A medalha conquistada pela maranhense Rayssa Leal, nas Olimpíadas de Tóquio, deu uma injeção de alegria aos brasileiros. A skatista de 13 anos encantou e trouxe a medalha de prata, tornando-se a atleta brasileira mais jovem a subir ao pódio.
Porém, o que deveria ser celebrado levantou questionamentos controversos e carregados de ignorância. O deputado federal Sóstenes Cavalcante (DEM-RJ) fez um post, onde usou a conquista de Rayssa como subterfúgio para defender o trabalho infantil.
A Mídia Caeté conversou com o Coordenador de Estudos, Pesquisa e Educação de Direitos Humanos do Centro de Defesa dos Direitos Humanos Zumbi dos Palmares (CEDECA Zumbi dos Palmares), Pedro Montenegro. Para ele, trazer à tona esse debate nessas circunstâncias é inadmissível.
“Trata-se de uma discussão de cunho malevolente – bem própria desses tempos sombrios e de homens sombrios – que estamos vivenciando no país. Não há qualquer nexo causal, qualquer relação, entre a saudável prática de esportes por crianças e/ou adolescentes e o abominável trabalho infantil, que rouba das crianças e dos adolescentes o direito à infância.”, afirma.
E complementa: “Além disso, é uma discussão falseadora, pois omite deliberadamente informações vitais para o esclarecimento público, como por exemplo, o fato de que no Brasil a Constituição admite, modalidades de trabalho a partir dos 14 anos na condição de aprendiz”.
Pedro Montenegro faz questão de lembrar sobre os prejuízos que o trabalho precoce pode causar no desenvolvimento dos jovens, fatores que impactam a saúde física e mental.
“O trabalho infantil, conforme a abundante literatura especializada nacional e internacional, causa múltiplos impactos negativos na vida de crianças e adolescentes, ao expor-los a situações de risco, acidentes e problemas de saúde relacionados ao trabalho. O trabalho infantil, especialmente nas suas piores formas, exige esforço físico extremo, como carregar objetos pesados ou adotar posições que comprometem o desenvolvimento físico, ocasionando lesões na coluna e produzindo deformidades permanentes.”, frisa.
O coordenador aponta também que o trabalho infantil é uma conduta diretamente ligada à pobreza e à falta de oportunidades.
“Além disso, como apontam a Organização das Nações Unidas (ONU) e a Organização Internacional do Trabalho (OIT) o trabalho infantil é causa e efeito da pobreza e da ausência de oportunidades para desenvolver capacidades. Ele impacta inclusive o nível de desenvolvimento das nações e, muitas vezes, leva ao trabalho forçado na vida adulta.”
De acordo com o Ministério da Cidadania, com a pandemia, o Brasil chegou a marca de 14,5 milhões de famílias na extrema pobreza. Especificamente em Alagoas, são 570 mil pessoas em tal situação, o que faz o Estado ocupar a 2ª colocação no país. Os dados são do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Outro dado alarmante que merece menção é que Alagoas tem se deparado com uma escalada na violência policial e as maiores vítimas são os jovens negros periféricos. Em Maceió, 75,8% da população é negra (preta ou parda) e apenas 23,4% são brancos. No entanto, 86% das mortes após intervenção policial são de pessoas negras, enquanto os brancos são 10,4% das vítimas.
CONTESTAÇÃO DO ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE (ECA)
O deputado federal Sóstenes Cavalcante afirmou ainda que o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) precisava ser revisto. Para Pedro Montenegro, esse discurso faz parte de uma narrativa anticientífica e baseada em inverdades.
“Uma das piores faces do bolsonarismo é o uso recorrente de narrativas baseadas em notícias falsas ou em meias verdades. Esses expedientes são extremamente nocivos, pois eles minam um dos pressupostos fundamentais das democracias: o esclarecimento público, o debate fundado em fatos reais e científicos.”
E continua: “O esquema, não ousaria chamar de método, em razão do seu caráter acientífico, funciona nos seguintes termos: cria-se um problema e apresenta-se uma “solução” simples, mágica, mas absolutamente ineficaz, exatamente como acontece nessa proposta de revisão do ECA.”
O QUE PRETENDE O ECA?
O ECA tem como principal objetivo proteger integralmente a criança e os adolescentes, através de medidas inseridas no ordenamento jurídico brasileiro. O Estatuto é um marco legal e regulatório dos direitos humanos dos jovens brasileiros. Neste mês de julho, ele completou o seu 31º aniversário.
Antes do documento, crianças e adolescentes não eram considerados cidadãos, aos olhos da própria legislação. A primeira mudança contundente do ECA foi incluir os jovens dentro do espectro dos sujeitos de direitos, resguardados pelas leis e inseridos na condição de pessoas em desenvolvimento.
Entre tais regramentos, está exatamente o que fala sobre o trabalho infantil. O estatuto veta qualquer forma de trabalho até os 13 anos e impõe uma série de responsabilidades do Sistema de Garantia de Direitos e as condições para formalização do “trabalho protegido”. Tal modalidade ocorre na condição de aprendiz a partir dos 14 anos e com restrições ao trabalho noturno, insalubre e perigoso – para outras contratações com carteira assinada de trabalhadores com 16 e 17 anos.
“A proibição do trabalho infantil tem como fundamento objetivo a incompatibilidade dessas formas de trabalho com o desenvolvimento intelectual das crianças e dos Adolescentes. Pesquisas e estudos atestam que jovens abaixo de 14 anos que trabalham têm rendimento escolar abaixo da média, contribuindo com a defasagem de aprendizado e com o aumento da evasão escolar”, afirma Pedro Montenegro.
Para finalizar, é importante citar o que diz o artigo 4 do Estatuto, que reproduz uma parte do artigo 227 da nossa Constituição Federal, que estabeleceu o princípio da proteção integral da criança e do adolescente.
“É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária”.