Resumo
Por Wanessa Oliveira e Vivia Santos
Entrevistar Koram Xucuru é quase que nem precisar perguntar. A Mestra da Cultura Indígena e mezinheira, ao contar sobre seu projeto Magia da Terra, vai tecendo um assunto que, ligado ao seguinte, sugere “antigas e novas formas de viver”, substituindo aquela série de anúncios que prometem ‘progresso’ por sabedorias pré-coloniais: a ideia é buscar lá atrás para, assim, garantir um futuro melhor.
Muitos tratam esta filosofia de resgate pelo nome de Bem Viver, conceito que ganha diversas definições de acordo com centenas de povos originários da América Latina. E, a despeito das singularidades, resguardam algumas semelhanças: a cura através da prática anti-sistêmica e anti-colonial de ciências, modos de vida, e perspectivas de sociedades.
O convite de Koram faz rever ideias excludentes de desenvolvimento, enquanto apresenta uma crítica ao modo como o Estado explora e se beneficia da precarização dos povos indígenas. Trata-se do lema de gerar dependência para, então, dominar.
Acontece que é possível resolver e Koram vai trazendo exemplos, no curso, nesta entrevista, e por onde caminha. “É preciso voltar a plantar”, repete. E prossegue: é preciso ainda buscar o máximo de autonomia; repensar os conceitos de saúde; não descolar da necessária relação de reciprocidade com a terra.
É com a Magia da Terra que a idealização toma forma de projeto que forma uma rede de mulheres em torno do resgate e partilha de saberes sobre saúde, junto à geração de renda e incentivo à autonomia. No curso de aromaterapia, que acontece entre os dias 17 e 18 de março, uma parte importante desse conhecimento estará disponível e os recursos utilizados serão revertidos para a possibilidade de capacitar as próprias aldeias com o resgate de saberes.
Repensar a saúde
Koram conta que foi pensando prioritariamente nas mulheres indígenas que a Magia da Terra foi idealizada. “Criei o projeto Magia da Terra, a partir do fato de que tudo o que vem da terra é magia e, se somos mulheres, também temos magia de curar, multiplicar e fazer acontecer. Por isso, a marca se trata de mãos saindo da terra, virando tronco, flores e depois os pássaros”, descreve.
A ideia foi ganhando concretude a partir de suas experiências de trabalho na área da saúde, quando se deparava constantemente com os processos de adoecimento. “Venho procurado saber o que leva tantas mulheres a adoecer. Nos postos de saúde, as pessoas nunca vão quando saudáveis, sempre doentes. Além disso, no projeto, através dessas trocas que fazemos sobre a medicina tradicional indígena, a gente acaba trabalhando também com o empoderamento da mulher contra a violência doméstica. Dentro dos cursos de capacitação, fazia o gancho para entrar nestas discussões também com encontros de pajés, benzedeiras e curandeiras”.
A religiosidade sempre esteve intrinsecamente atrelada a todas as atividades. “Tive uma formação em Salvador, onde em contato com religião de matriz africana, me disseram que estava quase uma mãe de santo, mas não se trata disso, e sim de respeitar um ao outro em sua especificidade. Faço parte de toda a ligação com os seres encantados também. E tanto é possível tudo isso que trouxe babalorixá, evangélico, indígena, gente do Movimento Sem Terra, enfim, toda uma mistura de gente do bem, porque sou uma pessoa que acredita na força maior, no ar que respiro, nas plantas, no canto dos pássaros, e tenho meus rituais”, diz.
No período de pandemia, a organização para estes cuidados se fez ainda mais necessária. Não chegava política pública suficiente para proteção contra a COVID-19, os testes eram escassos, e a Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI) vivia um processo de descaso. “Posso dizer que, diante disso tudo, e com os subregistros, 70 a 80% adquiriram o vírus, e não perdemos ninguém”, conta.
Como isso aconteceu? Para Koram, foi determinante a auto-organização das mulheres. “Iniciamos um projeto através da associação, porque se não nos cuidássemos, o vento seria muito mais forte aqui. Comprei duas máquinas e, com cinco mulheres, construímos 3 mil máscaras, além de potes de ervas com álcool onde distribuímos dentro e fora da comunidade. É um virus, então as pessoas precisam estar com boa imunidade. As ervas fortalecem e preparam para enfrentar tudo”.
O sopão da Koram também foi um recurso importante de enfrentamento da pandemia. “Foi uma sopa com base em ervas e sementes. Conseguimos ervas, ficou bem forte. Não é como uma sopa que as pessoas fazem e vão colocando ingredientes sem pensar no que colocam. Tudo o que colocamos tem um significado, uma propriedade”, conta.
As curas também vão adquirindo novo significado diante desta ligação com a terra e acúmulo de saberes. “É o nosso conhecimento junto a outras formas de conhecimento popular que fica forte o potencial que temos na comunidade. Precisamos incentivar a plantar mais. Como sempre falo, descascar mais do que desembrulhar. É o caminho da saúde do nosso povo”, conta.
Os trajetos que conduziram Koram à compreensão mais ampla sobre saúde e doença estão ligados também aos trabalhos em unidades de saúde e o questionamento sobre a ausência da medicina indígena nos tratamentos dentro da SESAI.
“Trabalhei antes em um posto de saúde não indígena, e quando comecei a trabalhar na SESAI toquei nessa questão do entendimento sobre a doença e o respeito à forma como a gente vê o adoecimento, com o respeito aos saberes da medicina convencional, com o que podem ajudar, mas desde que não se deixe de fortalecer o saber da curandeira”, explica. “Esse respeito não acontecia e eu sempre questionava. Via os mesmos atendimentos do branco na comunidade indígena e essas mesmas coisas em várias comunidades. Cadê a diferenciação? Na época do Covid não tínhamos nenhum recurso, e a SESAI parecia um subsistema do SUS e quando eu perguntava a resposta que vinha era de que toda a situação era muito diferenciada. E, realmente, o genocídio foi diferenciado.”
São vários os exemplos da influência dos hábitos nas condições de saúde, e Koram pontua a necessidade que se acolha toda essa complexidade. “Essa forma de lidar com a saúde e com o adoecimento foi deixando o povo ficar cego, foi convencendo o povo de que é importante tomar uma dipirona e em 25 minutos passar a dor de cabeça, ao invés de deitar com uma compressa de argila e folha de pinhão, e deixar agir. Ou ver o que ingeriu, se dormiu, ou afinal qual é a causa dessa dor de cabeça”, exemplifica.
As condições laborais também estão presentes na diversidade de situações que interferem no adoecimento. “Aqui na Mata da Cafurna, moro na Aldeia Pico de Serra. Muitas vezes para virmos da cidade, a locomoção com águas na cacimba era muito ruim na ladeira íngreme. Era uma cacimba na cabeça e o menino de lado. Então aos 40, as mulheres já sentem muitas dores”, retrata. “Já na Kariri-Xocó, há dores que acontecem por conta da postura em que as mulheres sentam para fazer o trabalho. Enfim, no geral as mulheres acabam mesmo adoecendo mais, porque cuidam dos filhos, buscam água, a cabeça dói porque não tomam café à noite, ou o filho está doente, ou marido embriagado porque não tem o que fazer”.
Segundo Koram, os impactos foram identificados inclusive entre as mais jovens. “A hipertensão vem atingindo cada vez mais mulheres jovens, com 27 anos. Tem algo errado e as pessoas estão adoecendo mais”.
Por outro lado, adolescentes também vão adquirindo seus próprios formatos de adoecimento, sobretudo com o uso abusivo das redes sociais. “Eu trouxe o primeiro computador para a aldeia e acho importante as tecnologias para cunho social, para conseguirmos nos conectar e trazer todo um respaldo positivo para a comunidade, que a gente possa conversar e fazer essa comunicação. Mas é bem diferente dessa proposta de viver de zap zap da vida. Todo mundo aprendeu e ficou sem controle. É uma doença de incentivar a ficar em youtube. ao invés de usar para esta modernidade, para evoluir. Nós resistimos para existir, e precisamos reeducar nosso povo”.
Ressignificar: cura, plantio e autonomia
O ressignificado sobre a saúde é um dos primeiros passos para conseguir encontrar este novo formato de curas, conforme explica Koram. “A luta pela saúde é entender a saúde como abastecimento das nossas necessidades. Vem desde o carinho do olhar, do afeto na alimentação como uma forma de ajudar, até a demarcação de terra. Os parentes dizem que não existe plantio se não tiver terra. A terra é nossa saúde, mas enquanto não tenho, tenho que achar estratégia para sobreviver com qualidade, com herbário na parede, jardim que pode transformar em alimentação, enfim”.
A alimentação, neste sentido, também ganha um sentido de fluxo. “A alimentação se comunica com nosso corpo. Sempre pensava no que comunicaria bem com o corpo quando fazia o sopão. Falei muito com a SESAI na época, para fazer um levantamento de quem trabalha ou quer trabalhar com a alimentação, de qual aldeia, porque é uma transformação da aldeia, de dentro para a fora. Sabemos que tem muita gente boa que faz isso e sabe trabalhar com educação e saúde, mas fui a única que ficou preocupada com essa iniciativa e acabou que não teve andamento”
Essa negligência com a saúde indígena não se dissocia de todo um processo de precarização nas comunidades que, como denuncia Koram, vem pressionando povos indígenas ao empobrecimento e dependência.
“Ainda que as políticas públicas de renda mínima venham para ajudar, é preciso que não haja uma dependência que nos empobreça de conhecimento e impeça de ver o futuro. E há muitas mulheres e jovens nessa situação. Conheci muitas aldeias no nordeste. Cada uma tem suas diferenças, mas também há muitas necessidades em comum. Necessidade de geração de renda, aldeia empobrecida. Me deparei ainda com insegurança alimentar, como uma consequência da alimentação ligada também ao não plantio. E esse não plantio sabemos que também está atrelado à mudança climática, à escassez da água e sua qualidade ruim. É propício esse sistema que lhe oprime, e lhe deixa dependente dele. Precisa deixar os povos indígenas nessa dependência e mendicância para que sejam mandados e ditados sobre o que devem fazer”,
Essa relação com Estado reverbera, ainda, na própria forma como os estereótipos da precariedade dos povos indígenas são reproduzidos na imprensa. “A gente precisa parar de dar poder para que esse sistema massacrante que nos mata a cada dia, também tenha uma mídia reproduz com a ideia de que precisamos de governo. Então eles anunciam sobre a verba que vem lá de cima, mas quando chega aqui são migalhas”.
Por outro lado, essa mesma mídia pouco repercute as outras vozes. “Não colocam a voz das minorias, e nem minorias somos. Somos uma maioria. Só que, para esse sistema massacrante, o que é forma de vida, para a gente é uma forma de morte. Só ver a insegurança alimentar no Brasil. E esse olhar para o adoecimento sem buscar as causas. Quando Bolsonaro estava aí, muitos povos foram desarticulados e ficaram enfraquecidos pela forma como foram excluídos. E ninguém podia falar. Era uma ditadura”, relata. “Agora, com este governo já temos abertura para caminhar novamente, quando muitos ficaram parados”
Magia da Terra é, neste sentido, um resgate também. “É para as mulheres verem que é possível fortalecer as raízes e o potencial como mulheres indígenas, do campo, e que precisamos estar juntas para uma corrente do bem que mude isso”
MAGIA DA TERRA: consumo consciente e respeito à história
Para que este resgate aconteça, Koram coloca a importância de uma articulação cada vez mais próxima. “Agora mesmo precisamos estar conversando e mais próximos, para que nossa resistência continue, porque a proposta era essa de que deixássemos de existir. E estamos mais fortes. Além disso, as mulheres indígenas estão ocupando espaço onde já não tinha, lutando pelos seus corpos e pelos seus filhos. E acredito que vai ser assim daqui para frente”, conta.
Koram detalha algumas das produções desenvolvidas pela Magia da Terra. “Desenvolvemos produtos da banana, com tudo o que tem de importante e vem da banana. Na casca, no mangará, que é uma fonte de riqueza. Nossa ideia é fortalecer na geração de renda e na alimentação. Conseguimos alguns recursos pelo Fundo Casa, onde fizemos projeto com os produtos”, continua.
Entre os alimentos criados, o doce de banana vem sendo bastante difundido. “É um doce que não usava açúcar branco, mas mascavo e rapadura, e o conservante é feito nas ervas. A nutricionista que chamamos foi só para fazer a esterilização e preparar para ser vendido. Foi importante que ela não mexe em nada na história, ela faz só essa organização para ser comercializado”.
Outros alimentos mais são construídos com todo o respeito às especificidades. “A banana é desidratada e defumada no forno à lenha. É feita geleia de banana com a rapadura. A biomassa também com mascavo e ervas. O doce de banana quando a gente põe erva dentro diminui o teor glicêmico, então se pode comer sem culpa. É um doce medicinal em que dez mulheres produzem”
Ainda há um diferencial importante para a Magia da Terra: a recusa consciente de Koram em submeter o que produz ao grande mercado ou à produção em massa. “Não quero popularizar os produtos. Eles vêm com história do meus antepassados. Contêm memória e história. Quero vender em feira orgânica, com MST, em escolas, com povos quilombolas, em lugares onde as pessoas estarão também para aprender a se alimentar. Que se gere renda respeitando a história de onde vem, de onde foi plantado”, relata.
Por outro lado, entende ser importante que haja mais recurso para que os produtos sejam mais acessíveis. “Gostaria de recurso para podermos multiplicar por um preço menor, porque mascavo é muito caro. A gente vê que todo o produto light é mais caro. A banana não tem carbureto, nós esperamos crescer e ficar inchada para depois ir ao processo de extração, desde o plantar, envasar, colocar no vidro, há todo um processo. E é nessa linha de reeducação para sobrevivermos com qualidade, fortalecendo sem veneno”, diz.
O mesmo acontece com o artesanato de sua comunidade. “Já nos procuraram também para o mercado porque tem o artesanato. Nós temos nossas biojóias. Existe toda uma forma em que são confeccionadas, tiradas em determinado período da lua. São artefatos indígenas que, antes era apenas para nosso adorno e hoje comercializamos por necessidade. Por isso não quer o popularizar, pois quero que quem consuma que seja com consciência. É uma geração de renda do dar e do receber para um mundo melhor, onde a gente possa respeitar o consumo sem ser consumista”
Curso de Aromaterapia: Ensinando para fora para ensinar para dentro
Pensando em seguir em frente através da Magia da Terra, que Koram abriu desta vez um Curso de Aromaterapia ampliado e aberto a não indígenas também. A ideia é que o recurso adquirido com o curso possibilite que as terras indígenas também tenham acesso a este conhecimento.
“O aroma da mata é a forma como trabalhamos com aroma da flores e da terra e está nas práticas integrativas do SUS. Minha luta é para que seja inserida também nas práticas interativas nas terras indígenas, para fortalecermos dentro da comunidade o que já temos dentro das comunidades, fazendo remédios para curar. Cheguei a enviar o projeto através da SESAI, mas não foi aprovado porque não tinha recurso, então decidi fazer pela Magia da Terra”, contou.
Com duração de dois dias, o curso de Aromaterapia ensinará a extrair, como explica Koram, a alma das plantas a partir do óleo essencial. “E é possível extrair das flores, folhas, raízes. É uma aromaterapia diferenciada porque são aromas que vem das matas, com a potência que têm para cuidar das pessoas”, conta.
Ainda segundo Koram, o dinheiro será revertido para a possibilidade de ofertar o curso dentro das comunidades. “O dinheiro que vamos cobrar no curso é para garantir transporte a quilombolas, povos de terreiro que não têm recurso, e também para levar aos territórios”.
Para Koram, este resgate de saberes é mais do que urgente dentro dos territórios. E é preciso que se multiplique o aprendizado. “Minha filha por exemplo foi curada de asma com auxílio do eucalipto. Na medicina convencional disseram que ela não poderia ter poeira, mas sou índia, vou para o mato, coloco o pé na lama? Como ela poderia não participar? Foi então com esse cuidado que ela foi tratada. Quantas pessoas na aldeia ficam dependentes de psicotrópicos? Quando deparado o absurdo das pessoas com estes remédios, quando a maioria poderiam ser tratadas com ervas medicinais”, cita.
Ofertar o curso para fora é uma forma de receber recurso para poder levar o curso para as aldeias. “É isso o que quero trazer através do curso. E que multiplique a cada duas pessoas de cada comunidade, que valorize qual potencial que tem o pajé, a benzedeira, quem mexe com ervas como forma de cura. Logo depois também vamos ensinar a acupuntura com sementes”, planeja.
O CURSO
O Curso de Aromaterapia acontece durante os dias 17 e 18 de março, na Aldeia Mata da Cafurna, em Palmeira dos Índios. Para mais informações, basta entrar em contato pelos números de whatsapp 82 999665474 (Koram) OU 82 987708754 (Maria). Clique abaixo para ter acesso à programação completa e link de inscrição:
Programação Curso de aromaterapia – Aromas da Mata-1 (2)