Era dezembro de 1948. Líderes de várias partes do mundo se reuniam na Assembleia Geral das Nações Unidas para a proclamação da Declaração Universal dos Direitos Humanos. As palavras naquele documento universalizaram conceitos sobre cidadania, paz e democracia no planeta. Seu conteúdo foi escrito após os 58 estados-membros, entre eles o Brasil, declararem ter chegado à conclusão de que os horrores provocados pela Segunda Guerra Mundial não poderiam se repetir e que era preciso reintroduzir na sociedade novas bases ideológicas, distantes do autoritarismo e da crueldade. O artigo XIX desse documento declara que“todo ser humano tem direito à liberdade de opinião e expressão; este direito inclui a liberdade de, sem interferência, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e ideias por quaisquer meios e independentemente de fronteiras.” Surge aí o conceito de informação como um direito humano.
O reconhecimento da diversidade e das desigualdades profundas até fizeram com que os países signatários introduzissem politicas internas para atingir metas, objetivos, ou cumprir acordos em comum. No entanto, por fora destes mesmos objetivos predominou a política do vale tudo. Fechar os olhos para os problemas do mundo quando conveniente, meter-se na política exterior, explorar países vizinhos ou de outros continentes, universalizar a pobreza e se especializar em técnicas de políticas anti-povo. Os Direitos Humanos, em sua aparência universal e de ideologia aparentemente ‘neutra’, serviu de guarda-chuva: cômodo assinar, mas cheio de condicionantes para ser posto em prática.
Ao longo dos anos, um dos principais meios de produzir informação, o jornalismo, acabou envolto pelos ares da dita modernidade. Para informar a realidade, ele subiu ao pedestal e lá ficou, autoproclamado neutro e imparcial. Veículos de comunicação se tornaram grandes conglomerados, aparelhados por coronéis e empresários. Os jogos de dominação emprestaram às empresas de massa novo status. A mídia tornou-se então, o ‘Quarto Poder’, uma referência às sociedades de regimes democráticos e representativos, regidas pelo Legislativo, Executivo e Judiciário, tal a influência dos meios como instrumento mediador entre os indivíduos e a realidade.
O problema é que pensar sobre Quarto Poder nestes termos faz com que ele pareça algo estático. Aqui embaixo, no mundo real que o jornalismo reporta, conceitos se misturam, se confundem e – não raramente – nos confundem. Em um contexto ultrafragmentado, onde pessoas que trabalham são submetidas à atividades sobrecarregadas e cada vez mais automáticas, em nossa categoria – também perpassada por desemprego, precarizações e artimanhas das mais diversas usadas pelo patronato – o desafio é transmutado ao jornalista multitarefa ou polivalente – que pauta, produz, escreve, grava, revisa, edita, adapta o conteúdo para todos os distintos formatos midiáticos, ou ainda ao inexperiente que ‘tope tudo por qualquer trocado’. Em que momento fomos reduzidos a estes perfis? Os desafios técnicos entrelaçam os éticos: nosso produto final é a descrição da realidade, afinal, mas em um mundo complexo cheio de notícias falsas e pós-verdades. Resultado: nossos produtos, as descrições de realidades, são encaixotadas como mercadorias, são negociadas.
O Quarto Poder se esconde, ao tempo que se espalha e usa máscaras. E até a neutralidade, por décadas instrumentalizada como discurso de distinção entre a boa e a má imprensa, é relativizada de acordo com as conveniências.
As redes virtuais – embora perdurem com seu contraditório potencial articulador – têm em seus usuários os grandes propagadores da desinformação. Reproduzem o individualismo e a solidão. O poder das milícias virtuais e midiáticas, que influenciaram fortemente o último período eleitoral no Brasil e em outros países, continuou, se expande até hoje e influenciam no agendamento desse clima social diante da retirada sistemática de direitos. Uma das pesquisas icônicas, instituída pela Reuters, demonstra que 53% de brasileiros que responderam a pesquisa dizem usar o whatsapp como fonte de notícias, um número gigantemente superior em relação a países como Reino Unido (9%), Austrália (6%), Canadá (4%) e Estados Unidos (4%)*. Desnorteiam quem já está tonto com o sufocamento da economia que nos importa – a que garante as condições de vida das pessoas. Os discursos se radicalizam e deturpam a realidade até o ponto de tornar uma ofensa aquilo que foi produzido para ser universalmente desejável: eles mesmos, os direitos.
Fundamentais, sociais, humanos
O ano é 2019, e a bandeira do direito de existir, do direito de ter direito – quando concretizada em confrontos antirracistas, ou confrontadores de classe e de gênero (outro palavrão)- foram dicotomizadas em um debate empobrecido de direita versus esquerda. Empobrecido porque reduz a complexidade dos dois lados, porque aponta a um monte de vazios cheios de nomes mas sem entendimento dos processos. Porque nega o direito de quem sempre teve direitos negados com o argumento vazio da classificação. E até esquece – que loucura! – que o cerne dos próprios direitos humanos tem uma base liberal.
O ano é 2019, mas em muitos aspectos se assemelha a 1948. Se a Declaração Universal tinha como princípio reintroduzir pensamentos e condutas que nos levassem para um caminho longe da barbárie, porque estamos tão perto dela?
Em um país com a segunda maior concentração de renda do mundo [Informações do RDH da ONU], que socializa a pobreza para manter os 10% mais ricos com 41,9% da riqueza total, seria para nós até ofensivo querer ou acreditar em um pretenso quarto poder que domine e agende discussões que vêm de cima para baixo.
É quase 2020, e a Mídia Caeté vem nos ’45 do segundo tempo’ como obra de desfecho do que foi o ano de 2019, do que tem sido esse período; de meses de conversas, reuniões, planejamentos, afinamentos do que queremos, de como lidaremos com a informação e com nosso próprio trabalho. Decidimos nos constituir enquanto cooperativa, deixando transparente aqui não só nossos serviços e produtos como nossas próprias relações de trabalho. Como cooperativa, somos livres de patrões. Como mídia independente, ficamos livres também de negociação de reportagens e autocensura provocada pela interferência publicitária. Isso significa que doar para a Mídia Caeté é automaticamente declarar que esse apoio se dá unicamente pela aposta em um jornalismo independente, aprofundado, crítico: porque eu quero que exista, contribuirei. Porque quero fazer parte dele, vou assinar.
Comunicar, para nós, é necessariamente retirar do fundo dos tapetes, das estatísticas, dos telhados e documentos empoeirados, o que diz respeito a nós, denunciando as barbáries ou contando boas histórias e ideias transformadoras. E isso a gente não faz só. A comunicação como uma via de mãos múltiplas, como construção coletiva, possui para nós um sentido que torna fácil nossa escolha diária por estar do lado de cá. E nos permite concordar com a Angelina Nunes nessa crença de que: o jornalismo resiste. Ele precisa resistir. Não vamos desistir do jornalismo, e tampouco do jornalismo que acreditamos. Por isso, nesses tempos de regime endurecido, de arrocho econômico e saúde mental, optamos por criar. Construir e apostar é nossa cartada do momento.
Obviamente que nossa batalha por sobrevivência se imbrica na luta contra a relativização da realidade, contra a confusão e a preguiça. A saída poderia ser a defesa da Comunicação, e não apenas da informação, como um direito. Se o jornalismo corre perigo, quem melhor que os jornalistas para defendê-lo? Quem melhor do que a sociedade para chegar junto nesta defesa? O que melhor do que reunirmos todos os pés possíveis na porta desses donos do Quarto Poder e declarar: aqui mais não!
Nesse sentido, abrimos mão da neutralidade e o que viemos a oferecer e garantir é a ética e independência. O que a gente pode garantir é manter o convite aberto para que as pessoas cheguem mais perto e saibam exatamente como apuramos, como elaboramos nossas matérias, como é nossa dinâmica de trabalho, como lidamos e descrevemos a realidade gigantesca e desencaixotada. Abrimos mão do discurso da neutralidade para colocar, em seu lugar, nossa adoção ao exercício da transparência: esse livro aqui é todo aberto, plural, rigoroso na checagem das informações e escrito com linhas que defendem desde já a garantia de direitos e da democracia. É esta nossa forma de difundir e garantir um jornalismo que agiganta e provoca com todos a quem compartilha, e de reforçar nossa própria crença de que nenhuma pessoa merece ou quer ser enganada. Por nada menos que isso: Chegamos!
Referências
Brasil é Terreno Fértil para as Fake News
Costas Douzinas – Direitos Humanos e os Paradoxos do Liberalismo