O time de base constituído por jovens indígenas Tingui-Botó já se preparava para disputar a final do Campeonato Municipal de Futebol de Feira Grande, quando recebeu a notícia de que não estaria na partida decisiva contra o vizinho e adversário Vasco de Olho d’Água do Meio. A informação pegou desprevenida a equipe que vinha construindo uma bela campanha com três empates e oito vitórias. O grupo denuncia racismo e desrespeito ao calendário religioso como principais motivações para a exclusão.
Filho da liderança do cacique Tingui-Botó, Marcelo Tingui, relata que a equipe já havia comunicado e acordado com a Secretaria Municipal de Esportes e Cultura de Feira Grande a respeito do calendário religioso, e a consequente impossibilidade de participar de partidas em determinadas datas no final de semana. “A Secretaria vinha cumprindo com tudo isso. Só que chegamos nesta reta final veio o descumprimento”, conta.
“No primeiro jogo nós vencemos, e no segundo houve um acidente com o time adversário em que um jogador quebrou a perna com 15 minutos de jogo”. Segundo Marcelo Tingui, a partida foi suspensa e remarcada para uma das datas em que os jogadores da comunidade Tingui-Botó não poderiam participar, uma vez que haveria o Ouricuri – ritual sagrado realizado dentro da mata, que atribui toda a cultura dos Tingui e em uma área protegida para que a tradição e suas práticas milenares sejam preservadas de qualquer interferência de pessoas não indígenas.
“Mesmo sabendo e tendo combinado que iriam adaptar os dias para garantir nossa participação, eles quiseram manter esta data em que sabiam que não poderíamos ir. Foi então que a liderança da Aldeia concedeu autorização para que os jogadores não participassem da celebração desta vez e, assim, pudessem ir para a partida. Também fui liberado para fazer os registros. Foi aí que chegamos lá, e mesmo assim, não deixaram que os jogadores participassem, nos desclassificando por W.O”, conta.
Para os Tingui-Botó, não há dúvida de que essa exclusão resulta do racismo étnico contra a comunidade, mais concretamente a partir do desrespeito ao calendário religioso. No mais, relatam que a situação não é isolada, e que os destratos do poder público municipal desmotivam constantemente qualquer perspectiva de inclusão da juventude indígena em campeonatos e diversas outras situações.
Representantes da Aldeia e do time decidiram formalizar uma representação no Ministério Público Federal (MPF) solicitando, entre outras demandas: a suspensão do Campeonato; apuração sobre a destinação dos recursos; e também o racismo étnico contra o povo Tingui-Botó por parte da administração municipal.
Os relatos apontam para o comportamento hostil e anti-indígena por parte de comunidades vizinhas, incentivado pelas práticas da administração municipal, que age de forma arbitrária, sufocando a participação política e social, materializada em situações concretas como a própria atividade esportiva dos jovens.
Secretaria alega que houve acordo verbal e ideia partiu de representante da equipe; mas ele nega e reforça discriminação religiosa.
Já a versão alegada pela Secretaria Municipal de Esporte e Cultura destoa completamente da denúncia apresentada pela comunidade. O secretário municipal, Denivaldo Salustiano, relata que o acidente com o jogador de confusão entre as torcidas, com ameaças e hostilidade. “Uma guarnição da Polícia estava dando suporte e disse que os indígenas estavam expulsando os policiais da aldeia. Houve então um reforço aéreo e aí, diante disso tudo, o jogo teve que ser encerrado”, diz o gestor.
Ainda segundo o secretário, o time do Vasco havia solicitado a expulsão do Internacional do campeonato, mas a comissão que julga os ofícios não concedeu o pedido afirmando que não havia motivo para exclusão da equipe, uma vez que havia se tratado de um acidente. “Marcamos a partida de volta no campo da cidade e o jogador do Internacional foi expulso por força excessiva, e também pensando em preservar a sua integridade física. Só que o representante do Vasco não concordou com a punição. Foi aí que o representante da Aldeia propôs o acordo de abrir mão da partida, porque os ânimos estavam muito alterados. Ele até iria abrir mão da disputa do terceiro lugar e convencemos o contrário”, conta.
Segundo ele, na mesma reunião havia sido combinado que o Vasco entraria no campo simbolicamente para prosseguir com o protocolo do W.O. “Foi lavrado tudo em ata”, afirma. No entanto, a ata não contém assinatura das partes.
Ainda segundo Denivaldo, o representante do time chegou a mencionar calendário religioso, mas também disse que poderia haver autorização da liderança. “Mesmo assim ele disse que não queria. Só no sábado à noite é que nos procuraram para reverter a decisão do Edcarlos. Entraram com manifesto pedindo adiamento da partida pelo motivo religioso. Disseram que era ofício, mas era um manifesto. A comissão se reuniu e decidiu que não havia tempo mais para mudança de decisão a não ser que o Vasco consentisse, mas eles não quiseram”, diz.
Representante do SC Internacional, Edcarlos Roberto nega o relato e reitera que a motivação central foi a recusa da Secretaria em adiar a competição. “Nesta reunião de quarta-feira, um dos integrantes da Secretaria disse que o jogo não ia ser mais adiado de forma alguma. Achei um grande desrespeito e fiquei impressionado com a atitude, porque só confirmamos que iríamos participar do campeonato mediante essa promessa da Secretaria de que respeitaria nosso calendário religioso. Houve adiamentos de jogo por conta de batizados, por diversão, porque um dos jogadores não poderia, por vários motivos, então por que não poderiam adiar por um motivo nosso e que já havia sido combinado previamente antes do início do campeonato?”, questiona
“Fiquei indignado, porque tínhamos feito o acerto e a Secretaria fez diferente. Não tínhamos perdido nenhum jogo. Fizemos a melhor campanha. Foi uma discriminação muito grande e não é de agora que sofremos isso”, acrescenta. “A reunião era quarta e queriam que já na quinta-feira trouxéssemos uma resposta sobre nossa participação. Eu falei que não teríamos condições de já na quinta comunicar à liderança e trazer já uma resposta, mas eles ignoraram. Mesmo assim, sábado a tarde, às 15 horas, fomos até eles para pedir a reversão e mesmo assim se recusaram. Então, nosso líder religioso nos liberou para participar, fomos nos domingo, e eles nos excluíram desclassificando o WO”, afirma.
Para Marcelo, trata-se de mais uma manifestação de racismo étnico. “É um epistemicídio, uma busca de apagamento das nossas contribuições”. O entendimento de que existe um esforço de exclusão da comunidade é denunciado no documento enviado ao MPF como um preconceito étnico disfarçado e aplicado dentro da atividade competitiva, e que gerou neste caso sérios constrangimentos, além de danos econômicos, morais e culturais ao povo Tingui-Botó.