Negros são 86% dos mortos após intervenções policiais

Mídia Caeté analisa as 799 mortes oriundas de intervenção policial em Alagoas desde 2012 e constata escalada de violência
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Inserções do Governo de Alagoas na rádio e televisão contaram para a população, nos últimos meses de 2020, sobre a queda no número de homicídios no estado. Os números oficiais apontam que Alagoas saiu gradativamente do patamar de 2.048 homicídios em 2012 até alcançar os 1.069 em 2019. Na contramão dessa redução, entretanto, encontra-se o que a publicidade não destaca: o crescimento vertiginoso das mortes resultantes de ações policiais em solo alagoano.

No Brasil, as discussões na área de segurança pública têm mostrado preocupação com o aumento da letalidade policial na última década. É uma realidade escancarada e denunciada sobretudo nos bairros periféricos das capitais, onde a presença do Estado, quando não sentida, acaba por ser temida.

Alagoas dá sinais de quem aprendeu e copiou o manual da primeira à última página. As 27 mortes após intervenção policial em 2012 pularam para 93 em 2019, o que representa um crescimento de 244,4%. Nesse intervalo, os anos de 2015, 2016, 2017 e 2018 ultrapassaram a casa da centena: o pico foi alcançado com as 145 registradas há três anos. O período de janeiro de 2012 a outubro de 2020 registra 799 mortes no total.

Os números absolutos se tornam mais emblemáticos quando outra perspectiva se impõe. Estudos da área costumam relacionar, em um determinado território, o número de mortes causadas por policiais com o total de Crimes Violentos Letais e Intencionais (CVLI), categoria que considera os homicídios dolosos simples e qualificado, os latrocínios, as lesões corporais seguidas de morte, os estupros com resultado morte e as próprias mortes após intervenções policiais. O cálculo revela um dos indicadores possíveis para avaliar a gravidade do fenômeno da letalidade policial em um contexto social.

Se no ano de 2012 as mortes após ações da polícia representavam 1,24% do total de crimes violentos letais e intencionais em Alagoas, essa proporção chegou a ser de 9,54% em 2018, ou seja, praticamente uma a cada 10 mortes no estado ocorreram em decorrência de intervenção policial.

Os dados que embasam esta reportagem foram obtidos via Lei de Acesso à Informação e compreendem o período de janeiro de 2012 a 19 de outubro de 2020. Foram consideradas todas as mortes ocasionadas por intervenção policial, sem distinções entre situações de legítima defesa ou de excesso na ação.

Alagoas extrapola proporção “tolerável” do FBI de mortes de civis para cada policial morto

De acordo com os dados disponibilizados na internet pela Secretaria de Segurança Pública de Alagoas (SSP-AL), seis agentes de segurança pública foram vítimas de crimes violentos letais e intencionais em 2018. Cinco estavam de folga, à exceção de um caso envolvendo um policial militar da reserva. No ano seguinte, o número subiu para sete, novamente com todos de folga, exceto o agente enquadrado na categoria “outros”. As informações sobre vitimização de agentes da segurança pública não estão disponíveis para anos anteriores.

Diante da dificuldade em distinguir situações de confronto com excessos na atuação, seria possível, em termos práticos, chegar a uma conta? Nos Estados Unidos, o FBI considera dentro da normalidade uma proporção de um policial morto para 12 mortes de civis. Mais uma vez, os dados para Alagoas partem em direção a um excesso: em 2018, a conta dos 145 civis para seis agentes revela uma proporção de 24 para um; no ano seguinte, os 93 civis para os sete policiais demonstram uma relação de 13 para um. Isso levando-se em consideração as mortes de agentes em folga, o que reduz a conta ao ignorar mortes de policiais em hipóteses de confronto.

Uma questão de desproporção

Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) estimavam, no 1º trimestre de 2020, que 75,8% da população em Maceió é negra (preta ou parda) e apenas 23,4% são brancos. Das 799 mortes analisadas para esta reportagem, 327 (40,9%) ocorreram em Maceió. A análise mais detalhada dos números da capital revela que 86,8% dos mortos são negros, o que corresponde a uma sobretaxa de 11% na vitimização em relação aos negros na população da capital. Por outro lado, os brancos são 10,4% das vítimas, contrastando com a representação desse grupo na população de Maceió.

Até 19 de outubro de 2020, Maceió registrava 22 mortes, das quais 20 (90,9%) foram de negros, uma sem informação e outra de uma pessoa branca. Em geral, a capital apresenta um quadro mais grave que o observado para o estado: em 2013, 92,3% das vítimas eram negras, contra 91,1% em 2014 e 95% em 2015. O cenário no estado fica em patamares próximos.. Enquanto 74,7% da população se declara preta ou parda, este grupo representa 81,8% das mortes após ações policiais. Já os brancos, 24,1% da população, são 14,5% das vítimas. 

O membro do Instituto do Negro de Alagoas, Leandro Rosa, enxerga no panorama alagoano uma estrutura que tem a população negra como centro – e principal alvo -também  da violência estatal. 

“Tais números revelam uma realidade triste e cruel e destacam o lado mais sombrio do nosso racismo estrutural, que é o genocídio negro em andamento. Longe de ser uma crise, ou distúrbio, é um projeto executado dentro de uma necropolítica, ação essa que no limite decide quem vive e quem deve morrer”, opinou.

“A ausência do Estado pela via social, ou seja, educação, saúde e saneamento, chega pela via policial e repressiva. O controle social é exercido sobre a população negra alagoana e brasileira, sob a forma repressiva e policial, que contém algumas opções para essa população: o indiciamento, o encarceramento e a morte (ou execução)”, arrematou Leandro.

O cientista político Emerson Oliveira tem se dedicado especialmente, nos últimos anos, ao estudo da violência em Alagoas. Para ele, a questão racial é um fator fundamental na análise dos mortos após ações policiais, embora não se possa desconsiderar também a dimensão da pobreza. É o racismo cotidiano que opera continuamente sobre as instituições e relações sociais. 

“O racismo é sistêmico, estrutural e por isso mesmo, precisamos entendê-lo como algo que se imprime sobre a política, sobre a economia, sobre a cultura. Por exemplo, os fatores estruturais que determinam que mais pretos e pardos sejam vítimas de homicídio do que brancos, deve ser compreendido como parte de um processo muito maior de exclusão que figura também na baixa representação legislativa, por exemplo, desta população na arena política. Pretos e pardos ainda recebem menos que brancos para exercerem as mesmas funções e também são estes que ocupam a maior parte dos subempregos, ou que apresentam as menores taxas de alfabetização, à despeito das conquistas alcançadas com as políticas afirmativas junto às universidades e que povoam a maioria das periferias Brasil afora. Quando entendemos o racismo como um fenômeno estrutural, entendemos que estas coisas estão conectadas”, analisa Emerson.

“Por trás da violência que foi imprimida ao corpo daquele garoto negro da periferia, há ciclos e ciclos geracionais históricos e geracionais de desvantagens que não podem ser esquecidos. O Estado precisa assumir sua responsabilidade. Como? Primeiro reconhecendo o problema (o que ainda é um grande obstáculo). Assumindo que ele tem responsabilidade sobre o homicídio daquele jovem negro. Depois, interferindo na cadeia de fatores estruturais que têm potencializado a vitimização desses grupos. É política pública. O Estado precisa planejar, implementar e executar políticas de promoção da vida, da igualdade e do respeito à dignidade da pessoa negra”. 

A desigualdade econômica como fator de exposição à violência policial desperta atenção. Apesar de terem populações parecidas, segundo dados do Censo 2010, Ponta Verde e Trapiche têm experiências distintas nas mortes após intervenções policiais, com o primeiro bairro, considerado de elite, registrando apenas três mortes de 2012 a 2020, enquanto o segundo acumula 16. O Benedito Bentes lidera a lista com 46 registros, seguido pela Cidade Universitária, com 36. 

64,8% dos mortos na capital têm até 24 anos de idade

Se já sabemos qual é a carne mais barata do mercado, os riscos se potencializam para os jovens periféricos. Dos 327 mortos após intervenção policial em Maceió entre janeiro de 2012 e outubro de 2020, 212 (64,8%) tinham até 24 anos de idade. Em Alagoas, o percentual é de 59,7%. 

Na capital, os jovens de 17 anos são os mais presentes nos registros (30 ao todo), seguidos por aqueles de 19 anos (27) e os de 20 anos (26). Em última instância, a transformação dos jovens alagoanos em “meras estatísticas” revelam as dificuldades de nós, enquanto sociedade, sentirmos as dores dessas partidas e a dimensão dessas histórias. 

“Eu acredito que, paralelo ao racismo, há um fenômeno de desumanização dos corpos das pessoas pretas e pardas. Essa desumanização é o principal gatilho de aniquilação da cidadania política e social dessas pessoas. Não sabemos quem são esses jovens, não conhecemos seus nomes, seus rostos. Eles figuram como uma massa. Isso invisibiliza, restringe a humanidade desses corpos, transformando-os em supérfluos e, portanto, matáveis. Voltando a sua pergunta: por que não pautamos essas mortes [de jovens alagoanos] como as de Agatha, João Pedro e demais? Eu diria que, primeiro, por que não os conhecemos, não sabemos seus nomes, suas trajetórias”, observa Emerson, antes de completar. 

“É fundamental para uma política de sensibilização da população dar cara, cor e nome a essas pessoas. Ainda no final da década de 1970, quando Abdias Nascimento denunciava o genocídio a que estava submetido o negro brasileiro, seu grande desafio foi exatamente desmontar o discurso da democracia racial brasileira mostrando que o racismo brasileiro tem um ingrediente particularmente perturbador – ele é mascarado. É uma espécie de racismo sem racistas, como se isso fosse possível. É um racismo que se perpetua consciente ou inconscientemente disfarçado nas corporações militares, no sistema prisional, nas diretrizes da nossa política macroeconômica, na segregação dos espaços urbanos, na branquitude do nosso judiciário, dos cargos eletivos, dos postos de gestão e gerência da iniciativa privada etc. Racismo não pode continuar ser entendido somente como uma ação individual, mas sim como um sistema. Do contrário, perderemos a batalha”.

O outro lado

A Mídia Caeté entrou em contato com a Secretaria de Segurança Pública de Alagoas (SSP-AL) informando do teor da reportagem e oferecendo a oportunidade de apresentar uma versão. Os contatos foram feitos por dois canais. Não houve resposta até o momento. O espaço segue aberto para eventual manifestação.

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