Um Êxtase Interrompido

Texto elaborado durante o Laboratório de Crítica Cinematográfica, da 15ª Edição da Mostra Sururu de Cinema Alagoano


Crítica sobre o filme Cristo Corre-Campo, escrita por João Santos.

Tela preta e som de pássaros. Em sequência, a câmera mostra lugares e uma igreja, mas eu não me sinto ali. Duas portas aparecem, ele saiu de uma delas. Continuei a ver, achando que aquele plano estático de duas portas representava algum tipo de dualidade. Não, porque é um mero plano estético de significância meramente realista, uma tentativa constante de transformar a rotina do personagem em uma conexão com o telespectador, desgastante.

O início de “Cristo Corre-Campo” é tão real, que de pouco em pouco vou percebendo que, em vez de “uma câmera na mão e uma ideia na cabeça”, poderia bem eu ter ido tomar café na casa do protagonista (Cristo), que seria a mesma coisa. O que, de fato, a câmera faz ali? E não se engane: de que adianta ver sua rotina, se nada me faz sentir? Se o intuito era me fazer aproximar de Cristo, primeiro me faça Cristo. A rotina é automática, é a parte mais desumanizada. Cristo fala, câmera estática. Pare de me forçar, eu não quero estar lá.

A escultura que ele está a fazer começa ali e transpõe até o fim do filme, mas neste momento não me interessa. O filme trata sobre a memória dele, sobre lembrar dele, mas a forma crua e estática da câmera distancia-me dele, tratando-o como um ser um pouco divino, com o qual pouco consigo sentir conexão e aproximação.

A coloração, fazendo referência à madeira, eles buscando madeira, e ele falando de fogo e aparecendo a lareira, são formas simples de demonstração de que se trata o telespectador como um ser não profundo, amplificando o sentimento de distância e desconexão. Mas as coisas mudam, e o filme ganha corpo. O plano estático e não distante, mas não tão próximo, ganha forma quando vejo uma interação humana. Lara, diretora e personagem, aparece e participa dialogando com Cristo. Suas conexões transformam a faceta tão crua e realista do documentário em um mundo de possibilidades. Agora senti que ali pertencia. Eu, estático na câmera, dessa vez, mesmo pela distância, sentia que ali via um quadro de arte, um momento de beleza, apreciando cada mísero detalhe.

A conversa me interessa. O diálogo tão real entre as personagens me fazia fantasiar em como aquela relação se deu. A realidade que tanto me interessa de Cristo está ligada ao que eu não posso e muito menos sei dele. É exatamente o não saber que constitui a ficção do personagem. Agora eu não quero mais sair. A câmera estática, que no filme tanto me distanciou, agora me fez personagem. Sinto-me passivo no filme e quero continuar assim. Deem-me mundos a imaginar que as memórias do real nunca deixarão de cessar.

O cigarro. O que vi em Cristo que, de fato, contou-me quem ele era foi o cigarro. Senti um humano. Ao vê-lo fumar tanto, penso: será um vício ou parte da estética de Cristo? Perfeito. É isso. Não quero certezas. Tire-me isso. Quero dúvidas, e dúvidas que me farão ir até Cristo para perguntar. E, em uma conversa de bar, em meio às cervejas e cigarros, eu vou comprar uma obra dele para apreciar.

Quando Lara aparece, ela também há de fumar. Nunca pensei que iria elogiar tanto o ato de fumar, mas não existe palavra que construa uma relação mais íntima que o fogo de uma lareira, a madeira, a estatueta e o próprio filme. É algo que é deles. É algo íntimo. Eu entendi automaticamente: vocês já eram grandes amigos. A lareira, o cigarro, esse fogo, deu sentido, aconchego, tranquilidade e amizade.

Então o filme me capta. É isso: essa relação entre os dois que molda a memória de Cristo, tanto quanto molda minha memória. A madeira de suas artes queima com a conexão de sentimentos e ganha sentido a partir da relação com o comprador. Quando ele diz que faz santos por serem os que mais vendem, ele demonstra que, no fim, o ato de produzir está muito ligado à conexão entre si e o que os outros querem.

O cigarro, como o vício que toca e demonstra que os dois têm muitas histórias. A lareira, que é feita de madeira, simboliza um lugar de aconchego que remete a memórias de um interior vivido não só por ele, mas por todos que já tiveram a oportunidade disso. Quando, na cena próxima entre a Lara e o Cristo, eles conversam e ele explica a estatueta, agora faz sentido. Ele diz: “Tem muito de mim aqui”, e ela responde: “Há muito de mim aí”. Quase como uma metalinguagem, o filme é sobre o campo da relação antiga desses dois personagens.

Começou o filme, de fato. Eu estava em êxtase. Não me deixe ir, não faça acabar. Eu comecei a ouvir as palmas da sessão. Era o fim. E, assim como um soco nos meandros do cérebro, perdi o gozo que estava a sentir.

Apoie a Mídia Caeté: Você pode participar no crescimento do jornalismo independente. Seja um apoiador clicando aqui.

Recentes