Resumo
Nutrir um sentimento de afeto por um objeto ou por um local que marcou a nossa vida faz parte da essência humana e compreende o que chamamos de Memória Afetiva, algo inerente ao subconsciente e que compõe nossas recordações sensoriais e emocionais.
O psicanalista francês Jacques Lacan defendia que nós, nossos desejos, concepções, amores e sensações estão diretamente ligados à figura do Outro, que pode ser compreendido como uma representação (física ou não) que nos traga algum tipo de significado. Diante disso, algumas perguntas nos fazem refletir. O quão importantes são as nossas lembranças? Qual trauma pode ser causado por uma ruptura abrupta de uma recordação de anos?
Após o surgimento de tremores e rachaduras em cinco bairros de Maceió, esse trauma se tornou presente na rotina de diversas famílias, que tiveram de abandonar referências marcantes construídas ao longo de uma vida. Foi o que ocorreu com a professora e bailarina Eliana Cavalcanti, seus familiares e alunos.
Com quase 50 anos de história, a Escola de Ballet Eliana Cavalcanti foi uma das pioneiras do Estado e se tornou um dos símbolos do bairro do Pinheiro, um dos bairros que precisaram ser evacuados. A Mídia Caeté conversou com Eliana a respeito da situação e qual o sentimento que ela provoca.
“A sensação é de muita tristeza associada à perplexidade. A situação é surreal; inacreditável. Um cenário de pós-guerra. O bairro do Pinheiro era muito gostoso de se morar. No meu caso, morar e trabalhar, pois, além do Ballet, morávamos num apartamento que ficava no pavimento superior da escola”, disse a bailarina.
Em uma publicação no Instagram, Eliana Cavalcanti relatou o que sente ao ver o prédio e o bairro abandonados, ressaltando que ainda guarda lembranças importantes dos momentos vividos.
“Ali fomos felizes, realmente. Hoje, ver o prédio assim destruído, nos dá um aperto no coração e um sentimento de profunda tristeza. Tenho, ao longo desses dois anos e seis meses (tempo que fomos obrigados a sair de lá), feito de tudo para me manter em pé, com um olhar num futuro que me permita ter paz e segurança: dou aulas, tomo calmante, leio, escrevo, assisto a lindos seriados e rezo.”
Trajetória dentro da arte
Nascida em Maceió, Eliana se mudou muito jovem para Olinda (PE), onde iniciou sua carreira como professora e bailarina, e retornou para Alagoas no começo da década de 1970.
“Em 1972, comecei a vir toda semana a fim de dar aulas de ballet no Colégio Sacramento. Eu morava em Olinda e dava aulas e dançava em Recife. No ano seguinte, vim morar em Maceió e montei a primeira escola de ballet do Estado. Em 1981, inauguramos a sede própria, no bairro do Farol, que depois passaria a se chamar Pinheiro. Nesse mesmo ano, criei o Ballet Íris de Alagoas, grupo que, durante 21 anos, enriqueceu a cena local com suas produções artísticas e viajou muito para se apresentar em outras cidades do país. Esse grupo também teve sua sede no Ballet Eliana Cavalcanti”, conta.
A escola este ano completou 48 anos e funcionou durante 38 anos no Pinheiro, porém – em janeiro de 2019, devido ao grave problema causado pela extração de sal-gema desempenhada pela Braskem – precisou mudar de local. Atualmente, o ballet funciona na Gruta de Lourdes.
CARINHO E INDIGNAÇÃO
Em meio ao triste contexto, um ato trouxe a força e o afeto necessários para manter viva as recordações. Idealizado por ex-alunas, um abraço solidário aconteceu em frente à antiga sede e reuniu alunos, familiares e amigos, no dia 19 de junho.
“O ‘Abraço Solidário’ foi um dos momentos mais emocionantes da minha trajetória. Recebi, ao longo da minha carreira: troféus, comendas, medalhas e títulos, porém, um momento como aquele tem um peso maior para mim. É um reconhecimento pelo meu trabalho em prol da dança, o coroamento de uma bela e rica história. Sou muito grata a todos os alunos, ex-alunos, amigos e familiares que participaram e se emocionaram comigo. Estavam ali porque, realmente, têm apreço por mim. Foi idealizado e organizado pela ex-aluna Isabelle Rocha”, relata Eliana Cavancanti.
Além do carinho essencial, a revolta com a atual situação também se fez presente. O jornalista e músico Max Cavalcanti demonstrou sua indignação e lembrou que é necessário que haja um olhar justo sobre todas as famílias impactadas. Max é filho de Eliana e também viveu momentos importantes no bairro.
“Onde está a lista com os nomes dos culpados envolvidos nesse crime urbano e ambiental sem precedentes na história desse país? Canalhas, covardes, desumanos. Que Deus possa clarear o caminho daqueles que intercedem por eles nas negociações e enxerguem a dor de tantas famílias como a nossa”, disse em uma publicação nas redes sociais.
Relembre o caso
A extração desenfreada de sal-gema pela Braskem resultou em tremores e rachaduras em cinco bairros da capital, problemas que tiveram início no ano de 2018. Bairros que precisaram ser evacuados devido ao iminente risco de desabamento.
Advogados e moradores contam que, enquanto adquire, a partir das indenizações, a posse dos terrenos afetados nas regiões, a empresa vem efetuando um relacionamento desigual contra os proprietários durante o Programa de Compensação Financeira (PCF).
Segundo as denúncias, a mineradora dita todos os termos durante as reuniões, nega informações sobre os critérios para avaliação dos valores dos imóveis e utiliza de forma unilateral os princípios de ‘boa fé’, sempre sob princípio de confidencialidade.
A Braskem nega as acusações. A Mídia Caeté fez uma matéria abordando o ocorrido.
De acordo com Eliana Cavalcanti, após diversas tratativas, as negociações estão se encaminhando para um desfecho. “Depois de dois anos e meio de angústia, estamos finalmente chegando à etapa final. Em 15 dias, já tivemos três reuniões com um advogado da Braskem. Estamos na fase de negociação”.
Solidariedade e apoio para prosseguir
Eliana cita iniciativas como o ‘Abraço Solidário’ como fundamentais para reaver as energias quando mais se precisa, lembra que o desastre ambiental traz consequências graves e manda um recado para quem está passando por essa mesma angústia.
“Eu diria que acreditassem que nada é por acaso e que na vida tudo passa. Minha saúde está muito fragilizada, contudo, está chegando o meu dia de sair dessa situação. Não tem sido fácil para ninguém, principalmente para nós empresários. Nós perdemos emocionalmente e financeiramente. E o financeiro levou muitos de nós a perder a dignidade e a se encher de dívidas. Não foi só um imóvel com histórias de família, convivência com amigos de muitos anos, mas a questão financeira que tirou a estabilidade, a segurança. Mas, a fé em Deus é tudo. As minhas preces diárias têm suavizado esse terrível momento.”
Confira também a nossa reportagem sobre o ‘A Gente Foi Feliz Aqui’, projeto idealizado pelo artista visual e curador Paulo Accioly e que retrata as histórias e o sentimento de pertencimento dos ex-moradores do Pinheiro através de colagem e depoimentos.