No início de abril, os estudantes do último período de medicina receberam a notícia de que poderiam se formar de maneira antecipada. A medida provisória nº 934/2020 e, posteriormente, a portaria nº 383/2020 do Ministério da Educação (MEC) autorizavam a colação de grau daqueles que haviam cumprido ao menos 75% da carga horária prevista para o internato médico.
Em Alagoas, cerca de 240 estudantes da Universidade Federal de Alagoas (Ufal), Centro Universitário Tiradentes (UNIT) e Centro Universitário Cesmac (Cesmac) foram contemplados com a medida. E muitos deles partiram para a linha de frente do combate à Covid-19.
Diante de um cenário nunca visto para os então universitários, a Mídia Caeté quis saber como tem sido mergulhar nessa pandemia que desafia especialistas no mundo todo. Em depoimento, a médica Laís Rosa, recém-formada pela Ufal, conta como precisou alterar planos pessoais para o início da carreira, qual foi a reação após a primeira morte de um paciente e a missão diária de estudar para praticar a medicina baseada em métodos científicos em um momento delicado para a humanidade.
Confira, abaixo, o relato na íntegra:
“Eu achei que seria muito fácil escrever isso aqui, mas realmente não foi.
Há exatos 65 dias eu chegava à UFAL às 10 da manhã para me tornar médica. Foi de surpresa; no meio de uma situação sem igual. Nenhum médico nesse país consegue entender a sensação que vivemos ao formar no meio de uma pandemia de proporções comparáveis, apenas, à gripe espanhola. A sensação que tenho é que estou aprendendo a pilotar um carro de fórmula 1 em chamas. A situação é tão caótica, que nem minha imaginação fértil banhada na ansiedade conseguiu imaginar algo assim.
Bom, meu nome é Laís Rosa e eu sou médica formada pela Universidade Federal de Alagoas no dia 06 de abril de 2020, como resposta à pandemia do corona vírus. Hoje, trabalho no interior como médica do Programa de Saúde da Família e médica plantonista da Unidade Sentinela da cidade.
Ser médico recém-formado já não é tarefa fácil em qualquer circunstância, mas eu imaginava, que – uma vez formada – teria tempo para encontrar meu lugar na medicina e para me habituar a ser responsável pela vida de alguém. Eu tinha planos muito bem estabelecidos: começar na Unidade Básica de Saúde – onde o manejo de doenças crônicas segue um curso mais lento – em uma cidade com rede hospitalar bem estabelecida – pra onde eu poderia encaminhar pacientes que necessitassem de assistência especializada. Aos poucos, eu iria me sentir mais segura e começar a fazer plantões de baixa, média e, por fim, alta complexidade.
Obviamente, não foi assim que aconteceu. Quando comecei a trabalhar, as coisas estavam começando a acontecer por aqui. Ainda eram poucos casos internados e a COVID-19 ainda era algo distante. Mas tudo mudou muito rápido e, na terceira semana de trabalho, minha unidade se transformou em centro de triagem para COVID. Eu, que não achava que tinha competência para atender pacientes tão complexos, me vi na linha de frente.
Pensei que, por ser o primeiro atendimento, estaria imune aos pacientes graves e descompensados, mas isso era só uma ilusão. Me lembro como hoje do primeiro paciente que dessaturou na minha frente.
Era uma criança, com asma de doença de base. Eu já havia atendido ela três dias antes e solicitado avaliação dos médicos da Unidade Sentinela, mas a mãe negava-se a acreditar que o filho estaria contaminado com o corona vírus. Ele voltou muito dispneico (cansado, saindo do mediquês). Prescrevi medicação inalatória em puffs. “Dra, só tem esse remédio pra fazer inalação”, me disse a técnica. Pacientes COVID-19 não podem receber inalação, porque há um risco enorme de contaminação para a equipe e para os outros pacientes. Fiquei dividida entre ver a criança mal até chegar a ambulância para levá-la e expor ao risco de contaminação toda a equipe que trabalhava comigo. A solução que encontrei foi nada ortodoxa: usar a medicação que carrego comigo na bolsa para uso pessoal.
Um dia depois, uma colega de trabalho manifestou os sintomas e precisou ser afastada. A partir daí, comecei a viver um ritmo de trabalho que nunca esteve nos meus planos. Saí da casa onde morava com meus familiares; cessei toda e qualquer visita à minha mãe que mora em Maceió. Ainda era abril.
De lá pra cá o número de colegas contaminados só aumenta. As escalas de plantões em todos os hospitais da cidade estão furadas. Foi assim que comecei a trabalhar na Unidade Sentinela da cidade: uma amiga médica – desesperada com o fluxo de pacientes – me pediu socorro por uma tarde. Saí de lá no outro dia às 07 da manhã com a primeira morte da minha carreira profissional. Tentamos de tudo, eu sabia. Mas o paciente não resistiu.
Saí do plantão jurando nunca mais voltar. Em casa, a consciência pesou ao pensar na amiga querida e generosa enfrentando tudo aquilo sozinha. Voltei no outro sábado, dessa vez pra ficar (apesar de pensar em largar tudo e permanecer na segurança e conforto do meu lar todos os dias). Eu dei sorte, compartilho o plantão com uma médica experiente, mas generosa o suficiente para me ensinar, ajudar e orientar. Compartilhamos a vontade de fazer medicina baseada em evidência científica e, por isso, pude contar com seu apoio diante de médicos famosos e importantes que tentaram nos impor condutas baseadas em dados rasos.
Esse é outro ponto: o COVID me obriga a estudar todos os dias. Todos os dias chego em casa para dados novos, estudos novos e protocolos diferentes. Condutas médicas que, aliás, são agora domínio público com torcida organizada. É angustiante. Minha saúde mental todo dia é colocada em xeque; a ansiedade nunca esteve tão à flor da pele e eu precisei optar por acompanhar só as páginas científicas.
Chegar em casa de um trabalho doloroso e exaustivo e encarar as notícias inacreditáveis que essa nação tem gerado estava me tirando o sono. Acompanho os jornais diariamente desde os 13 anos de idade. Me sentia forte e capaz de mudanças sabendo o que estava acontecendo no meu país e no mundo. Pela primeira vez na vida, as notícias me despertavam mais vontade de chorar que de lutar.
Coincidentemente (ou não), escrevo esse texto do meu isolamento domiciliar. Sintomática. Insegura. Com saudade de trabalhar. O tempo livre me obriga a pensar em mais do que conduta médica e isso está doendo absurdamente nesse momento. Não sei que caminho estamos tomando; não enxergo a tão famosa luz no fim do túnel e não consigo imaginar como – ou quando – sairemos dessa.
Disso tudo, levo comigo a certeza de que dividi seis anos da minha vida com colegas especiais. Estamos todos na luta. Com força, bravura e muita responsabilidade. Não tivemos a linda semana de formatura para lembrarmos com carinho, mas nunca estivemos tão unidos.
Queria terminar esse depoimento pedindo a todos que fiquem em casa. Que cuidem dos que amam. Que valorizem o SUS. Espero que possamos sair desse momento como uma nação mais evoluída, plural e ciente da importância da ciência”.