“Atos omissivos e comissivos de autoridades vinculadas à União Federal têm acarretado incalculáveis danos ao patrimônio público e social na medida em que violam as garantias fundamentais do direito à cultura e ao acesso à cultura”.
A citação acima é uma boa forma de iniciar este texto e está presente em uma Ação Civil Pública proposta pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) contra o governo de Jair Bolsonaro (sem partido), no último mês de março. O documento é um mecanismo jurídico que tem por objetivo defender direitos coletivos inerentes à sociedade e representa o pensamento de muitas pessoas, sobretudo de artistas.
A ação da OAB fala ainda sobre os cortes de verbas e a descontinuação de políticas públicas – voltadas ao setor – por parte do Governo Federal, bem como sobre a nomeação de profissionais sem a qualificação necessária para ocupar cargos relativos à cultura. Vale lembrar que o “Ministério da Cultura” foi extinto, em 2019, e hoje ocupa o status de Secretaria Especial da Cultura, vinculada ao Ministério do Turismo.
O contexto não é dos melhores e se agrava ainda mais no meio de uma pandemia, que acarretou inclusive uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para apurar a atuação – ou falta dela – do presidente e seu governo. No dia 1º de junho, a médica Nise Yamaguchi prestou depoimento à CPI, a condução da sabatina foi criticada pela atriz Juliana Paes em suas redes sociais.
Após críticas a sua postura, Juliana publicou um vídeo onde afirma que não se sente representada politicamente nem pela extrema-direita e nem por “delírios comunistas”. O comentário gerou reações contrárias entre seus colegas de profissão, que citaram ausência de empatia e uma falsa equiparação entre o governo vigente e a oposição, tema abordado recentemente aqui na Mídia Caeté.
Porém, a principal crítica à atriz foi a postura isenta e a defesa do “direito de não se posicionar” em relação ao atual momento do país, mesmo com a série de atos orquestrados para o desmonte sistemático do setor cultural – como afirma a OAB em outro trecho da ação citada no início da reportagem.
ARTISTAS DEVEM SE POSICIONAR POLITICAMENTE?
A Mídia Caeté ouviu artistas locais, que vivenciam a realidade imposta pela falta de apoio e recursos escassos. A musicista e mestra do coletivo AfroCaeté, Letícia Sant’Ana, acredita que a isenção é um caminho que os artistas não devem seguir na conjuntura atual e cita o fim do Ministério da Cultura como exemplo da ausência de valorização da arte no Brasil.
“Além de outras inúmeras razões, não dá pra esquecer que esse governo extinguiu seu Ministério da Cultura e isso demonstra a total falta de interesse pela classe artística e pela cultura brasileira. Se você é artista e não se incomoda em ver seu trabalho ser desprezado por um governo do qual você faz parte, eu não sei com o que essa pessoa pode se incomodar”, afirma.
O docente da Escola Técnica de Artes da Universidade Federal de Alagoas (Ufal) e dançarino da Companhia dos Pés, Régis Oliveira, crê que os artistas devem se posicionar em qualquer momento e que isso é essencial agora. Ele fala ainda que todo artista é um cidadão e que todo cidadão é um agente político.
“Como diz Nina Simone, é obrigação do artista refletir sobre o seu tempo e eu concordo com ela. Os tempos sombrios e nebulosos, em que vivemos, precisam ser refletidos pelos artistas, seja em suas produções em forma de Artivismo ou se posicionando diretamente em suas redes sociais. Cada artista precisa descobrir o jeito de como se colocar de maneira contundente e contrariamente às atrocidades desse governo”, esclarece Regis.
E complementa:
“Para mim, o artista é aquele que cria fissuras, que rasga, que subverte as lógicas e reorganiza possibilidades possíveis. Desse modo, no cenário atual, onde estamos sendo governados por um sujeito cruel, pérfido, desumano, insensível e autoritário, o artista precisa se colocar diante dessa turbulência, desse terremoto político. E não estou falando apenas em relação às artes, às produções artísticas, mas se posicionar contra um governo que não é sensível à população que governa, que não é sensível ao luto de mais 450 mil famílias”.
Para o escritor, ator e diretor, Nilton Resende, as pessoas que possuem uma visibilidade maior devem sim se posicionar e que muitos não tomam partido para manter privilégios conquistados, grupo que inclui também os artistas.
“Não estamos vivenciando um momento qualquer de nossa história. Parece que há artistas que temem vincular suas imagens a opções políticas. Temem por receio de perderem a admiração de algumas pessoas. Temem por receio de perder grana. Principalmente, quando a “neutralidade” apenas encobre sua posição, que é a de estar ao lado do status quo. Se, num determinado contexto de crise, a gente não se manifesta contrariamente a ela, a gente é a favor dessa crise.”, frisa Nilton.
RELAÇÃO ENTRE GOVERNO FEDERAL E CULTURA
Quando indagada sobre o corte de recursos para cultura – como, por exemplo, a portaria que suspendeu os recursos da Lei Rouanet para artistas de cidades e Estados que adotaram medidas para conter a Covid-19, Letícia Sant’Ana lembra que o governo lida com questões de interesse público como se fossem questões individuais e critica a conduta de Jair Bolsonaro.
“Não tem justificativa para uma ação dessa e realmente não houve por parte do governo uma explicação para esse absurdo. Estamos sendo governados por uma figura que é contra medidas de isolamento, lockdown, entre outras restrições. Achando pouco, veta uma das poucas possibilidades de suporte à classe artística nesse momento. Os artistas foram os primeiros a pararem de trabalhar na pandemia e vão ser os últimos a voltar”, salienta.
A musicista emenda: “depender de um auxílio emergencial, de bicos, a vida parou, mas as contas não. Tenho a minha família, mas se eu não tivesse, não sei em que situação estaria agora, sendo uma artista independente no Brasil durante uma pandemia”.
Já Regis Oliveira menciona que a Presidência da República (PR) prioriza somente grupos favoráveis a ela e que ataca diretamente os artistas. O dançarino recorda ainda que a “transformação” do Ministério da Cultura em uma Secretaria vinculada a outro ministério impacta diretamente no orçamento investido nas artes.
“Ao meu ver, as ações antidemocráticas que o atual presidente perpetra só recrudescem a vulnerabilidade dos artistas. Mas, para um chefe de Estado que chama os artistas de vagabundos, já se imagina o tipo de política pública que será implementada, não é? Nós tivemos vários retrocessos, em meio ao atual governo. O orçamento investido na cultura teve uma queda altíssima, a Fundação Nacional de Artes (Funarte) teve sua atuação reduzida de modo considerável e por aí vai. Há um desmonte estruturado e planejado, que não tem nenhuma sensibilidade à vida humana, nenhuma sensibilidade às artes, à cultura. E as dificuldades são muitas, imensas”.
DESMONTE COMO FORMA DE CENSURA
De acordo com o Conselho Federal da OAB, existem intervenções políticas indevidas visando a aprovação do repasse de verbas somente para obras alinhadas ideologicamente ao governo. Segundo Nilton Resende, isso não reflete apenas um plano de censura, trata-se de um projeto de destruição.
“O ‘despresidente’ é um verme. É uma pessoa que tem adoração pela morte. Ele age em função da morte, e, enquanto estiver no poder, vai fazer de tudo para matar aquilo que – de algum modo – não estiver em concordância com o que ele quer: sejam pessoas, sejam minorias, seja a própria arte. E assim ele sente prazer em destruir tudo aquilo que tem, em pouca ou grande quantia, o que nele é apenas falta. Então, não é apenas censura — é plano de destruição. Não podemos nos calar enquanto nos matam”, pontua.
Régis Oliveira não tem dúvidas de que esse governo atua de forma censurante e afirma que a classe artística precisa se posicionar contra esse desmonte. Ele lembra ainda que Bolsonaro repudia ferrenhamente expressões artísticas que abordam pautas progressistas e humanitárias.
“Bolsonaro ataca as expressões artísticas que colocam o corpo em evidência (por exemplo, a nudez). As obras que elaboram sua poesia a partir de pautas feministas, LGBTQIA+ e negras são preteridas. Bolsonaro atacou a Agência Nacional de Cinema (Ancine) reduzindo verba e negando apoio de filmes com pautas dissidentes. Por isso e tantas outras atrocidades, a classe artística precisa se posicionar. Como um artista pode apoiar um governo que impossibilita sua prática, que retira apoios importantes e diminui orçamentos?”, questiona.
Letícia segue o mesmo raciocínio de Nilton e Régis e relaciona o comportamento de Jair Bolsonaro com o de seus apoiadores.
“Os defensores de Bolsonaro exaltam tanto a liberdade de expressão, mas como uma via de mão única. Esse argumento só funciona em defesa da opinião bolsonarista. E além disso, confudem [os apoiadores do presidente] opinião com racismo, lgbtfobia, machismo. A classe artística que não se posiciona contra essa forma de censura está amparada pelos seus privilégios e nunca precisou lutar para conquistar nenhum direito, apenas existe na sua falsa neutralidade, porque isso a mantém num lugar confortável e de poder. É uma atitude egoísta, mesquinha e alienada”.
ARTE COMO FORÇA E LIBERTAÇÃO
A arte é fundamental para qualquer época, sobretudo em tempos de cólera. Regis pensa dessa forma e faz questão de frisar que a cultura possibilita a criação de mundos e que dessa invenção podemos articular a mudança para a própria sociedade, escapando da censura, da opressão e do cerceamento.
“A arte possibilita rasgar esses dispositivos de poder que buscam nos regular e tem muitos trabalhos artísticos com uma potência imensurável acontecendo nesse momento. Faz um tempo eu assisti no YouTube o espetáculo Manifesto Travesti, da Renata de Carvalho, e o Evangelho Segundo Jesus Cristo, uma porrada que rasga e esfola ideias conservadoras e opressoras. A arte não é apenas entretenimento, mas também a possibilidade da transgressão do mundo, de torcer, de torar o tempo e o espaço para que possamos enxergar a multiplicidade de mundos, de narrativas, de histórias que nos compõem”, ressalta o dançarino.
A mestra Letícia Sant’Ana enaltece a cultura como instrumento de libertação e lembra que ela foi o refúgio nas maiores crises e nos piores momentos. A musicista frisa que arte também precisa ter o seu cunho político e que não há como existir esse rompimento.
“O cinema, a música, a dança, a pintura, as mais diversas formas de arte dão conta de imaginar um lugar melhor, de nos dar esperança, de oferecer cura e colo, também de trazer à tona nossas dores, nossas queixas, nosso posicionamento, nosso grito. É uma ilusão pensar que nós, artistas, temos a capacidade de nos dividir em dois na hora de produzir nosso trabalho: o ser artístico fica e o ser político sai. Isso não existe. Não precisa de nenhuma faculdade pra desenvolver um pensamento crítico sobre a sua realidade, basta viver num país que tenta te excluir, te ignorar, te violentar, te matar, te calar, sentir na pele tudo isso. Aí você vai ser obrigado a se posicionar, a ir pras ruas mesmo com um vírus mortal a solta, do contrário, você não sobrevive. Não é uma opção. A arte dá força pra essa luta difícil, diária, sem ela, seria insuportável”.
Já Nilton diz que a arte é essencialmente livre e amoral e que, por isso, ela consegue dizer o que a linguagem cotidiana muitas vezes não permite, principalmente em tempos de opressão. O escritor referencia um poema de João Cabral de Melo Neto para ilustrar a beleza e a importância da cultura.
“É como o lindo poema do João Cabral de Melo Neto, em que os galos tecem a manhã. Cada um de nós, artista ou não, é um galo. E a manhã, para ser tecida, exige que todos nós cantemos. Afinal, o sol irá nascer para todos. E não podemos ficar sentados na calçada esperando o calor às custas do canto de outrem”.