As discussões sobre a direito à cidade continuam acontecendo e se intensificam, inevitáveis, quando as chuvas mostram onde estão os focos da violação de direitos, seja na falta de infraestrutura, saneamento, equipamentos públicos e assistência social efetiva. Quem vivencia a cidade de maneira mais crua, a população em situação de rua, é também quem vem se organizado e articulado forças, ampliando redes, e batendo as portas dos órgãos responsáveis. Mais que isso, é também a população em situação de rua que vem revirado o avesso da ideia de uma Maceió instagramável cuja pauta dos últimos dias vinha sendo a briga por quem faz a maior festa junina.
A mobilização não é de hoje e nem veio com estas chuvas de maio. A busca dentro das vias institucionais foi a principal motivação para a criação, em 2010, do Comitê Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento da Política Municipal para a População em Situação de Rua em Maceió. O contexto era de grande violência e aumento de assassinatos, e era urgente a necessidade de um acompanhamento mais de perto e também mais amplo em relação às condições de existência de quem enfrenta as ruas dia e noite.
Ainda em 2015, e através de participação ativa das pessoas em situação de rua junto a setores da sociedade civil organizada, foi instituído o Plano Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento da Política Municipal para a População em Situação de Rua. Em 2019, foi ela também, a população em situação de rua, que esteve lá novamente para pressionar até a instituição do Comitê gestor estadual, o Comitê Pop Rua.
Instâncias criadas, planos também. Faltava, finalmente, a execução. Falta ainda. Desde 2021, o Plano Intersetorial de Monitoramento e Acompanhamento da Política Municipal para a População em Situação de Rua, para o biênio 2021 a 2023, vem sendo cobrado reiteradamente à Prefeitura, que ainda não trouxe resposta.
O documento possui, entre diversos outros objetivos, favorecer políticas públicas para a população em situação de rua, fortalecer a integração das redes de atendimento; qualificar gestores envolvidos; e realizar o planejamento e acompanhamento das ações pactuadas. Os eixos de atuação do Plano são: saúde, assistência social; educação, esporte, cultura e lazer; habitação, trabalho e renda; e segurança pública, cidadania e direitos humanos.
Para garantir a integração, as 52 ações são distribuídas sob responsabilidade das secretarias respectivas por cada eixo, além de serem avaliadas pelo próprio Comitê Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento da Política Municipal para a População em Situação de Rua em Maceió, que produziu o relatório através de representantes do Município, da OAB e do Movimento Nacional da População em Situação de Rua (MNPR-AL).
Plano Intersetorial – Maceió 2021
O presidente do MNPR, e integrante do Conselho Estadual de Assistência Social, Rafael Machado, detalha que – até hoje – o plano não foi executado para além de algumas poucas ações sem continuidade ou efetividade. “Todo ano a gente solicita ações para a Prefeitura e agora vemos o secretário dizer que todos os anos coloca o plano de ações. Queremos saber que plano é esse, se as pessoas estavam nas ruas falando que não tem espaço?” questiona.
Violência institucional e constrangimento na Câmara de Maceió
Um momento que oportunizou aos órgãos públicos um panorama dos grandes vácuos na assistência à população em situação de rua aconteceu na Câmara Municipal de Maceió no fim de maio. A audiência pública teve objetivo de discutir as políticas públicas para a população em situação de rua de Maceió.
O segmento mais interessado esteve em peso. Sob coordenação do Movimento Nacional de População em Situação de Rua (MNPR), acompanharam a audiência do início ao fim, participaram, aplaudiram, e manifestaram concordância e discordância com as falas presentes. Não sem antes sofrerem constrangimento inicial pelo Legislativo Municipal que, em uma flagrante cena de despreparo e violência institucional, chegou a barrar o grupo em razão da vestimenta “inadequada”.
Questionada pela Mídia Caeté, a Câmara de Maceió respondeu, por meio de assessoria, que foi um momento breve em razão da ausência de protocolo, mas que todos já estavam no interior da Casa.
Mudado o protocolo em cima da hora, a audiência foi garantida com a participação de quem mais importava. Entre as problemáticas enfrentadas, as pessoas presentes relataram sobre a condição dos dois Centros Pop, instituições compostas para prestar assistência intersetorial especializada – atualmente há dois deles em Maceió, no Farol e em Jaraguá. “Com a mínima capacidade”, acrescenta Rafael, endossando as falas da audiência.
Para Machado, no geral, o espaço foi positivo. “A população de rua teve seu momento de vez e voz, de trazer seus anseios. Falando da desproteção social que estão vivendo, sobretudo no período da chuva. O movimento aponta como um momento positivo para a construção de políticas públicas, principalmente nesse momento de chuvas. Os vereadores deveriam estar atentos com essa população que é invisibilizada e marginalizada”, conta. “Só não foi positivo pelo momento de constrangimento, de ter gente que não pôde entrar porque não tinha vestimenta para usar. Nem toda pessoa em situação de rua tem uma calça longa para usar”, lembra.
Presidente suplente do Comitê Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento, e integrante pela Comissão de Direitos Humanos da OAB, o advogado Arthur Lira informou que deve encaminhar uma requisição para que as secretarias informem o balanço das ações em um prazo de 15 dias. As ações programadas estão no Plano:
Este slideshow necessita de JavaScript.
Caso a resposta não venha, Lira informa que o próximo passo é comunicar ao Ministério Público. Segundo o advogado, o comitê se manterá atento às respostas, sobretudo diante do agravamento do cenário nas ruas.
“Hoje um dos maiores problemas é a questão dos abrigos, porque há poucas vagas ainda apesar de ter expandido. E um cenário em que a população em situação de rua aumentou bastante. Basta olhar o preço do gás, da cesta básica, do aluguel, e coloca mais pessoas em situação de rua”, acrescenta.
A própria situação ocasionada durante as chuvas só piorou a situação. “Inclusive tivemos reunião extraordinária para discutir estratégia emergencial para as chuvas. Porque, infelizmente, no primeiro momento a Semas só havia disponibilizado abrigo para famílias oriundas da defesa civil, que tiveram que deixar as casas em razão de alagamentos e deslizamentos, nas barreiras. Depois de diálogo, foi disponibilizada também uma parte das vagas da escola Pequeno Príncipe para a população em situação de rua”, acrescentou.
Se o subregistro vem sendo sistêmico ao se tratar sobre a população em situação de rua, inclusive em âmbito nacional, o problema só aumentou em meio à pandemia do coronavírus e o encarecimento do custo de vida. A percepção do aumento se deu em meio ao crescimento de pessoas atendidas no período.
“Salientamos dizer que em alguns aspectos, Maceió enfrentou uma situação particular devido ao elevado grau de pobreza da população, onde se pode apontar que famílias procuraram os serviços de atendimentos em busca de acolhimento e alimentação”, descreveu o documento.
A audiência oportunizou a percepção de quem estava presente que, delimitar uma assistência que abarque toda essa população significa, ainda, abarcar toda a complexidade que envolve a condição de estar nesta situação de rua.
Essa complexidade foi observada por quem acompanhou a audiência pública, trazendo demandas múltiplas, que vão desde a diferença etária, das crianças aos idosos, às questões de adoecimento, ausência de equipamentos, questões de rupturas familiares, raciais e de gênero. Nada passou batido diante da diversidade das condições, tão diversas quanto as pessoas presentes, e na demanda comum por vida digna. O problema é que, a despeito do momento de escutas, as pessoas em situação de rua seguem enfrentando chuvas com pouca trégua e concomitante desassistência. Se depender do movimento, o desconforto não será mais invisibilizado.