito de voz nessa infeliz audiência pública”, começa. “Não houve a devida escuta de especialistas da saúde mental, nem da própria população em situação de rua ou da rede intersetorial de atendimento.
Para além do rito problemático, a proposta em si também foi criticada pelo defensor. “Reafirmamos que qualquer medida de internação compulsória em massa é inconstitucional e ilegal. Ela desrespeita a autonomia da pessoa e os princípios de cuidado em liberdade que regem a política de saúde mental no Brasil”, disse.
“Nos posicionamos veementemente contrários a qualquer política que vise a remoção forçada de pessoas em situação de rua. O caminho para a superação da dependência química passa por políticas públicas de cuidado, acolhimento, tratamento em liberdade e fortalecimento da rede de proteção social. Que a resposta da Câmara Municipal ao sofrimento humano não seja mais uma violência institucional, e sim políticas públicas estruturadas com a essência da humanidade, enxergando as pessoas em situação de rua como elas são seres humanos, com um resistência incrível”.
O defensor acrescenta, ainda, a necessidade de observar preceitos legais e pactos internacionais. “Do ponto de vista legal, existem diversos impedimentos, formal e material. A competência para legislar sobre política de saúde e segurança pública é da União, e não do município. Além disso, o projeto fere cláusulas pétreas da Constituição, como a dignidade da pessoa humana, o direito à liberdade, à autonomia individual e à não discriminação”, alerta.
“Adicionalmente, a proposta afronta diretamente tratados internacionais de direitos humanos ratificados pelo Brasil, como o Pacto de San José da Costa Rica (Convenção Americana sobre Direitos Humanos), a Convenção Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais e a própria Convenção nº 169 da OIT. Tais tratados possuem status supralegal no ordenamento jurídico brasileiro, conforme entendimento consolidado pelo Supremo Tribunal Federal, e garantem a proteção contra medidas coercitivas e arbitrárias, especialmente no tocante ao direito à saúde, à liberdade e à consulta prévia em temas que impactam diretamente populações vulnerabilizadas”
Ainda segundo o secretário executivo do Comitê PopRua Jus, já existe legislação federal que se debruça sobre a temática da internação involuntária. “Sem falar que, sob a ótica ética, o projeto é absolutamente inaceitável. Internação compulsória/involuntária sem decisão judicial específica e sem respeito ao devido processo legal é uma violação grave de direitos humanos. Tratar a pobreza, a dependência química e a exclusão social como questões de polícia, e não de proteção social, é retroceder décadas de avanços civilizatórios, e tem nome: aporofobia. A Defensoria Pública seguirá vigilante e firme para impedir que esse tipo de proposta prospere e seguiremos na defesa dos direitos dessa população tão vulnerável”, acrescenta.
Titular dos Direitos do Cidadão, o procurador da república Bruno Lamenha, também relata que o Ministério Público Federal vem acompanhando as iniciativas do legislativo municipal sobre a internação compulsória. “Importante destacar que o MPF acompanha com preocupação essa recente discussão promovida pela Câmara Municipal de Vereadores de Maceió sobre internação involuntária de usuários de drogas porque se trata de uma medida abertamente inconstitucional. Respeitamos a autonomia do Poder Legislativo e esperamos que o Parlamento observe a Constituição do Brasil, que garante o acolhimento e o cuidado com essas pessoas”, ressaltou.
“Para o MPF, o enfrentamento das questões que envolvem a população em situação de rua deve ser construído de forma humanizada, intersetorial e respeitosa, considerando sempre o princípio da dignidade da pessoa humana, a promoção de políticas públicas e não baseado em soluções simplistas, de isolamento social, repressivas ou que ignoram a complexidade social envolvida.
O procurador também destaca a gravidade com que os discursos atingem os direitos da população em situação de rua. “Discursos hostis ou que reforçam práticas repressivas têm um impacto muito negativo, pois contribuem para alimentar estigmas, legitimar abordagens violentas e desviar o foco das políticas públicas estruturantes. Além de dificultar o diálogo entre instituições, esses discursos podem gerar ou agravar cenários de violação de direitos, aumentando a vulnerabilidade de um grupo que já enfrenta inúmeras barreiras.”
Tem mais uma coisa sobre a Cracolândia
Pesquisadores concordam que o termo “Cracolândia” surgiu por escrito em 1995 pelo Jornal O Estado de São Paulo, quando descreveu que “as ruas do bairro de Santa Ifigênia conhecidas como Cracolândia continuam sendo percorridas pelos policiais. Os antigos casarões vêm sendo usados por traficantes para preparar pedras de crack”. Ao longo das décadas seguintes, o local foi alvo de uma série de estigmatizações, e ações repressivas do Estado que repetiam táticas de gentrificação já utilizadas em outros países, a exemplo dos Estados Unidos, contra pessoas vulnerabilizadas.

As notícias recentes de maior repercussão sobre o local apontam para episódios de intensa violência policial e consequente dispersão das pessoas que conviviam na região para outras áreas do centro de São Paulo. Os ataques, contudo, não são novidades na localidade, e ensejam frequentes denúncias de defensores de direitos humanos, a exemplo do pároco da Igreja São Miguel Arcanjo, em São Paulo, o padre Júlio Lancellotti.
Na última semana, durante sua cerimônia religiosa, Lancellotti tratou sobre o assunto: “Se nós acreditamos no deus do amor e no deus da vida, nós não podemos aceitar a tortura, a violência, os maus tratos, e maltratar as pessoas, como muitos desses foram retirados à força das ruas para fazer propaganda política, para satisfazer a aporofobia da cidade, para tirar diante dos nossos olhos a miséria que fabricamos nesse sistema altamente excludente e que descarta as pessoas”.
Em um artigo produzido para o portal Brasil de Fato, intitulado ‘Queremos te dizer outra coisa sobre a Cracolândia”, os autores Aline Yuri Hasegawa, Daniel Mello, Ricardo Paes Carvalho e Verena Carneiro: questionam: “Quantas vezes você leu que a Cracolândia é um problema há 30 anos no centro de São Paulo? Escutou na TV pelo menos”. A partir da introdução, prosseguem que o que vão dizer é outra coisa:
“Não vamos dizer que a Cracolândia é um problema, porque a Cracolândia é antes de tudo (e talvez apenas) as pessoas. O fluxo só existe como multidão. Gente forte e fraca, grande e pequena, de coração aberto e egoísta, ao mesmo tempo. A maioria preta, mas alguns não. De baixa escolaridade e pobre, sem esquecer dos doutores e ex-professores. Apesar de que ali não se deixa de ensinar e quem quer consegue aprender.”
Em que pesem as particularidades maceioenses, o defensor Isaac Vinícius Souto caracteriza as condições dos que convivem em condições similares.
“Mesmo diante de tantas perdas, de inúmeras subtrações na matemática da vida, que talvez poucos aqui suportassem (dos entes queridos, da integridade física, da saúde, do emprego, dos bens materiais, da moradia, da privacidade, da dignidade, do sono, da perda da esperança na vida, nas instituições públicas e privadas, nos poderes constituídos, etc), por outro lado, são essas pessoas que estão dispostas a reconquistar tudo isso de volta, se a elas forem dadas oportunidades de verdade, corpo a corpo, alma a alma, com a atenção que cada uma requer e, sobretudo, se não lhes forem tirado o direito que impulsiona as vidas: a liberdade.”
—
A que serve os programas desumanizadores contra as pessoas em situação de rua e o que medidas repressivas tentam esconder? Tem gente (e instituições) mobilizando políticas públicas por aqui também?
Na próxima reportagem da série POLÍTICA DE RUA, a Mídia Caeté debate como vem acontecendo a construção de políticas públicas em Alagoas para a PopRua, os desafios e os percalços enfrentados pela população em situação de rua e seu movimento organizado.